O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 16)

Façamos um pequeno excurso, tornando a justificar nosso tema geral, que, tal o temos insistido, não diz respeito à ética profissional do notário, mas à moral pública que reclama a correspondência do bom notário.

O vernáculo «profissão», segundo alguns, remonta ao latim proprio ore fassio –i.e., “reconheço com minha própria boca”. Essa origem parece ajustar-se, por exemplo, ao que se deu no antigo recenseamento no Império romano, pois todos os homens deveriam dirigir-se às suas cidades de origem e ali recolher um denário de prata, o que representava, por a moeda trazer a efígie de Cesar, o reconhecimento de submissão a Roma. Com isto se professava, ou seja, fazia-se profissão ou declaração pública de fidelidade, registrando-se as pessoas do declarante e de sua família com a indicação das condições familiar, social, política, religiosa, a atividade econômica inclusive (cf. Iacobus de Varazze, Legenda aurea). Com o tempo, no entanto, nas línguas românicas, do português «profissão» ao castelhano «profesión»,  do italiano «professione» ao francês «profeisson», os v´[arios termos derivados da comum origem  latina foram adquirindo o sentido mais popular ligado à ideia de ofício econômico.

Assim, a ética da profissão constitui-se, nesta mesma linha, somente uma parte da ética geral, a parte que se refere à atividade habitual de um agente que com a profissão, pondo-se a serviço do bem comum, provê as necessidades da vida, sejam as próprias, sejam as da família.

Daí que, nominalmente, ser um bom notário signifique, num primeiro plano, ser um bom profissional das notas, o que não equivale, entretanto, a ser, ipso facto, um notário bom, porque o notário bom cumpre ou tende a cumprir, habitualmente, os supostos todos da ética geral. Na prática, todavia, nenhum verdadeiro bom notário deixa também de ser um bom notário, no sentido de que seja alguém que trilha o caminho, é um árduo caminho, das perfeições humanas, da realização mais plena possível da natureza racional. Ser verdadeiramente um bom notário –tal como, de modo mais estendido, ser um bom juiz, ser um bom advogado, ser um bom promotor público, um bom delegado, um bom registrador, e ainda mais: ser um bom profissional, em qualquer área que se pense– exige a aquisição e prática esforçada das virtudes todas, de todas elas, não só das prescrições profissionais, de todas as virtudes, porque as virtudes são solidárias entre si, e quando uma se ausenta, as demais sofrem prejuízo.

Desta maneira, o notário, observando seus deveres estritamente profissionais, cumpre apenas uma parte daquilo que lhe é exigido para ser realmente um bom notário. Enfim, estudar o que lhe cabe e dedicar-se ao trabalho são somente uma parcela do que lhe incumbe na vida: as virtudes todas devem ser buscadas, e não apenas as que se referem diretamente ao exercício destro da praxis notarial.

E é assim que um pequeno tabelião de aldeia, sem fama e premido por necessidades ingentes para o sustento de sua família, pode até ser (e é-o de fato em algumas situações) melhor notário do que muitos dos que granjearam fama e adquiriram grandes reservas materiais. Porque a notoriedade e as riquezas dinerárias não são, por si só, sinal de virtude: muitos tiranos e homicidas, com efeito, fizeram-se famosos, e homens quais Nero, Robespierre, Lênin, Stalin, Hitler, Mao Tse Tung, Fidel Castro, Ernesto Guevara, foram alçados aos píncaros da notoriedade.

A fama não deve almejar-se por ninguém –querê-la é só fruto da soberba da vida, desejá-la é apenas algo próprio do amor desordenado que nós temos de nós próprios. Ter fama é, pois, antes uma carga, um peso que se carreia sobre os ombros, por mais, tantas vezes, ainda que sem imprudentemente desejá-la, alguns não possam dela esquivar-se, e ninguém, de toda a sorte, pode subtrair-se da exemplaridade de suas próprias palavras e condutas:  o mesmo cristão que, numa oração belíssima –a Anima Christi–, impetra a Deus que o esconda do mundo  (intra vulnera tua absconde me), sabe, contudo, que é lux mundi (S.Mateus, 5,14) e que “ninguém há, depois de acender uma candeia, que a esconda debaixo de um jarro ou coloque-a sob a cama… para que os que entrem vejam a luz” (S.Lucas 8,16).

Voltemos agora ao nosso capítulo específico: depois de tratarmos da piedade, quer a familiar, quer a patriótica, devemos agora considerar a terceira das virtudes de veneração, que é a observância.

Consiste esta virtude –que é parte potencial do hábito da justiça– em prestar acatamento e honra às pessoas constituídas em dignidade (ou seja, aquelas a quem compete governar), sobretudo obedecendo-lhes as prescrições. A observância é a terceira e mais inferior das virtudes de veneração, entre estas sucedendo os hábitos de maior grau como o sejam os da piedade e da religião.

É exatamente em correspondência com este ofício de governo que se impõe a observância –é dizer, os deveres– de acatar os preceitos legítimos das autoridades constituídas.

Calça-se na virtude da observância o princípio da legalidade que norteia a arte notarial, de maneira que, ordinariamente, seguir a lei, aplicar a lei ou, dito com mais propriedade, observar a lei, é ato de virtude.