(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 37)
757. A perempção da hipoteca –assim já ficou dito– é sua defunção ou perecimento pelo decurso do prazo máximo da garantia.
Embora, por dotado de elasticidade, possa o domínio distender-se (exitus) em seus diversos atributos ou vários direitos reais menores –entre os quais se contam os limitadores da propriedade (servidão, penhor, hipoteca, anticrese, etc.)–, ele, o domínio, ainda que se flexibilize, tende a regressar à sua forma originária (redintegratio dominii; reditio ad unum). Este motivo é, no plano doutrinário, o que mais parece justificar o instituto da perempção hipotecária, a despeito de, no plano experiencial, ser de maior relevo o motivo de resguardo da publicidade imobiliária, como se verá adiante.
Alguns direitos reais são temporários por sua própria natureza (assim, p.ex., o usufruto e a habitação); outros têm duração limitada reflexa, por serem acessórios de um crédito –que é condição de sua existência, crédito a cuja satisfação se destinam e de cujo adimplemento lhes resulta a superfluidade (tais, v.g., o penhor e a hipoteca).
Mas, sendo possível a protelação do crédito –ou seja, a dilação de seu adimplemento– e com a expansão de seu prazo o aumento reflexo (convencional) do tempo de vigor da hipoteca que lhe corresponda, parece prudente estabelecer, em lei, um tempo máximo de vitalidade da garantia. Com isto, distinguem-se três períodos de tempo: (i) o do crédito; (ii) o da hipoteca pactuada (que nada impede ser um prazo inferior ao do crédito); (iii) o tempo limite da garantia, assinado em lei.
Propriamente, a perempção da hipoteca diz respeito ao decurso desse prazo legal máximo, embora, de maneira imprópria (lato sensu), não seja incomum que a toda extinção da hipoteca (i.e., sua morte) haja referência à perempção.
758. O Código civil brasileiro vigente prevê, em seu art. 1.424, que os contratos de penhor, anticrese ou hipoteca mencionem, sob pena de não terem eficácia, “o prazo fixado para pagamento” (inc. II). Essa norma já se continha no Código civil anterior, no inciso II de seu art. 716, e a doutrina destacou-lhe o caráter essencial à caracterização do direito real, ainda que sua falta não acarretasse a nulidade do contrato: “Sem esses requisitos –disse Clóvis Beviláqua–, o contrato não é nulo, mas não gera direito real. Vale, apenas, entre as partes, que nele intervêm. Porém, como esses contratos somente se celebram para a constituição de direitos reais, pode afirmar-se que não há garantia real, sem os requisitos exigidos pelo artigo 761”. Não diversamente, lê-se em Carvalho Santos: “Os contratos de segurança real, se não contêm as declarações neste artigo [art. 761] exigidas, não são nulos, mas apenas não têm valor contra terceiros”.
Dentro no prazo convencionado, pode ocorrer a prorrogação da hipoteca (protelatio obsidis), assim o prevê a primeira parte do art. 1.485 do Código civil em vigor: “Mediante simples averbação, requerida por ambas as partes, poderá prorrogar-se a hipoteca, até 30 (trinta) anos da data do contrato” (este prazo trintenal foi estabelecido pela Lei n. 10.931, de 2-8-2004, aumentando o tempo vintenário previsto na redação original do Código). Símile disposição –referindo o prazo de 20 anos– também se encontrava no Código de 1916 (art. 817).
Observe-se que o tempo de 30 anos como limite máximo da vida hipotecária era o indicado nos Decretos ns. 169-A e 370, ambos de 1890 (respectivamente, § 2º do art. 9º e art. 215).
Cabe aqui um discrimen relevante: não diz a lei que a averbação da protelatio obsidis deva ocorrer, de modo necessário, dentro no prazo da vigência convencionada para a hipoteca. Vale por dizer que nada impede, presente o acordo dos contratantes (“requerida por ambas as partes”), prorrogue-se a hipoteca após o vencimento de seu prazo convencional, desde que não se tenha ultrapassado o trintênio.
Há, contudo, uma questão a enfrentar sobre a diferença de efeitos nestas duas prorrogações: se a protelação se averbar antes do vencimento da hipoteca prorrogada, sustentam, p.ex., Azevedo Marques e Carvalho Santos, que seu grau prevalecerá contra as hipotecas pósteras; se, porém, o averbamento ocorrer “depois do vencimento, não impedirá que os subipotecários reputem vencida a primeira hipoteca e usem do direito de remi-la, a fim de poderem excutir o imóvel” (Azevedo Marques).
Superado que seja o prazo trintenário de uma hipoteca voluntária, só poderá subsistir a garantia “reconstituindo-se por novo título e novo registro; e, nesse caso, lhe será mantida a precedência, que então lhe competir (“segunda parte do art. 1.485 do vigente Cód.civ.bras.).
759. Antes de disputar sobre o caráter da manutenção de precedência hipotecária –“que então lhe competir”– inscrita na parte final do Código civil, interessa aqui considerar o motivo formal da perempção da hipoteca.
Por que, com efeito, fluiu da prudência legislativa estabelecer um tempo máximo –e peremptório– para as hipotecas convencionais? Já o vimos que, em parte (substantivamente), isto se deve à tendência de reintegração dominial (redintegratio dominii), porque é próprio do domínio uma inclinação centrípeta, de senhorio pleno sobre as coisas. Mas há algo mais, de caráter formal, que, segundo a doutrina, diz exatamente com o registro imobiliário.
Veja-se em Washington de Barros Monteiro, com expresso apoio na doutrina de Frédéric Mourlon: “Se o registro perdurasse indefinidamente, haveria momento em que se tonaria impossível descobri-lo no registro imobiliário. Foi para facilitar-lhe a busca e, portanto, no interesse publicidade, que a lei estabeleceu tal preceito”.
Antes dele, entre nós, já Carvalho Santos ia no mesmo sentido: “Justifica-se a disposição [do art. 817 do Cód.civ. de 1916, sobre a perempção hipotecária], porque a perpetuidade ou a longa duração das inscrições acarretaria graves inconvenientes, dentre os quais se destaca a dificuldade da pesquisa dos registros para conhecer o estado da propriedade imobiliária, o que, em última análise, redundaria em quase nulificar a sua finalidade, pela incerteza que trariam os resultados de qualquer indagação nesse sentido”.
E ainda agora, lê-se nas lições de Carlos Roberto Gonçalves: “Foi, portanto, para facilitar-lhe a busca e atender ao princípio da publicidade inerente aos registros públicos, que a lei estabeleceu tal limitação temporal. Mesmo permitindo que a prorrogação seja feita diversas vezes, não admite ela que a soma de todos os períodos parciais ultrapasse os trinta anos, contados a partir do contrato pelo qual se ajustou a hipoteca”.
Tem-se, pois, em pauta a relevância da graficidade ou visibilidade do registro (mais exatamente, agora, no caso brasileiro, o do caráter gráfico da matrícula). Isto poderia solver-se com a implantação de uma coluna marginal na matrícula em que se pudessem, em paralelo com cada registro ou averbação, inscrever anotações remissivas, entre elas, para o quanto aqui interessa, a de averbamentos de prorrogação da hipoteca ou a de decurso de seu prazo decadencial, a perempção da hipoteca, instituindo-se, pois, de maneira explícita (porque implicitada já o está no sistema brasileiro), a inscrição provisória, cuja ineficácia não depende de nenhum registro ou averbação.
Por outro lado, com o registro eletrônico já não haverá maior dificuldade para buscas em matrículas extensas, remanescendo, isto, sim, exatamente pela falta de expresso acolhimento legal da técnica da inscrição provisória, o que se tem designado de incerteza profana (embora talvez o adjetivo não corresponda bem à totalidade das pessoas que tenham essa incerteza). Trata-se da insegurança de orientação ante à só falta de um averbamento relativo à extinção da hipoteca. Não deve desprezar-se essa insegurança, já porque o registro não é feito para juristas, mas para todo o povo, já porque a um sistema formal de garantia, dirigido à consecução da segurança jurídica (e, pois, à dação de certeza no e do direito), não parece razoável a convivência com a insegurança.