Homens incapazes de produzir espermatozoides, adolescentes meninos que passam a sentir cólicas e menstruam, bebês masculinos registrados com nomes femininos. Esses são casos de pessoas que nasceram com genitália atípica, foram submetidas quando bebês a cirurgias reparadoras e que descobriram, posteriormente, serem de sexo distinto do qual foram registrados.
 
Essa realidade, que trata do nascimento, registro e vida em sociedade dessas pessoas, foi discutida por integrantes do Fórum Nacional da Infância e da Juventude (Foninj) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O encontro realizado na quarta-feira (21/8) reuniu médicos, magistrados e representantes de pessoas intersexo.
 
A questão é complexa e abrange a saúde dos bebês no momento de seu nascimento, sua identidade, tratamento médico subsequente, dificuldades da família com recém-nascido com genitália atípica, falta de conhecimento da sociedade em relação ao tema e a forma como as áreas médica e jurídica podem atuar para assegurar os direitos desses indivíduos.
“Este é o início de um debate que é amplo e multifatorial. Vamos continuar nessa discussão para chegarmos, se não a um consenso, a um bom resultado para a felicidade dessas crianças e para um mundo em que o direito ande aliado à dignidade das pessoas”, disse o conselheiro Luciano Frota, presidente do Foninj.
 
Registro civil
Uma das dificuldades enfrentadas por essas famílias é a forma de registro civil desses bebês. Conforme expôs Thais Emília de Campos, professora universitária e mãe de uma criança intersexo, as maternidades não estão preparadas para preencher a “Declaração de Nascido Vivo”.
 
Nesse documento, há três campos para registro do sexo: masculino, feminino e ignorado. No entanto, ainda que conste uma terceira opção para o registro de bebês que nascem sem o sexo definido, os hospitais seguem fazendo cirurgias tidas como reparadoras a fim de adaptar os recém-nascidos ao sexo masculino ou feminino em decisões que não consideram as implicações futuras dessas intervenções e, em vários casos, à revelia das famílias.
 
No centro desse debate está a questão da proteção e garantia dos direitos das pessoas intersexo e da importância de não serem tratadas como portadores de anomalias. “Não somos corpos anômolos. Há necessidade dos corpos intersexo serem legitimados em vida”, afirma Amiel Modesto, diretor da Associação Brasileira Intersexo.
 
Amiel, com 37 anos, se descobriu pessoa intersexo aos 33 ao ter acesso a uma carta em que constava o segredo da cirurgia para definição de sexo quando ele tinha sete meses. “Só a partir disso pude começar a entender minhas questões internas e externas.”
 
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 1,7% da população mundial é formada por pessoas intersexo, em um dado tido como subestimado. Para a avaliação da Associação Brasileira Intersexo, as cirurgias para definição de sexo em bebês com genitália atípica foram e continuam sendo feitas sem serem analisadas pelos comitês de bioética das instituições hospitalares.
 
Direitos e proteção
No Brasil, um dos debates mais profundos sobre esse tema vem sendo feito por profissionais do Hospital das Clínicas do Rio Grande do Sul. Os casos de crianças nascidas com sexo atípico e as consequências para a família, em termos de tratamento médico, levaram a unidade hospitalar a instituir um provimento a fim de facilitar trâmites burocráticos em situações tratadas pelo Núcleo de Bioética.
 
Essa experiência foi relatada pelos médicos José Roberto Goldim e Eduardo Correa da Costa. “A questão em jogo é a proteção a essas pessoas com direito a um encaminhamento adequado de suas demandas”, disse José Roberto Goldim.
 
Eduardo Correa, que é cirurgião, informou que um bebê com genitália atípica traz para a família a dificuldade em lidar com a incerteza do sexo do indivíduo, chamando a atenção para o aspecto multidisciplinar do tema.
 
Em muitos casos, informou, além da genitália atípica, esses bebês nascem com enfermidades a serem tratadas de forma emergencial. Atualmente, o Hospital das Clínicas do Rio Grande do Sul faz o acompanhamento de 160 pacientes intersexo, mediante um protocolo específico para esses casos.
 
O Poder Judiciário gaúcho também é pioneiro no assunto. Em junho, a Corregedoria-Geral de Justiça publicou provimento inédito que visa a garantia de acesso a direitos dos bebês e das famílias e o resguardo psíquico dos envolvidos. Na prática, o normativo cria novos artigos na Consolidação Normativa Notarial e Registral do Rio Grande do Sul (CNNR/RS), trazendo a possibilidade de se lançar no registro de nascimento o sexo como ignorado, conforme a Declaração de Nascido Vivo, e a opção para o declarante do nascimento de que no campo destinado ao nome passe a constar a expressão “RN de”(Recém-Nascido de), seguido do nome de um ou ambos os genitores.
 
Falta comunicação
O olhar da magistratura sobre o tema foi abordado pela juíza Camila de Mello, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), que, assim como Thais Emília de Campos, abordou o registro civil dessas pessoas.
 
“A Declaração Nascido Vivo é essencial para o registro civil e surpreendentemente, as maternidades não marcam a possibilidade do ‘sexo ignorado’. Falta comunicação e informação e há a crença de que o registro como sexo ignorado possa ser negativo para a criança.”
 
Também participaram da reunião as conselheiras do CNJ Cristiana Ziouva e Daldice Santana, a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Cristina Marques Peres, o secretário de Programas Especiais do CNJ, Richard Pae Kim, a corregedora-geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, desembargadora Denise de Oliveira, além de membros do Foninj.
 
O debate, segundo os participantes, expõe a necessidade de dar visibilidade às necessidades das pessoas intersexo. Diante disso, o conselheiro Luciano Frota informou que o Fórum Nacional da Infância e da Juventude vai agendar outros encontros e que será considerada a possibilidade de se ter regulamentação sobre esse tema para o Poder Judiciário.