O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 12)
Entre os elementos formadores da pátria –e, pois, a merecer o culto da piedade patriótica– está a língua, cujo papel seria difícil mitigar na sedimentação histórica dos valores da comunidade política, tendo em vista a emérita função pedagógica que a linguagem exerce.
Esta importância da língua das comunidades ocupa uma parte considerável das pesquisas históricas: Lewis MUMFORD, no imperdível A cidade na história (de que há edição brasileira: a quarta delas é da Martins Fontes, de São Paulo, datada de 1998), diz que não são apenas remanescentes físicos o que interessa na busca das origens, mas também os resíduos de linguagem e de ritual. Daí a prudente sugestão de Tzvetan Todorov: “Que melhor introdução à compreensão das paixões e dos comportamentos humanos do que uma imersão na obra dos grandes escritores que se dedicam a essa tarefa há milênios?” (A literatura em perigo. 9.ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019, p. 93).
Aristóteles tratou da linguagem especialmente em dois livros (Retórica e Arte Poética), mas foi na Política que ele observou servir a palavra para fazer manifesto o bom e o mal, o justo e o injusto, de sorte que a comunidade destas coisas constituísse a família e o estado. E é, de fato, na continuidade substancial da língua que se solidam os povos, porque, servindo a palavra para comunicar o pensamento, a vontade e a emoção (Miriam Joseph. O Trivium. São Paulo: Realizações, 2008, p. 31), é ela o veículo da comunhão dos membros de cada comunidade.
Daí vem que a perversão da linguagem acarrete a perversão dos conceitos; de fato, assim o fez ver um autor contemporâneo, Romano Amerio, as transposições semânticas e os neologismos são meios frequentes de ideias novas. Tenha-se em conta uma passagem emblemática, a propósito, no Antigo Testamento (no Livro de Nehemias ou Segundo Livro de Esdras), em que se avista a admissão do então objetado matrimônio misto mercê da confusão de línguas, pois que, entre o povo, uns falavam o asmodeu (ou azótico: a língua de Azot), e outros, o hebreu (13-24).
Antes de avançarmos no tema específico da linguagem como elemento da formação da pátria e da piedade correspondente, parece convir considerar, ainda que muito brevemente, a função da linguagem, a função da palavra –até porque temos a palavra como instrumento de trabalho dos notários (a quem designadamente se dirigem estas linhas)–, e para tanto valhamo-nos aqui do que ensinou Aristóteles, no Livro I do Peri Hermeneias, ao indicar que
– as palavras escritas são símbolos ou signos das palavras orais;
– as palavras orais, paixões da alma;
– as paixões da alma, imagens das coisas do mundo, entre as quais nos encontramos a nós próprios.
Esses signos são diferentes para todos os homens, mas as coisas que nos cercam são, contudo, as mesmas para todos os homens, e, bem por isto, as paixões da alma são as mesmas para todos os homens (paixões estas que, como se disse, são imagens das coisas do mundo).
Carlos Nougué –autor da já célebre Suma gramatical da língua portuguesa e que é, hoje, sem nenhum favor, o mais valioso de nossos pensadores da linguagem– diz que há quatro pontos a considerar nesta síntese da doutrina de Aristóteles sobre a palavra:
– primeiro: as coisas, que estão à nossa volta são elas próprias reais (é dizer, têm entidade; existem porque são);
– segundo: as palavras escritas;
– terceiro: as palavras orais;
– quarto: as imagens das coisas, ou seja, aquilo que significamos com as palavras, tanto escritas, quanto orais) e que não são as coisas diretamente, mas só as imagens delas (assim, as palavras orais são signos das imagens das coisas na alma, e não, todavia e diretamente, imagens das próprias coisas; por sua vez, as as palavras escritas são signos das orais).
É de Nougué a feliz observação de que pode compreender-se uma língua estrangeira, porque as paixões das almas são as mesmas para todos os homens; essas paixões são impressões das coisas nos homens, a partir dos sentidos humanos (equivale a dizer: as coisas imprimem em nossos sentidos certas paixões ou imagens delas próprias; «paixão», aqui, significa «imagem impressa nos sentidos»).
Ora, se as coisas são as mesmas, e se as paixões são a imagem dessas coisas, então elas só podem ser as mesmas em todos os homens; são imagens porque imitam. De maneira que pode concluir-se não haver uma relação direta das palavras com as coisas do mundo real, mas apenas uma sua relação indireta. Ou seja: a linguagem é um artefato, é um produto da arte humana, e não algo emanante da natureza das coisas.
A boa arte humana da linguagem distingue-se pela ordem, tanto quanto a perversão dessa arte se distingue pela desordem, desordem que há de vários modos, entre os quais já anunciava a desordenação ou vício da loquacidade, contra o qual, p.ex., se levantara já S. Agostinho, em De civitate Dei (I-3,6), dizendo que Juno, a rainha dos deuses pagãos de Roma, falava qual mulher irritada, aos borbotões; modernamente, Elias Canetti, no Auto de fé, dirá que “perder-se em palavreado é o pior perigo que pode ameaçar um sábio”, e ainda Nicolás Gómez Dávila, nos Escolios a un texto implícito (Santa Fé de Bogotá: Villegas, 2001, p. 40), afirmará que “a prolixidade não é o excesso de palavras, mas a escassez de ideias”.
Outros vícios há que pervertem a linguagem, tal, v.g., o da excessiva labilidade (inconstância), pois que ela, sendo produto da arte humana, é coisa artificial, contingente e mutável, como o é tudo o que é feito pelo homem (o poiético, o factio da arte; daí o termo artefactum, o «feito da arte»), mas, instalada que seja numa dada comunidade, sua perseverança –sua capacidade de permanecer– é fundamental para a identidade cultural dessa comunidade. O amor (ou melhor: o desamor) que há na instabilidade da palavra é um fator de desconstrução cultural.
Prosseguiremos neste assunto.