(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 39)
761. Transcorrido o prazo de 30 anos que é o máximo para a vigência da hipoteca –e sem que se tenha averbado sua protelação ou registrado um título para sua reconstituição (art. 1.485 do Cód.civ.bras.)–, que fazer com o registro da garantia?
É prevalecente o entendimento de o prazo trintenário indicado no art. 1.485 do vigente Código civil brasileiro ser de caducidade (assim, brevitatis causa, Francisco Eduardo Loureiro: “O prazo de trinta anos é de natureza decadencial, de modo que não se aplicam às causas impeditivas, suspensivas e interruptivas aplicáveis à prescrição”).
Prazo de caducidade, ou seja, configura-se como um período de tempo em que não tem relevância a negligência do titular do direito afetado: pouco importa, neste quadro, que a falta de exercício de um direito esteja ou não justificado; isto não tem relevo para a caducidade. Assim, pode dizer-se, numa expressão popular, que o direito correspondente “conta-se pela folhinha”, pela só passagem do tempo, sem que haja necessidade de –mais que isso, sem que haja pertinência em– sindicar as razões pelas quais se deu o não exercício do direito. Daí que, não havendo fundamento para suspender ou interromper o prazo decadencial da perempção da hipoteca, seu registro também se influa do só transcurso do aludido prazo de 30 anos.
Uma coisa, entretanto, é a caducidade no plano substantivo –é dizer, a caducidade dos direitos referíveis aos fatos objeto das inscrições– e outra é a caducidade das próprias inscrições (inscriptiones caducæ). Aquela emerge ope legis, com o só decurso do tempo. Mas, diversamente, depende da lei positiva a caracterização da caducidade tabular, por ser esta adjeta à anterior e corresponder a uma exigência de publicidade coram omnibus (i.e., em face do todos). Desta maneira, o direito positivo é que terminará por solver o caráter operativo da caducidade registral, ou seja, se ela se realiza ipso iure, automaticamente, ou se seus efeitos estarão pendentes de uma inscrição de cancelamento.
Nos sistemas em que haja explícita adoção da metódica das inscrições provisórias, a caducidade tabular atua em simetria com a caducidade substantiva: extinto o direito, pelo decurso do prazo de seu exercício, extingue-se seu registro (o cancelamento, neste caso, tem apenas um efeito de publicidade-notícia, senão mesmo o de ser um indicativo meramente regularizador do histórico registral).
No Brasil, a lei de regência não perfilhou, em geral, a mecânica das inscrições provisórias no registro imobiliário. Muito controversa, pode disputar-se sobre a existência da provisoriedade quanto à prenotação (cf. art. 188 da Lei n. 6.015/1973). Mais caracterizada, porém, é a situação prevista no art. 238 dessa Lei n. 6.015: “O registro de hipoteca convencional valerá pelo prazo de 30 (trinta) anos, findo o qual só será mantido o número anterior se reconstituída por novo título e novo registro”.
Desta maneira, aparenta existir simetria entre a caducidade substantiva (ar. 1.485 do Cód.civ.) e a expressa caducidade tabular (art. 238 da Lei n. 6.015); Francisco Loureiro, em comentário ao art. 238 da Lei n. 6.015/1973, chega a falar em “estreita simetria” entre essas normas. Todavia, à falta de expressa previsão sobre a dispensa de averbação de cancelamento dos registros caducos, parece prevalecer a exigência da regra do caput do art. 169 da Lei n. 6.015 (“Todos os atos enumerados no art. 167 são obrigatórios…”), abarcando a obrigatoriedade do averbamento “da extinção dos ônus e direitos reais” (n. 2 do inc. II do art. 167).
Nesta linha, é da doutrina de Ademar Fioranelli que o registro da hipoteca convencional valha pelo prazo de 30 anos, de tal sorte que, uma vez vencido este trintênio legal, sem a constância de averbação ou registro da protelação da hipoteca, poderá (ou deverá) “ocorrer o cancelamento de ofício pelo Cartório, independentemente do requerimento do interessado ou de decisão judicial”. Não é, pois, e só que a hipoteca tenha valor pelo prazo máximo de 30 anos, mas que também seu registro tenha símile valor pelo prazo trintenal, prazo este, diz ainda Fioranelli, que “começa a ser contado da data da inscrição no Registro de Imóveis” (cf., abaixo, a controvérsia sobre este ponto).
Se não se discute, pois, caiba averbar o cancelamento (por força das previsões conjugadas do art. 169 com o n. 2 do inc. II do art. 167, da Lei de registros públicos), pende, no entanto, apreciar se esta averbação pode (ou mesmo deve) realizar-se ex officio, ainda que nada impeça, à maneira de exortação (exhortatio ad officium), haja a solicitação dos interessados.
Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho, apontando a controvérsia do tema, diz que
“Apesar de tecnicamente válida a posição de que poderá haver o cancelamento pelo oficial registrador, inclusive por ato de ofício, sem necessidade de intervenção judicial, como já decidido pelo CSM-SP, a prudência recomenda que, pelo menos, haja requerimento da parte devedora.”
Lê-se, mais incisivamente, na doutrina de José Roberto Ferreira Gouvêa, que “o prazo da perempção da hipoteca é fatal, não suscetível de suspensão ou interrupção”, de maneira que, “com a perempção, que se conta a partir da inscrição, não pode mais ser excutida a hipoteca” e, prossegue o autor, “cabe ao Oficial do Registro Imobiliário cancelar a hipoteca até mesmo de ofício” (também nesta mesma linha é a autorizada opinião de Narciso Orlandi Neto).
No mesmo sentido, previu a Corregedoria permanente dos registros de imóveis da Capital de São Paulo, em provimento editado antes da vigência da Constituição federal de 1988 (esta ressalva é de todo importante, para quem tem sustentado, após o vigor do Código político de 1988, a necessidade de observância das normas constitucionais de repartição da competência legislativa), repete-se: em provimento datado de 1º de fevereiro de 1988, a 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo previu “averbar-se, por instância ou ex officio, o cancelamento do registro de hipoteca perempta” (melhor se teria dito, porém: o cancelamento do registro perempto da hipoteca).
Falou-se acima na simples contagem do prazo “pela folhinha”, é dizer, pelo só manejo do calendário, sem a necessidade de sindicância de outros fatos. Mas, ainda que assim seja (e é, neste caso), há uma questão a considerar: qual o termo a quo da contagem desse prazo trintenário que importa para o reconhecimento da perempção? Já ficou dito que Ademar Fioranelli e José Roberto Ferreira Gouvêa, afirmaram –note-se bem: antes da vigência do novo Código civil brasileiro– e à luz do art. 238 da Lei n. 6.015, de 1973, que o prazo se contaria da inscrição ou constituição da hipoteca e não da contratação ou instituição da garantia real. Diversamente e após o advento do Código civil de 2005, Francisco Eduardo Loureiro –comentando esse mesmo art. 238 da Lei n. 6.015– diz que o prazo tem por termo inicial a data do contrato e não a do registro da hipoteca, “pois a lei [refere-se ao art. 1.485 do Cód.civ.bras.] expressamente assim estabelece”.
Parece ter razão Francisco Loureiro: o art. 817 do Código civil de 1916 mencionava a possibilidade de perfazimento do contrato contados 30 anos de sua data; o art. 238 da Lei n. 6.015, que é de 1973, considerou a vigência do registro pelo prazo de 30 anos, sem remissão à data do contrato, o que implicou a adequada compreensão de que esse prazo era o do próprio registro; posteriormente, todavia, com o Código civil de 2005 voltou-se, no art. 1.485, à referência à “data do contrato”, qual se dera no art. 817 do Código anterior.
Ad summam, aparenta razoável que a averbação do cancelamento do registro perempto da hipoteca convencional faça-se, propter officium, tanto que escoado o trintênio fluente, agora –e novamente– desde a data do contrato.