O inventário extrajudicial
 
Em que pese a incidência do princípio da saisine, determinando a transmissão automática da herança no momento de abertura da sucessão (art. 1784 do Código Civil), é necessário um procedimento posterior de apuração de ativos e passivos, para permitir o pagamento de eventuais dívidas e a partilha aos herdeiros.
 
De fato, com a abertura da sucessão, os bens são transferidos aos sucessores, mas como um todo unitário e indivisível (art. 1.790, parágrafo único, do Código Civil). Daí a necessidade do inventário e da partilha, permitindo a divisão por quinhões a cada herdeiro e a consolidação da transmissão patrimonial¹.
 
No que diz respeito ao aspecto procedimental, antes da lei 11.441/2007, os inventários processavam-se exclusivamente no âmbito judicial. Porém, com a entrada em vigor da referida Lei – que, dentre outras providências, modificou o art. 982 do antigo Código de Processo Civil de 1973 – conferiu-se um inédito protagonismo aos notários na operacionalização da transmissão causa mortis, tanto na etapa do inventário quanto da partilha.
 
Assim, admitiu-se o processamento dos inventários e partilhas também pela via extrajudicial, possibilidade preservada pelo atual Código de Processo Civil (art. 610, §§ 1º e 2º)². Desde 2007, portanto, o procedimento de apuração do patrimônio líquido deixado pelo falecido, culminando na partilha aos herdeiros, pode ser realizado não apenas em juízo, mas também por escritura pública, perante o tabelião de notas de livre escolha dos interessados.
 
Vale dizer, desde que atendidos os pressupostos e requisitos legalmente fixados, os interessados poderão escolher entre a via judicial e a extrajudicial para a operacionalização do inventário e da partilha³.
 
A escritura, assim concebida, constitui título hábil para o registro imobiliário e demais órgãos e repartições públicas e privadas para a transferência de bens e direitos, bem como para promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores, independentemente de homologação judicial4.
 
Essa inovação se alinhou a uma tendência crescente nas últimas décadas em prestigiar a atividade dos notários e registradores, ampliando seu âmbito de atuação. Isso não apenas pela destacada celeridade e segurança jurídica que as serventias extrajudiciais garantem, mas também pelo consequente desafogamento do Poder Judiciário, que pode então se concentrar na resolução de questões efetivamente litigiosas.
 
É neste ponto, aliás, que reside a nota característica dos procedimentos atribuídos às serventias extrajudiciais: a ausência de litigiosidade. Por isso, a lei exige como pressuposto para a viabilidade do processamento extrajudicial do inventário que as partes sejam plenamente capazes e concordes, exigindo também a inexistência de testamento válido e eficaz deixado pelo falecido.
 
A inexistência de testamento como pressuposto para a via extrajudicial
 
Como acima mencionado, a opção pela via extrajudicial não se compatibiliza com a existência de litigiosidade, daí se exigir a concordância entre os interessados. Estes, até para que possam expressar sua concordância, devem ser plenamente capazes. O art. 610 do CPC é claro nesse sentido, afirmando, em seu § 1º, que o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública “se todos forem capazes e concordes”. Essa exigência complementa o disposto no caput, segundo o qual impõe-se a via judicial se houver testamento ou interessado incapaz.
 
Do referido caput, se depreende o outro pressuposto do inventário extrajudicial, qual seja, a inexistência de testamento válido e eficaz do falecido.
 
Visando operacionalizar essa exigência, o provimento 56/2016 do Conselho Nacional de Justiça tornou obrigatório, para a lavratura de escrituras públicas de inventário extrajudicial, a juntada de certidão acerca da inexistência de testamento deixado pelo autor da herança. Tal certidão é expedida, a pedido de interessado e mediante apresentação da certidão de óbito, pela CENSEC – Central Notarial de Serviços Compartilhados, que engloba, dentre seus módulos de informação, o Registro Central de Testamentos OnLine (RCTO), responsável por recepcionar informações sobre a lavratura de testamentos públicos e instrumentos de aprovação de testamentos cerrados em todo o Brasil5.
 
Flexibilização da exigência: precedentes
 
A regra do caput do art. 610 do Código de Processo Civil, no que diz respeito à imposição da via judicial ante a existência de testamento, não foi considerada absoluta pela doutrina nem pela jurisprudência. Cite-se, por exemplo, o Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil do CJF, segundo qual “após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”.
 
Também nessa linha se posicionaram as Corregedorias das Justiças dos diversos estados, editando normas que igualmente excepcionam a referida exigência.
 
É o caso das normas extrajudiciais paulistas, que, com a edição do Provimento 37/20166, passaram a permitir o processamento do inventário, pela via administrativa, quando houver expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento do testamento, com todos os interessados capazes e concordes7. Regra idêntica foi incorporada à Consolidação Normativa do Rio de Janeiro8, a partir do Provimento 24/2017.
 
As normas paulistas também admitiram o inventário extrajudicial nas hipóteses de testamento revogado ou caduco ou, ainda, quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento, observadas a capacidade e a concordância dos herdeiros9.
 
Porém, nesse caso, cabe ao notário, de forma prévia, solicitar a certidão do testamento, a fim de constatar a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração de caráter irrevogável, caso em que a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada, processando-se o inventário exclusivamente pela via judicial10.
 
De forma semelhante determinou o Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina, tanto ao permitir o inventário por escritura pública na hipótese de testamento revogado, caduco ou invalidado por decisão judicial transitada em julgado¹¹, quanto ao admiti-lo se já ocorrida a abertura do testamento em juízo e o cumprimento de todas as disposições testamentárias¹².
 
Posicionamento do STJ
 
A questão da compatibilidade entre o processamento extrajudicial do inventário e a preexistência de testamento foi recentemente abordada pela 4ª Turma do STJ, por ocasião do julgamento do REsp 1.808.767/RJ, ocorrido em 15/10/2019 e relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão.
 
A Corte concluiu, de forma unânime, pela possibilidade de inventário extrajudicial mesmo havendo testamento do falecido, desde que este tenha sido previamente registrado judicialmente ou se tenha a expressa autorização do juízo competente. Isso se, atendendo à exigência da lei, os interessados forem capazes e concordes e estiverem devidamente assistidos por advogados.
 
No caso analisado, a autora da herança falecera em 2015, deixando testamento público que atribuía a parte disponível da herança ao viúvo. O referido testamento foi aberto, processado e concluído perante a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, com a plena concordância dos herdeiros – todos maiores e capazes – bem como da Procuradoria do Estado.
 
Muito embora o inventário tenha sido iniciado na via judicial, os interessados solicitaram a extinção do feito e a autorização para o proceder pela via administrativa. Tal pedido foi indeferido em primeiro grau – decisão confirmada posteriormente pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – com fundamento no art. 610, caput, do CPC/2015. Argumentou-se que, de acordo com o dispositivo, a existência de testamento impõe o processamento judicial do inventário e da partilha, obstaculizando, consequentemente, a via extrajudicial.
 
Em recurso ao STJ, os recorrentes invocaram o disposto no § 1º do mesmo art. 610, alegando que o preceito, ao permitir o inventário extrajudicial na hipótese de herdeiros capazes e concordes, excepcionaria o caput, de modo que a existência de testamento não seria, por si só, um empecilho à via administrativa.
 
No julgamento do Recurso Especial, tal argumento foi confirmado pelo relator, que deu uma interpretação sistemática ao § 1º, considerando-o uma exceção ao caput. Ou seja, muito embora a regra do caput estabeleça que tanto a existência de testamento como de interessado incapaz impõem a via judicial, o § 1º, ao exigir tão somente a capacidade e concordância dos envolvidos para autorizar o processamento extrajudicial do inventário, estaria restringindo a hipótese de incidência do caput. Vale dizer, a existência de testamento em princípio impede a via extrajudicial, salvo na situação de interessados plenamente capazes e concordes.
 
Reforçando essa possibilidade, argumentou o relator que o inventário extrajudicial é fomentado pela legislação hodierna, pois representa uma redução na carga burocrática – e consequentemente de tempo e custos – de modo a facilitar a operacionalização da transmissão hereditária. Essa finalidade social é endossada, segundo o ministro, pelos arts. 5º da LINDB e 3º, 4º e 8º do CPC.
 
Afirmou, ainda, que sendo todos os herdeiros e interessados maiores, capazes e plenamente concordes quanto à destinação e à partilha de bens, inexiste conflito de interesses, e por isso não seria razoável impor a judicialização do inventário para efetivar um testamento inclusive já tido como válido pela Justiça.
 
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1 V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, São Paulo, YK Editora, 2017, pp. 918-919.
 
2 Note-se que a matéria foi também regulamentada pela Resolução nº 35, de 24 de abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça. Deve-se também considerar as normas editadas pelas Corregedorias da Justiça dos Estados atinentes à atividade notarial. No Estado de São Paulo, por exemplo, a matéria é regida pelos itens 105 e seguintes do Cap. XIV, Tomo II, das NSCGJSP.
 
3 Ressalte-se o caráter facultativo do inventário e partilha extrajudiciais. Disso decorre ser possível optar pela via judicial, ainda que presentes todos os requisitos legais para o processamento administrativo. Essa natureza facultativa deriva da própria dicção legal, haja vista ter a lei utilizado o vocábulo “poderão” no § 1º, do art. 610 do CPC/2015. Fica claro, pois, o objetivo do legislador de criar uma alternativa aos interessados, sem obrigá-los e sem prejudicar o direito de ação das partes. O art. 2° da Resolução nº 35/2007 é ainda mais claro nesse sentido, determinando: “é facultada aos interessados a opção pela via judicial ou extrajudicial; podendo ser solicitada, a qualquer momento, a suspensão, pelo prazo de 30 dias, ou a desistência da via judicial, para promoção da via extrajudicial”. Não obstante, até por um imperativo de segurança jurídica, não se deve admitir a tramitação simultânea dos dois procedimentos, judicial e extrajudicial.
 
4 V. F. Kümpel – C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, São Paulo, YK Editora, 2017, pp. 918-919.
 
5 Art. 2º do Provimento nº CNJ 56/2016.
 
6 O provimento teve fundamento no parecer 133/2016-E, emitido no Processo nº 2016/52695, relatado pelo então juiz assessor da Corregedoria, Swarai Cervone de Oliveira.
 
7 Item 129, Cap. XIV, Tomo II.
 
8 Art. 286, § 1º, II.
 
9 Item 129.1, Cap. XIV, Tomo II, das NSCGJSP.
 
10 Item 129.2, Cap. XIV, Tomo II, das NSCGJSP.
 
11 Art. 814-A, caput, acrescido pelo Provimento n. 18, de 23 de novembro de 2017.
 
12 Art. 814-A, § 1º.