A configuração da união estável é subsequente a fatos objetivos e subjetivos
Walter Ceneviva: o advogado e professor que se afirmou por si próprio, por meio da ética, da competência e da lealdade. Um exemplo a ser seguido.
As leis nem sempre acompanham a evolução da sociedade.
A conceituação de família e seus reflexos jurídicos têm obrigado os legisladores a constante atualização e nem sempre ao tempo certo. Não há dúvida de que a disposição normativa não alcança a realidade. Disso resulta a indispensável necessidade da interpretação jurisprudencial.
No entanto, ao adotar um sistema legal aberto permitindo ao julgador a apreciação caso a caso da situação das partes, o Código Civil (CC) estabeleceu a possibilidade de grande flexibilidade para a caracterização da união estável.
Daí a sutileza e dificuldade na avaliação dos fatos para a caracterização da união estável. E mais, as convicções pessoais do julgador não devem interferir na decisão.
Por outro lado, tornou-se importante distinguir namoro sério, ou namoro qualificado, como enunciam alguns doutrinadores,1 de união estável.
O CC conceituou união estável como a relação entre homem e mulher configurada na convivência pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituição de família (art. 1.723). Dos conceitos decorrem elementos de natureza objetiva e subjetiva.
De início, ressalte-se que “ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (STF, Pleno, ADI 4.277, min. Ayres Britto).
O Supremo Tribunal Federal (STF), portanto, com apoio no princípio da dignidade humana e da igualdade, reconheceu a legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar e ampliou o conceito do art. 1.723 do CC de acordo com os princípios fundamentais da Constituição (nesse sentido, STF, 2ª T., RE 477.544-AgRg, min. Celso de Mello).
Bem acentuou a Min. Nancy Andrighi2 ao tratar do tema:
“O tratamento igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o reconhecimento de parcerias afetivas entre homossexuais, como modalidade de entidade familiar. O art. 4º da LICC permite a equidade na busca da justiça”.
Assim, independentemente do sexo entre os parceiros, para o reconhecimento de entidade familiar, é necessária a demonstração da convivência pública, contínua, duradoura e com intenção de constituir família e ainda sem a ocorrência dos impedimentos previstos no art. 1.521 do CC.
Convivência duradoura, pública e contínua, embora elementos objetivos, permitem certa flexibilização para a interpretação.
Muitos casais mantêm vida discreta e fechada, com poucos amigos e dentro de sua felicidade particular. No entanto, dentro de um mínimo de relacionamento público, deverão estar juntos, portanto, se presentes os outros requisitos, estará caracterizada a união estável.
Da mesma forma, o elemento temporal: duradouro. Se, inicialmente, a legislação (lei 8.971/1994) previa o prazo de cinco anos como tempo mínimo de convivência para, também, caracterizar a união estável, posterior lei específica (9.278/1996) e o CC de 2002, sabiamente, aboliram o lapso temporal. Não há tempo mínimo para a sua configuração, mas é absolutamente necessário tempo razoável para sua caracterização, portanto, relacionamentos breves não autorizam a caracterização determinada na lei. Porém, o que é breve? Um ano? Dois anos? Enfim, outra indefinição para o juiz apurar diante das demais circunstâncias e provas, sempre caso a caso.
Convivência duradoura, pública e contínua permite certa flexibilização para a interpretação.
A união estável não nasce, de imediato, com o começo do relacionamento. A estabilidade do relacionamento é paulatina, com atos sucessivos. Mesmo os elementos objetivos admitem discussão e têm certa complexidade.
Porém, o reconhecimento judicial do intuito em constituir família, elemento subjetivo, conforme os termos do art. 1.723, admite interpretações variáveis e pode levar a controvérsia e insegurança.
Como bem anota Fernando Malheiros Filho (2005, p. 83), “o tema envolve a prospecção entre várias áreas do conhecimento humano, passando pela simples abordagem semântica, pela exação dos costumes, pelo cotejo sociológico, pela visão psicanalítica, bem como perspectiva antropológica”, além do convencimento ideológico do julgador.
A intenção de constituir família não se confunde com a fase do namoro. É mais do que isso, é o prolongamento da vida em comum, como se casados fossem, sem a formalização do casamento.
A coabitação, embora muito relevante, não é fato decisivo para configurar a união estável.
Hoje é comum casais que moram em casas diferentes, mas adotam uma relação de convivência estável, em que outros elementos surgem para caracterizar o objetivo de constituir família, tais como: mútua assistência, dependência financeira, depósitos constantes na conta-corrente do(a) parceiro(a), previdência social, contas conjuntas em instituição financeira, assumir a condição de fiador(a) ou locatário(a) de imóvel ocupado pelo(a) parceiro(a), além das causas objetivas (publicidade e continuidade).
Nesse sentido, a lição de Álvaro Villaça de Azevedo (2013, p. 159), “a convivência sob o mesmo teto é, às vezes, evitada para que não causem traumas em filhos; isso acontece até no casamento, principalmente, em segundas núpcias, em que os filhos do casamento anterior não querem aceitar um novo pai ou nova mãe”.
Ou mesmo, a hipótese de casais que, ao se reconciliarem após o rompimento do casamento, resolvem viver em casas separadas, mantendo os mesmos direitos e deveres da época de casados, agora em verdadeira união estável.
Com ensina Carlos Dabus Maluf (op. cit., p. 366), “os conviventes podem até não coabitar, mas é indispensável a comunhão de vidas”.
Outro requisito discutível é o da lealdade entre os conviventes. Nos dias atuais, alguns relacionamentos são considerados “abertos”, isto significa o afrouxamento do dever de fidelidade. Se, por um lado, o “comportamento intrínseco do casal” só interessa aos envolvidos, o art. 1.724 do CC põe a lealdade nas relações pessoais entre os companheiros como requisito para a união estável e, no dever de lealdade, está compreendida a fidelidade.
Esse o entendimento na lição de Zeno Veloso (2018, p. 299): “não vejo como, numa relação afetiva com a dignidade de entidade familiar, os conviventes tenham que ser leais, sem que, até antes, sejam reciprocamente fiéis (cf. STJ, REsp. 1.157.273/RN, rel. min. Nancy Andrighi). A lealdade é gênero de que a fidelidade é espécie”.
Ainda dentro desta linha, se o relacionamento permite este tipo de comportamento, fragilizada está a caracterização, por ausência de um dos elementos enunciados na lei.
Acerca dos elementos subjetivos, ou seja, a intenção de constituir família, leciona Carlos Roberto Gonçalves que, para a configuração da convivência more uxório, “é mister uma comunhão de vidas, no sentido material e imaterial, em situação similar à de pessoas casadas. Envolve a mútua assistência material, moral e espiritual. A troca e soma de interesses comuns, atenção a gestos de carinho, a somatória de componentes materiais e espirituais que alicerçam as relações afetivas inerentes à entidade familiar” (GONÇALVES, 2010, p. 591).
A ausência de filhos não significa a inexistência da possibilidade de reconhecimento da entidade familiar. Não é incomum a opção por não ter filhos entre casais.
O amor, gestos de carinho, o afeto não são elementos suficientes para justificar a existência de união estável, porém, associados ao respeito, notoriedade no relacionamento, mútua assistência, tempo duradouro e demais condições, poderão confirmar a existência do intuito de formação de entidade familiar.
Também, o fato de o relacionamento não ter sido convertido em casamento (art. 1.726) não é motivo de justificativa para impedir o reconhecimento da união estável, se presentes as demais condições, especialmente, porque, na maioria das vezes, os parceiros desconhecem esta norma legal.
Por outro lado, eventuais viagens em conjunto e respectivas fotografias, por si sós, não são elementos suficientes e exclusivos para justificar a união estável.
Enfim, na essência existe, também, “subjetividade dos requisitos que definem a união estável – convivência duradoura, pública e contínua favorecem a interpretação equivocada de que qualquer namoro possa ser identificado como instável. A errônea interpretação fez surgir, logo após a edição da lei 9.278, uma verdadeira indústria da união estável”.3
Namoro, por sua vez, não tem conceituação legal, sendo, portanto, o ato de namorar ou o fato de duas pessoas se relacionarem com intuito amoroso, seguindo determinados padrões sociais da época.
A configuração da união estável é subsequente a fatos objetivos e subjetivos.
A diferença entre o namoro sério e a união estável reside na qualidade do vínculo que une o casal.
O namoro sério ou qualificado é o relacionamento com durabilidade razoável, publicidade notória, respeito, compartilhamento de viagens, passeios, finais de semana, mas sem comprometimento e objetivo de casamento. É de se ressaltar que entre pessoas maduras é comum o envolvimento emocional que se desenvolve com participações conjuntas em acontecimentos sociais, troca de mensagens amorosas, sem que isso implique constituir família.
Não há o entrelaçamento pleno de interesses, nos moldes do casamento. Nestes casos a convivência é restrita ao bem-estar da companhia. Pode inclusive ter gerado alguns atos isolados de solidariedade e de assistência pontual sem caracterizar o objetivo de constituir família.
A lei não protege o amor, o carinho, a dedicação. Como já afirmado, “a Carta Constitucional é muito clara em seu artigo 226 – a família merece especial proteção do Estado, a questão não é saber se houve amor ou não. E se esse amor foi prolongado, mas, sim, se fundaram ou não um núcleo familiar, se essa relação constituiu ou não uma família […] de mero relacionamento afetivo e sexual, sem vida em comum, não se retira qualquer sequela patrimonial”.4
O namoro sério apresenta muitas das características da união estável e disso resulta a enorme discricionariedade concedida ao julgador. A prova do elemento subjetivo da relação (intenção de constituir família) não é simples, muito menos fácil. “A diferença reside justamente nas características externas que o par decidiu dar ao relacionamento” (MALHEIROS FILHO, op. cit.).
Importante ressaltar que as partes podem firmar contrato de convivência confirmando a existência (e não a intenção) de união estável, nos termos do art. 1.723 do CC e estabelecer o regime de bens vigente. Não é lógico estabelecer no documento que a partir daquele momento vão formar uma união estável, isto porque o reconhecimento da união estável se caracteriza por fatos futuros que deverão ocorrer (convivência pública, duradoura, etc.).
A configuração da união estável é subsequente a fatos objetivos e subjetivos e disso resulta o reflexo patrimonial que, normalmente, se busca. O legislador procurou proteger, como já o fazia anteriormente (súmula 380 do STF), o convivente que depois de certo e razoável tempo de vida em comum, como se casados fossem, não saísse prejudicado sob o aspecto material com o término da relação.
Vale lembrar que o namoro, ainda que cercado de algumas características da união estável, não confere direitos. É comum casamentos com pacto de separação de bens serem precedidos de namoro, por algum tempo, sendo certo que este período de namoro até o casamento não justifica o pedido de reconhecimento de união estável, cujo intuito, na maioria das vezes, é rever ou compensar o pacto de separação total de bens assinado livremente.
Como elucida o ministro Roberto Barroso, “não cabe ao Judiciário, após a escolha legítima dos particulares, sabedores das consequências, suprimir a manifestação de vontade com promoção de equiparações, sob pena de ter-se manifesta violação a um dos pilares do Estado Democrático de Direito – o direito à liberdade, à autodeterminação” (STF, RE 878.694-MG).
Portanto, o Estado não tem o direito de alterar a disposição contida no pacto antenupcial sobre bens presentes e futuros, se as partes livres assim, livremente, dispuseram. Ora, se o casal busca resguardar a incomunicabilidade dos bens que possuíam anteriores ao casamento, porque assim, expressamente, pactuaram, não pode o julgador decidir de maneira contrária.
O exercício pleno da autonomia da vontade da pessoa é inerente à sua personalidade e deve se revestir de proteção do ordenamento jurídico.
Inúmeras são as situações de fato para o juiz distinguir o natural namoro que precede o casamento ou mesmo o namoro com inúmeras características da união estável, mas sem o intuito de constituir uma entidade familiar.
Por fim, “a doutrina tem admitido a chamada 'união estável putativa', quando um dos envolvidos estiver de boa-fé e desconhecer as circunstâncias que impedem a caracterização de união estável” (NERY JR.; NERY, 2013, p. 2.092), e, uma vez mais, há discussão na jurisprudência5 sobre o tema da união estável concomitante.
Em verdade, como já anotava, há muito, Edgard de Moura Bittencourt (1985, p. 135), “a equidade, o equilíbrio econômico, o não enriquecimento ilícito, as exigências dos fins sociais das leis – são os impulsos da doutrina jurisprudencial que impede injustiças contra a mulher unida ao homem fora do casamento”, para as situações de união estável concomitante, sem separação de fato.
__________
1 COSTA, 2007, p. 165-166; MALUF, 2013, p. 370.
2 STJ, REsp 1.085.64, maioria, DJ de 26/9/2011.
3 TJRGS, Emb. Inf. 7008361990, Rel. Des. José Trindade (in MALHEIROS FILHO, op. cit.).
4 TJRS, Ap. Civ. 70026125476, Rel. Des. André Planella Villarino (apud MALUF, op. cit., p. 371-372).
5 STF, Rep. Geral 656.298-SE, Rel. Min. Ayres Britto; STJ, REsp. nº 1754008-RJ, Rel. Min. Luis F. Salomão.
__________
AZEVEDO, Álvaro Villaça de. Direito de Família. Curso de Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2013.
BITTENCOURT, Edgard de Moura. Família. Rio de Janeiro: Alba, 1985.
COSTA, Maria Aracy Meneses. Namoro qualificado: a autonomia de vontade. In: SOUZA, Ivone Maria Candido Coelho de. Direito de Família, diversidade e multidisciplinaridade. Porto Alegre: IBDFAM, 2007.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. v. 6. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
MALHEIROS FILHO, Fernando. O ânimo de constituir família como elemento caracterizador da união estável. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 32, n. 98, jun. 2005.
MALUF, Carlos A. Dabus. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2013.
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
VELOSO, Zeno. Direito Civil: Temas. Belém: Anoreg, 2018.
*Rui Celso Reali Fragoso é advogado. Foi presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo. Do escritório Rui Celso Reali Fragoso e Advogados Associados.