(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca -parte 33)
751. Tal já ficou dito, a Lei brasileira n. 6.015/1973, em seus arts. 266 a 275, versa matéria própria do processo civil, que melhor estaria disposta no Código de processo civil, assim se dava ao tempo da codificação de 1939 (arts. 393 a 404).
Destina-se o processo de remição hipotecária previsto na vigente Lei nacional de registros públicos tanto (em sentido próprio) ao direito de remir de que seja titular o adquirente do imóvel hipotecado (art. 266), quanto (de maneira imprópria) ao do credor de segunda hipoteca (art. 270), a exemplo do que ocorria no Código de processo civil de 1939 (cf. seus arts. 393 e 400).
Embora possa reconhecer-se, nestas duas apontadas hipóteses, própria e imprópria, de demandas de remição –a que legitimados, pois, o adquirente e o credor de segunda hipoteca–, seu caráter constitutivo negativo (Pontes de Miranda. Tratados das ações, III, 61-3), há uma distinção relevante que merece salientar-se: o pleito do adquirente, na remição do prédio garantido, é de liberação do imóvel (vale dizer que se tem aqui o sentido próprio de remir, que é o de liberar, livrar, libertar; é a remição simpliciter, a constituição negativa simples, o direito de expurgação hipotecária), não se perdendo de vista, além disto, que o adquirente, se almejasse pagar o débito, teria a seu dispor a demanda consignatória, com efeito sub-rogatório da hipoteca em seu benefício (cf., a propósito, brevitatis causa, Ademar Fioranelli e Jersé Rodrigues da Silva in RDI 33).
Diversamente, o credor de segunda hipoteca –a despeito do uso do nome “ação de remição”– visa, neste quadro, à sub-rogação e não, propriamente, à remição do imóvel ou expurgação da hipoteca. Ou seja, trata-se aqui de uma constituição negativa limitada ao credor da hipoteca objeto: não é uma “verdadeira remição” (Afrânio de Carvalho). Diz graficamente Pontes de Miranda: “O erro está em se chamar remição à sub-rogação pessoal de que aí se fala” (III-64-7).
Valmir Pontes –já isto o indicamos– sustenta que a demanda de remição é especial, contenciosa e de natureza real, é dizer, uma ação que estaria destinada a reconhecer ou proteger um direito real –o do domínio do adquirente, o da sub-rogação pessoal pelo credor de segunda hipoteca–, e, a entender-se deste modo, o pleito de remição deve ajuizar-se no “foro da situação da coisa” (art. 47 do Cód.pr.civ. de 2015).
Sublinhe-se que se trata aí, em princípio, de competência funcional, e, pois, absoluta –ressalvada a exceção prevista na regra do parágrafo único do art. 47 do mesmo Código de processo civil, que não diz respeito à hipótese que recaia sobre direito de propriedade (lê-se nessa regra: “O autor pode optar pelo foro de domicílio do réu ou pelo foro de eleição se o litígio não recair sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, divisão e demarcação de terras e de nunciação de obra nova”). Se, como ficou dito, quanto ao pedido de remição pelo adquirente, o de que se cuida é de uma ação fundada em domínio, a competência para a demanda é absoluta (e, portanto, há de aferir-se no âmbito da qualificação registral). De maneira diversa, já não parece possa negar-se o caráter relativo da competência no quadro da pretensão sub-rogatória exercida por um credor sub-hipotecário.
O adquirente, ao propor a ação, deverá oferecer, “no mínimo, o preço por que adquiriu o imóvel” (art. 266 da Lei n. 6.015), condição que repete a da normativa anterior (art. 394). Diz José Roberto Ferreira Gouvêa, considerando a hipótese de a dívida ser inferior ao valor do imóvel, que o adquirente deve, em verdade, pagá-la, porquanto evidente a falta de seu interesse em expurgar a hipoteca por maior preço: “a remição pressupõe que a importância devida seja superior ao valor do imóvel, exigindo-se que a proposta iguale, no mínimo, o preço de aquisição” («Notas sobre a hipoteca no registro de imóveis», in Doutrinas essenciais, vol. V, p. 660). A pretensão de pagamento do débito, se não for acolhida na esfera extrajudicial, veicula-se por meio de ação consignatória e não de remição.
Sendo vários os adquirentes, exercitando um só deles a demanda de remição, sub-roga-se ele nos direitos dos outros coadquirentes, e, assim, caracteriza-se uma hipoteca sobre o prédio próprio, mas liberado em parte indivisa (Pontes de Miranda), a parte ideal do autor da ação. Assim, a pretensão, nesta hipótese, é de natureza mista: de remição simpliciter em parte e de sub-rogação noutra parte.
Citado, o credor hipotecário poderá adotar uma de três posturas: (i) assentir: “se o credor (…) não se opuser” expressamente ao pleito de expurgo (art. 267 da Lei n. 6.015/1973); neste caso, lavra-se um termo de pagamento e quitação; (ii) não comparecer –ou seja, permanecer revel (cf. par.ún. do art. 267)–, consignando-se o preço em depósito judicial; e (iii) “impugnar” o valor oferecido (art. 268), dentro no prazo do art. 335 do Código de processo civil (qual o de 15 dias).
Na hipótese de não oposição (ou seja, de assentimento), “o juiz ordenará, por sentença, o cancelamento da hipoteca” (parte final do art. 267 da Lei n. 6.015). Vale dizer que se expede, com a homologação judicial do acordo de vontades (é disto que se trata), uma ordem ou mandado de cancelamento do registro da hipoteca. Esse assentimento –ou não oposição–, como se disse, é uma declaração de vontade (um acordo de vontades), da qual se exige a satisfação dos supostos correspondentes (p.ex., assim os ilustra Pontes de Miranda: capacidade, defeitos).
Também quando o credor somente não comparece, procedendo-se ao depósito do preço em consignação, profere-se sentença, e ela é o título para averbar-se o cancelamento. O discrimen entre assentir com comparência e assentir sem comparecimento ao ato de oferta do preço não tem repercussão quanto ao título que ampara o cancelamento registrário, ainda que possa comportar discussão sobre sua maior ou menor força mandamental: nada impediria que o legislador resumisse as duas hipóteses ao termo “não oposição”; se as distinguiu, assim parece, foi apenas para o fim de referir a consignação do valor oferecido.
Essa consignação, com efeito, não é incidental, mas definitiva. Não tem a função de ensejar discussão ulterior no processo. Assim, ainda que a lei não o diga expressamente, feito o depósito do preço, de logo prolata-se a sentença, sem que haja oportunidade para a contestação que ocorre nas ações consignatórias (vidē art. 544 do Cód.pr.civ.). Não se trata, pois, de uma demanda de remição que pode converter-se de consignatória, mas de simples providência de admitir o depósito pelo não comparecimento do credor.
Assinale-se que as despesas da consignação correm à custa do credor, por força do que dispõe a regra do parágrafo único do art. 267 da Lei n. 6.015/1973. Já era exatamente assim no Código de processo civil de 1939 (par.ún. do art. 395, cujo texto, de resto, foi repetido, à letra, na Lei n. 6.015). Pontes de Miranda sustenta que o motivo deste encargo contra o credor é de que, no processo de remição do imóvel hipotecado, não se disputa sobre a culpa. Talvez possa acrescentar-se que a imposição das despesas estimula o assentimento expresso do credor quanto à oferta do preço.
Mas havendo resistência do credor, prosseguirá o processo, como se verá.