(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 29)
 
839. Com a brevidade recomendável nas circunstâncias, tratemos agora do tema da pluralidade hipotecária, gênero a que correspondem algumas espécies.
 
Com efeito, fala-se (ou pode falar-se, com maior ou menor acerto) de quatro modos de pluralidade de hipotecas, conforme a pluralidade se refira (i) a imóveis, com ou sem diversificação de graus da garantia, reportando-se a diferentes créditos; (ii) a créditos diversos; (iii) a vários credores; (iv) a prédios diferentes, mas relacionada a garantia a um só crédito.
 
Assim, no primeiro modo, cuida-se da constituição de várias garantias hipotecárias sobre um mesmo imóvel, assegurando-se vários créditos. No segundo, trata-se não propriamente de uma pluralidade hipotecária, mas de uma pluralidade de créditos com uma só hipoteca, e, no terceiro modo, por igual sob nome impróprio, versa-se a hipótese de uma variedade de credores garantidos por uma só hipoteca. Por fim, o quarto modo é o que a doutrina alemã designou hipoteca solidária, depois de denominá-la de hipoteca correal.
 
840. Quanto ao primeiro modo de pluralidade hipotecária, já o deixamos referido (vidē item n. 603 no tomo III destes nossos Registros sobre registros). Ali invocou-se, à partida, a lição de Affonso Fraga: “A constituição por parte do devedor de uma primeira garantia hipotecária sobre um prédio qualquer do seu exclusivo domínio, o não inibe de constituir segunda, terceira ou mil sobre o mesmo prédio e exceda ou não o seu valor a soma dos créditos a garantir”.
 
Essas hipotecas –ditas simultâneas, com graduação de efetividade sucessiva– podem instituir-se quer por um só título (é dizer, numa só escritura, em que várias garantias se estabeleçam sobre um mesmo prédio), quer por meio de diferentes títulos formais, e devem dar lugar a tantos registros quantas sejam as hipotecas, indicando-se a gradação correspondente: é que a inscrição se faz do título em acepção material, de maneira que não se impede a variedade de registros com o argumento de unidade do título em sentido formal.
 
Relembremos neste passo o que já ficou apontado em itens anteriores (cf. ns. 623 et sqq.) quanto à possibilidade de, na metódica da pluralidade hipotecária –mais exatamente na das hipotecas simultâneas sobre um mesmo imóvel–, operarem-se as permutas, posposições e reservas de grau hipotecário, este que se considera (Afrânio da Carvalho e, quase à letra, Hedemann) “direito adjunto e independente que pode ser objeto de negócio jurídico separado”. Nesta autonomia dos graus da hipoteca enraíza-se a viabilidade dos ajustes de vontade com que se podem efetivar as permutas de grau (p.ex., uma hipoteca de segundo grau assumindo a posição de primeiro grau, limitando-se pelo valor desta), a postergação ou posposição do lugar registral (em que se abdica do posto de prioridade em que, por força de seu locus tabulæ, ostenta determinada inscrição hipotecária) e a reserva de gradação da hipoteca no registro.
 
841. O segundo e o terceiro modos –aos quais só impropriamente cabe aplicar o termo pluralidade de hipotecas– são o de a garantia prestar-se em benefícios e diversos créditos ou a vários credores “e ser inscrita sob o mesmo número de ordem e sem que as partes hajam convencionado no instrumento a graduação na ordem do pagamento” (Fraga).
 
Distinguem-se aí, pois, duas possíveis espécies: (i) a da pluralidade de créditos garantidos por uma só hipoteca e (ii) a da pluralidade de credores de um mesmo crédito que se garantam de maneira unitária. Em nenhuma dessas hipóteses há, efetivamente, pluralidade de hipotecas: em uma, plurais são os créditos garantidos em conjunto por uma só hipoteca (o que discrimina esta hipótese da anterior, de hipotecas sucessivas, é que neste segundo modo não há indicação dos graus da garantia); em outra, a pluralidade é de credores titulares de um só crédito, mas a hipoteca é única. Note-se que o registro dessa hipoteca é também único, por evidente, já que se trata de apenas uma hipoteca.
 
Recolhe-se da doutrina de Affonso Fraga sobre estes modos de pluralidade hipotecária:
 
“(…) a hipoteca é una, quer do ponto de vista do título que a constitui, quer da situação jurídica em que ficam colocados os créditos em face da inscrição, portanto, estando todos os credores colocados no mesmo pé de igualdade no que concerne à preferência, pagam-se igualmente se os seus créditos foram de igual valor ou proporcionalmente se o forem desiguais.”
 
Importa observar que o pagamento parcial dos créditos ou mesmo a satisfação integral de um ou mais deles, desde que subsista algum crédito não acarreta a redução da garantia, que persevera em sua inteireza, como resulta do princípio da indivisibilidade hipotecária.
 
842. Denomina-se hipoteca solidária (antes: hipoteca correal) a garantia de um mesmo crédito por vários imóveis. Esta designação, hipoteca solidária, transpôs-se do campo do direito obrigacional (obrigação solidária), ainda que não haja entre elas mais do que uma relação nominal a explicar o traslado expressivo (Nussbaum).
 
Os diversos imóveis dados em hipoteca solidária estão afetados à garantia e satisfação da integralidade do crédito (Morell y Terry), mas pode o ordenamento jurídico exigir a determinação quantitativa distribuída entre os vários prédios gravados: assim, p.ex., lê-se no art. 119 da Lei hipotecária da Espanha: “Cuando se hipotequen varias fincas a la vez por un solo crédito, se determinará la cantidad o parte de gravamen de que cada una deba responder”. Assim o diz a primeira parte do art. 216 do Regulamento hipotecário espanhol: “No se inscribirá ninguna hipoteca sobre varias fincas derechos reales o porciones ideales de unas y otros, afectos a una misma obligación, sin que por convenio entre las partes, o por mandato judicial, en su caso, se determine previamente la cantidad de que cada finca, porción o derecho deba responder”.
 
No direito alemão, inscrita em uma folha predial a hipoteca solidária, deve anotar-se propter officium “a corresponsabilidade dos outros imóveis” (Hedemann). Assinale-se que, no direito germânico, a atuação oficial do registrador é excepcional , e também o é no direito brasileiro: não se entrevendo, na legislação vigente no Brasil, obstáculo à existência da hipoteca solidária, deve ela, no entanto, ser inscrita nas matrículas de todos os imóveis dados em garantia.
 
A previsão do art. 1.488 do Código civil brasileiro (“Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito”) apresenta um hipótese de hipoteca solidária superveniente, hipoteca solidária por desmembramento da garantia, em que, pese embora a determinação da carga correspondente a cada imóvel gravado –observada a exatamente a proporção entre o valor de cada um desses imóveis onerados e o total do crédito garantido– não interfere, em princípio, com a responsabilidade do devedor originário quanto ao remanescente de seu débito (§ 3º do art. 1.488 do Cód.civ.: “O desmembramento do ônus não exonera o devedor originário da responsabilidade a que se refere o art. 1.430, salvo anuência do credor”; lê-se no aludido art. 1.430: “Quando, excutido o penhor, ou executada a hipoteca, o produto não bastar para pagamento da dívida e despesas judiciais, continuará o devedor obrigado pessoalmente pelo restante”).