(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 35)
753. As regras dos arts. 270 a 273 da Lei n. 6.015 dizem respeito aos credores de hipotecas pósteras –que vêm referidos na lei com a expressão reduzida: credor de segunda hipoteca (ou “segundo credor”). Lê-se no art. 270 da Lei de registros públicos: “Se o credor de segunda hipoteca, embora não vencida a dívida, requerer a remição, juntará o título e certidão da inscrição da anterior e depositará a importância devida ao primeiro credor, pedindo a citação deste para levantar o depósito e a do devedor para dentro do prazo de cinco dias remir a hipoteca, sob pena de ficar o requerente sub-rogado nos direitos creditórios, sem prejuízo dos que lhe couberem em virtude da segunda hipoteca”.Já Clovis Beviláqua observara, comentando o art. 814 do Código civil brasileiro de 1916, que o termo credor da segunda hipoteca havia de entender-se de maneira expandida, porquanto “os direitos de todos os credores por primeiras e ulteriores hipotecas acham-se atendidos e bem resguardados, com as providências prescritas neste artigo [o art. 814] e no antecedente”.
No mesmo sentido, Valmir Pontes afirmou ser neste passo “impróprio” o termo “segunda hipoteca”, porque
“A prevalecer a literalidade dessa expressão, só o credor a quem pela segunda vez fora o mesmo imóvel hipotecado poderia valer-se do direito de remição da hipoteca anterior, quando é certo que o mesmo imóvel pode ser hipotecado, ao mesmo ou a diferente credores, dias, três ou mais vezes, tantas quantas comportar o ser valor venal ou de garantia (…)”.
Também este foi o entendimento de Carvalho Santos, examinando o disposto no art. 814 do Código de 1916: “Ainda aqui a expressão «segundo credor» deve ser entendida em termos hábeis, de modo a abranger qualquer que seja o credor subipotecário anterior”. E assim, por igual, Francisco Eduardo Loureiro: “Embora mencione o preceito «segunda» hipoteca, tem o alcance de hipoteca posterior, qualquer que seja o seu grau”.
754. O mesmo Código civil de 1916 previa, no caput do referido art. 814, que a hipoteca anterior poderia ser remida, “em se vencendo, pelo credor da segunda, se o devedor não se oferecer a remi-la” (a ênfase gráfica não é do original).
Com o advento da Lei n. 6.015, pôs-se em dúvida se o credor de segunda hipoteca poderia promover a remição (na verdade, como se verá, não se trata, propriamente, de remição; aqui estamos diante de uma cripto-remição), repetindo: se o credor de segunda poderia promover a remição ainda com anterioridade ao vencimento do débito hipotecário preferente (neste sentido, p.ex., Campos Batalha entendia possível, como se extraía da letra do art. 270 da Lei de registros públicos: “Se o credor de segunda hipoteca, embora não vencida a dívida, requerer a remição, etc.”). Diversamente, Valmir Pontes sustentou que a intercalada “embora não vencida a dívida” (art. 270 da Lei n. 6.015) se refere ao débito garantido pela segunda hipoteca, de tal sorte que sempre se exigiria estivesse vencido o tempo do pagamento da primeira garantia.
Como quer que seja, deu-se que, com a vigência do Código civil de 2005, reafirmou-se a orientação tradicional de que o pleito do credor de segunda hipoteca, voltado à suposta remição da hipoteca de primeiro grau, só possa exercer-se depois do vencimento do débito que esta hipoteca preferente garanta. Com efeito, lê-se no art. 1.478 do Código de 2005: “Se o devedor da obrigação garantida pela primeira hipoteca não se oferecer, no vencimento, para pagá-la, o credor da segunda pode promover-lhe a extinção, consignando a importância e citando o primeiro credor para recebê-la e o devedor para pagá-la; se este não pagar, o segundo credor, efetuando o pagamento, se sub-rogará nos direitos da hipoteca anterior, sem prejuízo dos que lhe competirem contra o devedor comum” (o destaque não é do original; cf. também o art. 1.477 do Código: “Salvo o caso de insolvência do devedor, o credor da segunda hipoteca, embora vencida, não poderá executar o imóvel antes de vencida a primeira”).
Assim, com o Código civil de 2005, consolida-se o sentido de que a pseudo-remição prevista no art. 270 da Lei n. 6.015/1973 e no art. 1.478 do Código consiste num remédio contra a inércia do credor da primeira hipoteca, que, deste modo, estaria obrigado a alienar seu crédito (cf. Carlos Roberto Gonçalves, que se remete à doutrina cônsona de Silvio Rodrigues). Nesta linha, observa Everaldo Cambler que o primeiro dos dois pressupostos específicos dessa pseudo-remição é exatamente “o vencimento do débito garantido pela primeira hipoteca” (o segundo requisito é o do depósito do valor correspondente à dívida garantida pela hipoteca preferente). No mesmo sentido é a lição de Luciano de Camargo Penteado: “é pressuposto do exercício efetivo do direito de remição o vencimento da primeira dívida hipotecária”.
Disse, a propósito, Clovis Beviláqua: “Estaria o credor por segunda hipoteca desarmado para a segurança de seu crédito, e sujeito ao capricho do primeiro credor, se a lei não lhe desse meio de garantir os seus interesses legítimos, de realizar o seu direito”. E prossegue:
“Até o vencimento da primeira hipoteca, ele [o credor da segunda] está privado de qualquer ação contra o devedor, ainda que a sua obrigação se ache vencida. Mas, chegado o momento de executar-se a primeira hipoteca, se o credor e o devedor não se movem, indiferente ao seu interesse, e ao dos outros, já não subsistem as razões que impediam a interferência do segundo credor: a dívida do primeiro já se venceu, e este já devia excutir o imóvel gravado, para se pagar permitir que os outros débitos fossem igualmente satisfeitos.”
Acontece que o segundo credor –enquanto tal– não pode excutir o imóvel hipotecado, exatamente porque seu direito hipotecário é de “segundo plano”, vale dizer, um direito postergado pela prioridade do credor de primeira, de onde segue este remédio da cripto-remição, que é liberatório não do ônus da hipoteca preferente, mas sim da preferência do primeiro credor.
754. Tal ficou referido, a hipótese em exame (a dos arts. 270 da Lei de registros públicos e 1.478 do Código civil de 2005) não é, sic et simpliciter, de remição. Assim o disse Luciano Penteado: “O credor da segunda hipoteca extinguirá a primeira, remindo parcialmente o imóvel, para que sua garantia se torne a primeira (…)”. Isto, em rigor, não é remição (rectius: não é extinção), mas, sim, “sub-rogação nos direitos da hipoteca anterior” (Id.).
Disso adveio que Ademar Fioranelli e Jersé Rodrigues da Silva hajam dividido a remição hipotecária em suas espécies. Uma, a liberatória, que, efetivamente, desonera da garantia que recai sobre o imóvel. Outra, a sub-rogatória, em que, preservado o ônus real, dá-se a substituição do primeiro pelo segundo credor hipotecário.
Está-se diante de uma subrogação pessoal, ou seja, da substituição do primeiro credor hipotecário pelo credor da segunda hipoteca, a quem último são transferidos os direitos da garantia “remida”. Salientou-o Valmir Pontes, observando que essa subrogação não diz respeito apenas aos direitos creditórios, mas também ao direito real de garantia (ou seja, ao da primeira hipoteca).
Ensinou Carvalho Santos que essa subrogação, liberando o imóvel do ônus anterior, vinculou-o “de pleno direito ao imediato”, e nisto viu pressupor-se “o pagamento da dívida primeira hipoteca e, pois, sua extinção, com a consequente extinção da garantia hipotecária”. Embora o art. 1.478 do Código civil de 2005 se refira expressamente à extinção da primeira hipoteca, o fato é que ela não se extingue, apenas traspassando-se ao segundo credor, que, com isto, somente afasta e substitui o primeiro credor hipotecário (neste sentido, p.ex., cf. Loureiro e Cambler).