O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 9)
 
No capítulo da moral público-natural que regula as condutas de todos os homens em sua vida social, embora mais devam essas condutas exigir-se dos que dotados de autoridade pública (assim, entre estes, os notários), depois de examinarmos brevemente a virtude da religião, passamos a considerar o hábito da piedade familiar.
 
Parte da virtude da veneração, anexa da justiça, a piedade –assim o vimos– tem por objeto formal um débito para com nossos pais e nossa pátria, que são os princípios secundários de nossa existência física, moral, intelectual e espiritual. Esse débito expande-se em relação a nossos parentes, amigos e benfeitores, de modo que com eles temos também deveres de piedade.
 
Toda virtude moral, e a piedade é uma virtude moral (pois que, já ficou dito, é uma anexa da justiça), possui um médio entre um excesso e um defeito. A este médio é que se refere o consagrado in medio stat virtus –no meio está a virtude. E, em relação à piedade familiar, que diz com o débito em relação aos pais, o excesso consiste no exagerado amor aos parentes, tal que, por esse excesso, deixassem de observar deveres superiores; e o defeito, o pecado de impiedade familiar, em se falta aos deveres de honra, reverência, ajuda material ou espiritual, etc. (Royo).
 
S.Afonso Maria de Ligório, no tomo II de sua Teologia moral (Rio de Janeiro: CDB, 2018), trata largamente dos deveres de piedade familiar, não só, primeiramente, em sua acepção mais própria, a dos deveres dos filhos em relação aos pais, senão que também dos deveres dos tutores, curadores e párocos, e das obrigações mútuas dos cônjuges, dos superiores e subordinados, e dos mestres e discípulos.
 
Entre os deveres dos filhos para com seus pais, elenca S.Afonso, com apoio em vários autores que menciona:
 
(i) o de não expressarem sinais de ódio a seus pais;
 
(ii) o de não os tratarem com aspereza;
 
(iii) o de não lhes recusarem ajuda em caso de grave necessidade corporal ou espiritual;
 
(iv) o de não lhes desejarem mal grave (p.ex., a morte);
 
(v) o de não lhes impedirem de fazer testamento;
 
(vi) o de não agredirem os pais, sequer sendo de admitir que levantem a mão para golpeá-los;
 
(vii) o de os não contristarem por palavras que, saibam, vão ofendê-los;
 
(viii) o de não zombarem de seus pais presentes;
 
(ix) o de não desprezarem os pais pobres, ou não os reconhecerem.
 
A só lista desses deveres põe à mostra o quanto resultaria de desonra e de desprestígio pessoal para o notário –em verdade, para qualquer pessoa– a violação pública da piedade familiar. Não é demais referir que os atos exteriores de reverência não só incitam o sentimento interior (que é antes de tudo o mais relevante na piedade), mas dão exemplo desta admirável realidade da vida: “o filho, por uma inversão de condições, converte-se em guardião de seu pai, em especial nos tempos da ancianidade paterna” (Gerlaud).
 
Em tempos de decadência da civilização, assim estes em que vivemos, quando algumas ideologias se dirigem, concertada e aguerridamente, à destruição da família, é preciso fortalecer os deveres familiares: adivinha-se que o segredo da larga vitalidade da Roma antiga por tantos séculos se deva a que nela preponderou a família constituída sempre com “um forte sentido da lei natural” (Calderón). Mas agora estamos num tempo em que pensam alguns não tenham os homens de reconhecer as leis da natureza.
 
Antes de passarmos ao exame conciso da piedade patriótica, façamos aqui –et pour cause– uma incursão nos deveres de piedade dos mestres para com seus discípulos (não cuidaremos, entretanto, dos deveres destes em relação a seus mestres).
 
Firmamo-nos uma vez mais na doutrina sólida de S.Afonso de Ligório, que recolhe, entre outros deveres dos mestres, os
 
(i) de não passarem por alto os pecados de seus discípulos, deixando de corrigi-los quando poderiam fazê-lo;
 
(ii) de não promoverem com diligência o progresso dos discípulos no conhecimento;
 
(iii) de não lhes ensinarem os bons costumes;
 
(iv) de não lhe ensinarem, ao revés, coisas falsas e malignas;
 
(v) de não se empenharem para estar à altura da função magisterial;
 
(vi) de não exigirem remuneração maior que a justa.
 
Os notários, tidos com justíssima razão por serem os magistrados da concórdia política, não apenas devem conduzir-se qual os patres (ou, quando o caso, as matres) familiæ societatis, mas também qual filii vel filiæ familiæ societatis, dando palavras e exemplo, exortação e conduta pública de observância dos deveres de piedade filial.