Documento protege bens e evita que mudança temporária seja interpretada como união estável
Eles namoravam há três meses quando estourou a pandemia do novo coronavírus. Para não ficar sem se ver, pois a orientação é ficar em casa, decidiram pular etapas e juntar as escovas de dentes antes do esperado. “A gente sabia que, ou passava a quarentena junto, ou não ia se ver esse tempo todo e não ia dar certo”, afirma a estudante de Medicina Fernanda Nery, de 22 anos. Ela disse que seu namorado, o médico Djalma Danilo Souza, 25, nem conhecia os pais dela direito, mas agora todos estão vivendo sob o mesmo teto.
Mas até que ponto é seguro dar esse passo? Compartilhar a mesma moradia pode se configurar como uma união estável pela Justiça, o que permite que seu parceiro possa ter acesso a seu patrimônio. Mas não se preocupe: se o relacionamento não der certo até acharem uma vacina para a covid-19, já existe uma maneira de se proteger da situação: o Contrato de Namoro.
Pouco conhecido, o contrato protege o patrimônio – tanto moral quanto material – caso haja uma separação e um dos parceiros recorra à Justiça para exigir certas regalias. Ou seja, ele serve para provar que não há, entre os namorados, uma união estável e que é mesmo só um namoro. O contrato já foi celebrado entre 103 casais brasileiros desde 2017, quando foi criado. Na Bahia, até agora, foram 31.
O aposentado Anselmo Bastos, 56, que namora a fotógrafa Renata Marques, 46, há quatro anos, se viu vivendo uma “vida de casado” durante o isolamento porque ela mudou-se para sua casa. Porém, ele ressalta que não quer mudar o tipo de relação.
“Não tô com a intenção de casar e não quero mudar meu status. Mas o tempo vai passando e a gente vai se apegando”, confessou o aposentado.
Para não ter erro sobre o que é a relação, Anselmo disse ainda que “a melhor coisa é definir logo no início”. Isso porque ele já passou por situação parecida: teve um relacionamento de 11 anos e morou junto um tempo. Porém, quando se separaram, mesmo não tendo registro, a união foi considerada como estável pela Justiça, o que deu à companheira alguns direitos. “Foi apartamento quebrado no meio e pago pensão até hoje”, contou.
O objetivo do contrato é deixar claro para a Justiça que aquilo não passa de sentimento. Afinal, namoro é namoro e negócios à parte. “É como se fosse um contrato de anti-união estável. Ele tem como principal objetivo afastar essa caracterização de união estável e evitar que haja consequência jurídica”, explica o advogado Victor Macedo, que trabalha há 8 anos com Direito de Família. Isso porque a “união estável” está prevista por lei no Código Civil e, por isso, dá certos benefícios, como herança, pensão alimentícia e divisão de bens. Já o namoro, não.
“Namoro não é um fenômeno relevante para o Direito, porque não é uma relação de família. Não há, por exemplo, dever de fidelidade ou monogamia”, esclarece o advogado e procurador Roberto Figueiredo, presidente da Associação de Procuradores do Estado da Bahia. O presidente reforça ainda que, não há, na legislação brasileira, a palavra “namorado” ou namorada”. Logo, essa relação não concerne ao âmbito jurídico.
União estável
O que está na lei é a união estável. Apesar de não existir uma definição sobre ela, existem certos requisitos para que seja considerada como tal. A principal característica que difere um namoro de uma união estável é ter a intenção de formar uma família.
“Numa união estável, presume-se a ideia de comunhão de bens e a intenção de se formar uma família. Algumas atitudes demonstram que a pessoa tem essa vontade, como contas conjuntas, patrimônio em comum ou dividir um apartamento”, exemplifica o juiz Alberto Raimundo Gomes, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – Seccional da Bahia (IBDFAM-BA).
Contrato de Namoro
Para criar um Contrato de Namoro – ou seja, afastar a ideia de você está numa união estável e que seu(sua) parceiro(a) possa ter direitos sob seu patrimônio – basta estar com identidade e CPF em mãos sob a presença de um tabelião ou tabeliã, que é a pessoa quem faz o documento.
Em tempos normais, o contrato é celebrado em um cartório, mas, com a pandemia, é possível fazê-lo virtualmente. “Para recorrer a qualquer ato eletrônico, a pessoa interessada deve procurar uma tabeliã ou tabelião da sua confiança, que vai orientar como acessar o sistema e providenciar a documentação”, orienta o presidente dos Conselhos Notariais da Bahia, Giovani Gianellini.
O Contrato de Namoro, entretanto, não traz total segurança jurídica e pode ser questionado num processo. O procurador Roberto Figueiredo explica que, mesmo se o casal tiver assinado o contrato, se houver provas de que existia uma união estável entre os parceiros, ele pode perder sua validade. “A Justiça pode confrontar o contrato com os requisitos do caso concreto da união estável. Se houver divergência, pode ser declarada a nulidade do contrato de namoro”, explica o advogado.
Num cenário pós-pandemia, Roberto prevê que a tendência da Justiça não é considerar que esse período em que casais estão vivendo juntos durante a quarentena foi uma união estável, pois o simples fato de morar sob o mesmo teto não prova esse tipo de relação (é preciso mais indícios, como a intenção de constituir uma família) e a pandemia é uma situação provisória. “Existem dois cenários no pós-pandemia: ou o casal continua morando junto mesmo depois da pandemia, ou essa convivência acaba e o casal volta a morar cada um no seu canto. Neste caso, a Justiça considera que aqueles meses fosse um namoro”, esclarece.
Para que não haja dúvida, para o Direito, sobre qual nível de relacionamento você está, o procurador orienta que “mal não faz produzir um contrato de namoro”, brinca. O motivo é porque, na prática, o contrato pode ser usado como elemento de prova para atenuar uma discussão de que aquele período foi uma união estável. “Por prudência, se o casal tem essa necessidade, eles devem celebrar. É um elemento a mais no processo, mas que não substitui a sentença de um juiz”, elucida Roberto.
Diferença entre casamento e união estável
O casamento é o ato mais formal do Direito de Família. Já a união estável é informal e pode ser registrada ou não. Nesta modalidade de relacionamento o estado civil do casal não é alterado, os dois continuam sendo considerados solteiros, casados ou viúvos perante a lei. Mas podem ter direito à herança, partilha bens, pensão… Já no casamento esses direitos são “automáticos”, só se o casal quiser determinar o acordo antenupcial com separação total ou parcial de bens.
Requisitos para uma união estável:
- Intenção de construção de família (contas bancárias conjuntas, beneficiário do plano de saúde, patrimônio partilhado como morar na mesma casa);
- Habitualidade do convívio (apresentação de fotos e postagens nas redes sociais);
- prazo razoável da relação (não determinado por lei). A antiga lei de união estável estabelecia um prazo mínimo de cinco anos, mas foi revogado com o novo código civil;