(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca -parte 40)
762. Já ficou visto, pois, que, seja mediante rogação, seja propter officium, é possível –mais que isto, é exigível (arg. do art. 169 da Lei brasileira n. 6.015, de 1973) a averbação do cancelamento do registro relativo à hipoteca perempta.
Em outros termos, o de que se trata neste passo é de saber se a hipoteca perempta implique, ipso facto, no correspondente registro perempto da mesma hipoteca.
Antecipamos admitir-se esta correspondência (vidē n. 761, retro), quando implicitado, no provimento de 1º de fevereiro de 1988 da 1ª Vara de Registros Públicos da Comarca de São Paulo, dispôs-se o cabimento de “averbar-se, por instância ou ex officio, o cancelamento do registro de hipoteca perempta”. A implicitude concluía-se da admissão do cancelamento propter officium, porquanto nada mais teria de confirmar o registrador do que o simples decurso do prazo de 30 anos sem a averbação protelatória ou o registro de novo título da garantia.
Assim, cabe considerar se a caducidade do registro da hipoteca atua simetricamente com a caducidade substantiva da garantia: reitere-se, a propósito, que Francisco Eduardo Loureiro sustenta haver “estreita simetria” entre as normas do art. 1.485 do Código civil brasileiro e do art. 238 da Lei n. 6.015/1973, esta, referente à caducidade tabular, aquela, à caducidade substantiva.
763. O problema que aqui se põe, entretanto e à partida, é o da falta de adoção geral da metódica das inscrições provisórias – ou seja, inscrições que perdem sua eficácia pelo só decurso do tempo, sem que seja necessária a averiguação e a confirmação de fatos extratabulares (lê-se em Lacruz Berdejo: “la caducidad deja ope legis sin valor alguno un asiento, en virtude del transcurso del tiempo”).
À inscrição provisória não se exige, por sua própria natureza, concorra um ato explícito de cancelamento, embora esse cancelamento possa admitir-se, à maneira de simples publicidade-notícia para o atendimento da melhor visibilidade histórica das inscrições. É fato que, ordinariamente, transcorrido o prazo de vitalidade de uma inscrição provisória, o status que por ela se publica extingue-se, afligido de caducidade, sem que se reclame um efeito publicitário resultante de uma inscrição de cancelamento posterior. Todavia, nada impede, por certo, prevejam as leis de regência –facultativa ou obrigatoriamente– a inscrição do cancelamento.
Tome-se em conta este exemplo que se recolhe no direito argentino. O art. 33 da Lei n. 17.801/1968 (de 28-6), tratando das inscrições provisórias, preventivas e condicionais, prevê, em sua parte final, que
“el cumplimiento de condiciones suspensivas o resolutorias que resulten de los documentos inscriptos, así como las modificaciones o aclaraciones que se instrumenten con relación a los mismos, se harán constar en el folio respectivo por medio de notas aclaratorias, cuando expresamente así se solicite.”
Desta maneira, numa primeira compreensão tem-se aí prevista uma inscrição negativa (a nota aclaratoria) que se enuncia sob o modo de mera faculdade do interessado (“cuando expresamente así se solicite”).
Pode a lei, ao revés, preceituar a inscrição negativa com caráter obrigatório, e isto é o que parece dar-se no direito brasileiro vigente, como já se deixou dito, conjugando-se a previsão do n. 2 do inciso II do art. 167 da Lei n. 6.015 –que se refere à extinção dos ônus e direitos reais com a regra enunciada no caput do art. 169 da mesma lei: “Todos os atos enumerados no art. 167 são obrigatórios…”.
Adotada que seja a tese de simetria entre a caducidade substantiva da hipoteca e a caducidade de sua correspondente inscrição, desnecessária seria, por natureza, a averbação de cancelamento do registro dessa hipoteca, embora prevista compulsoriamente na legislação de regência.
A questão, entretanto, agudiza-se por dois motivos: o primeiro está em que não é próprio, ainda que a situação possa sugerir alguma analogia, dizer que o registro de uma hipoteca seja tipologicamente de caráter provisório; é uma inscrição definitiva, e só de maneira analógica poderia pensar-se na aplicação da mecânica das inscrições provisórias. A clave, com efeito, seria comum: a caducidade ante o só decurso do tempo, de sorte que, vencida a garantia, inócua seria sua inscrição correspondente.
O segundo motivo, no Brasil, de controverso estorvo à caducidade registral simétrica à substantiva que aflija a hipoteca está na regra do art. 252 da Lei n. 6.015/1973, que dispõe sobre a legitimação registral –ou, em outras palavras, estabeleceu uma presunção relativa qualificada de exatidão e integralidade dos registros: “O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”.
Tem-se, pois, que uma inscrição positiva, enquanto não cancelada (i.e., não atingida por uma averbação de cancelamento), “produz todos os efeitos legais”, ainda quando o título esteja, entre outras hipóteses, provadamente extinto.
O que se tem à vista é a conjectura de uma hipoteca perempta –vale dizer, uma garantia a cujo respeito se superou o prazo de 30 anos sem averbar-se sua protelação ou registrar-se novo título que lhe corresponda–, sem que, todavia, se haja averbado o cancelamento de seu registro constitutivo. Ora, a aplicar-se, à letra, o disposto no art. 252 da Lei n. 6.015 ter-se-ia o reconhecimento de uma relação assimétrica entre a ordem substantiva referente à hipoteca e sua correspondência registrária, dando-se que, de algum modo (em benefício de terceiros), o registro haja de ter prevalência: com efeito, o significado comum da regra desse art. 252 está em restringir formalmente a prova negativa da presunção registrária, inibindo que, contra tabulam, possam opor-se sem mais, com força conclusiva bastante, provas de caráter extrarregistral contrárias: títulos, enfim, desfeitos, anulados, extintos ou rescindidos, públicos ou ocultos, marginados do sistema formal dos registros públicos.
Mas esta regra do art. 252 da Lei n. 6.015 deve aplicar-se à situação da hipoteca perempta?
Embora não haja, no enunciado desse art. 252, indicação de exceções, não se impede, bem ao revés, que se perscrutem ressalvas a sua incidência, sejam elas sistêmicas, sejam pontuais.
O at. 238 da Lei n. 6.015, ao prever que o registro da hipoteca valha pelo prazo de 30 anos, findos os quais só se mantenha a garantia quando se dê sua reconstituição por novo título e novo registro, parece indicar uma exceção à regra do art. 252 da mesma Lei n. 6.015. É que esse art. 238 dispõe sobre um status especial do registro hipotecário, assinando-lhe um prazo determinado (de 30 anos), de tal sorte que, vencido esse prazo –suposto que não se tenha reconstituído o ônus real, com novo título e novo registro–, a inscrição anterior não tem mais validade. Trata-se, portanto, de uma caducidade tabular ope legis, que, sendo objeto de regra especial, parece prevalecer sobre a regra geral do art. 252 da Lei n. 6.015.
A só circunstância de ser obrigatória a averbação do cancelamento de um registro não importa, por natureza, na vigência da inscrição positiva, certo que o regime consequencial da falta de averbamento da inscrição negativa não é sempre o da permanência dos efeitos jurídicos do registro positivo, senão que pode ser também cominatório de outras espécies de sanção: p.ex., a da responsabilidade civil pela mora na promoção do ato registral.
De conseguinte, parece haver, entre a caducidade substantiva da hipoteca (a hipoteca perempta) e a caducidade correspondente de sua inscrição (o registro perempto da hipoteca) a “estreita simetria” apontada por Francisco Loureiro.