O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 10)
 
Continuando nosso largo – ainda que superficial – percurso pelo território da moralidade pública, trataremos agora da piedade patriótica, ou, em outras palavras, o patriotismo temperado, uma veneração equilibrada da pátria.
 
Para tanto devemos começar por uma rápida consideração acerca exatamente do conceito de pátria, distinguindo-o do termo nação e examinando os vários elementos com que ambas se encontram e mesclam-se.
 
Apoiemo-nos nesta caminhada, por brevidade de causa, nas linhas traçadas por alguns excelentes autores contemporâneos: entre os nossos, compulsando o excelente Dicionário de política de José Pedro Galvão de Sousa, Clóvis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de Carvalho (S.Paulo: T.A. Queiroz, 1998), Gladstone Chaves Melo (Origem, formação e aspectos da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Padrão, 1974) e Leonel Franca (A crise do mundo moderno. 4.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1955); entre os estrangeiros, Alberto Caturelli (La Patria y el orden temporal. Buenos Aires: Gladius, 1993) e Alfredo Sáenz (Siete virtudes olvidadas. Buenos Aires: Gladius, 1988).
 
Iniciemos esta excursão por apontar que o vernáculo pátria advém-nos diretamente do substantivo latino patria, patriæ (Antônio Geraldo da Cunha) que tem, entre outras, as acepções de terra (sobremodo: de terra natal –Saraiva), remontando o latim ao grego πάτρια (Ernput e Meillet), que também tem o sentido de terra. Mas o latim patria é ainda a forma feminina do adjetivo patrius, patria, patrium –do pai, paternal, ancestral, hereditário (fig.) –, que, por evidente, deriva de pater, patris: pai. E por isto a ideia de pátria compreende, especialmente, a de terra dos pais (terra patrium), a de terra onde se nasce. O conceito de pátria, pois, empolga o de algo que provém do passado; uma herança, um legado histórico: “a pátria – disse Caturelli – não se concebe sem sua tradição histórica” (p. 134).
 
Pátria “é a terra onde se nasce”; é a terra dos pais, “o chão o território, cenário de um desenrolar de fatos –importantes muitos, heroicos outros– que vão enchendo de ressonâncias e história a vida de um agrupamento humano”; “é uma terra humana, porque ressuma gestos e gestas, fatos e feitos que contam a história de um povo, despertando uma afetividade viva e sensível” (Galvão de Sousa e Outros, p. 408-8). Daí que, sendo a pátria a terra patrum –a terra dos pais, na qual nascemos– o amor patriótico seja tão cerca do amor da família.
 
Já a palavra nação deriva do latim natio, nationis, de que deriva a forma nominal natus, natus (nominativo: nascimento; no ablativo: idade; também, noutra declinação: natus, nati). Os adjetivos natus e nata significam o filho e a filha; como termo geral, abrangendo ambos os sexos, o uso, no entanto, firmou-se em filius, filii (Ernout e Meillet, verbete nascor), e, restrito ao plural, liberi (crianças), com o sentido figurado de filhos. Assim, enquanto pátria diz respeito aos pais, nação “tiene que ver más bien con los hijos, los herederos” (Sáenz, p. 400).
 
Deste modo, pátria e nação parecem apresentar-se como realidades vincadas de temporalidade – a pátria é a que vem do passado, a nação, a que se abre ao futuro: “Todo pueblo vive en un presente, por cierto, pero en él se refleja su entero pasado y se anticipa todo su futuro” (Sáenz, id.). A pátria – que é a herança de nossos pais – constitui, em suma, aquilo que o povo presente recebe para, aperfeiçoando o legado, transmitir às novas gerações. Receber e transmitir supõem o dinamismo da entrega – o que corresponde ao vocábulo latino traditio, onis, substantivo derivado do verbo latino trado (entregar, transmitir; infinitivo tradere). Assim, a tradição – com o recebimento do que o passado nos entregou – é o suposto de um aperfeiçoamento progressivo: “é o passado que se faz presente e tem virtude para fazer-se futuro” (Victor Pradera).
 
Que elementos dão fisionomia à nação? Ou, em palavras gráficas, por que somos a nação brasileira e não a argentina? Por que a comunidade de Portugal não é o mesmo que comunidade da França? Esses elementos fundamentais da nacionalidade são os que vêm da pátria. Neste tempo de vendavais globalistas e de desconstrução consequente das nações, é, portanto, a observância da piedade patriótica o que nos pode conduzir ao verdadeiro progresso – que sempre está na linha da continuidade das vocações históricas e não das revoluções dissolventes e anárquicas.
 
A piedade patriótica – por isto mesmo que, virtude moral, assenta-se na reta razão – evita, como o fez ver Louis Lachance, os erros e desvios de um sentimento nacional exacerbado que “degenera em fanatismos coletivos” (apud Lumbreras), e, ao mesmo tempo, por meio da veneração equilibrada da herança do passado – que pode e deve mesmo aperfeiçoar-se, aprofundando-se e, quando o caso, retificando-se –, não incorre na soberba do “complexo do descobridor” (Bernardino Montejano), que se lança ao culto idolátrico da novidade.
 
Voltemos à nossa pergunta e consideremos quais elementos devem receber a veneração própria da piedade patriótica: de quais fatores se compõe o legado da pátria? Vários são esses elementos: a terra em que se nasce, a língua que se fala, a religião que se cultua, a matriz biológica (herança étnica), o vouloir vivre colectif (Le Fur), etc.
 
A terra: a pátria é “o lugar em que se nasce” (Cícero), o solo natal. “Esta é minha «pátria» – disse o Pe. Alfredo Sáenz –, meu lugar de origem, a terra de meus pais e minha própria terra, inseparável de minha natureza concreta (…) Por isso o patriotismo é incindível de uma determinada geografia, de um território concreto, a tal ponto que, ainda eu vá para longe da pátria, ainda que dela me ausente para sempre, levo comigo sua paisagem, seu entorno físico, até suas cores e seus aromas” (p. 408).
 
Vejam-se, a propósito, do grande pensador português que foi António Sardinha, estes versos que escreveu durante seu exílio em Toledo, fazendo, poeticamente, de seu refúgio toledano – a “Corte da saudade” – uma parte da terra lusitana:
 
“Mora a saudade em Toledo,
– onde eu a fui encontrar!
Fez a viagem do Tejo,
custou-lhe pouco a chegar!
 
(…)
 
Essa palavra «saudade»,
se um português a inventou,
foi em Toledo, –jurava!–
que ele a chorar a soltou!
 
(…)
 
Toledo, espelho da Morte,
nasceu de sangue rial.
Filha das águas do Tejo,
tem um irmão: Portugal!
 
Se Portugal de partisse
em dois bocados no mundo,
era p’ra o mar o primeiro,
Toledo herdava o segundo!” (“Canção de Toledo”).
 
Noutra parte, são ainda versos de António Sardinha:
 
“Na Corte da Saudade, certo dia,
bateu meu coração de português.
E assim batendo como ali batia,
foi p’ra sofrer e amar que Deus o fez!”
 
(Prosseguiremos).