Processo 1035916-74.2020.8.26.0100
 
Dúvida – Registro de Imóveis – Alvina da Mota Sondermann – Vistos. Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 2º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Alvina da Mota Sondermann em procedimento extrajudicial de usucapião, que tem por objeto o imóvel matriculado sob o nº 61.458 na serventia. Alega o Oficial que a suscitada adquiriu o imóvel objeto do pedido em 1989 na condição de solteira, constando na escritura de aquisição o nome Alvina Silva da Mota, quando na verdade, à época da escritura, era ela casada com Rodolfo Júlio Sondermann sob o regime de separação obrigatória. Alega que o bem se comunicou, nos termos da Súmula 377 do STF, e que o falecido deixou herdeiros, de modo que a usucapião levaria à preterição destes herdeiros, além de ser método apto a fraudar o meio legal de transmissão da propriedade no caso, que seria a partilha dos bens. Juntou documentos às fls. 04/42. A suscitada manifestou-se às fls. 43/52. Alega que a usucapião é forma de aquisição originária da propriedade e que o condômino tem legitimidade para usucapir a integralidade do bem. O Ministério Público opinou às fls. 57/59 pela procedência da dúvida, mantido o óbice. É o relatório. Decido. O pedido encontra-se prejudicado. Como reiteradamente decidido por este juízo, a autuação e processamento do pedido de usucapião só pode ser negada em restritas hipóteses, sendo que análises meritórias devem se dar ao final do procedimento, salvo exceções quando houver completa impossibilidade jurídica do pedido. Cito o decidido no Proc. nº 1008143– 25.2018.8.26.0100, onde se faz menção a antiga numeração das normas de serviço, mas cujo conteúdo continua o mesmo: “[O] caso da usucapião extrajudicial demanda procedimento diverso (da retificação extrajudicial), além de conter previsão própria nas normas da E. CGJ, em seu capítulo XX: “425. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo. O interessado, representado por advogado, instruirá o pedido com: I. Ata notarial lavrada pelo tabelião da circunscrição territorial em que situado o imóvel atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias, aplicando-se o disposto no art. 384 da Lei n. 13.105, de 2015; II. Planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes; III. Certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; IV. Justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel. 426. O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo da prenotação até o acolhimento ou a rejeição do pedido.” Veja-se que o item 426 não contém a mesma expressão do item 244, não se exigindo a “ordem” do procedimento. A interpretação do item 426, portanto, e em conjunto com o item 425, deve levar ao entendimento de que, apresentados os documentos previstos no item 425, deve o Oficial realizar a autuação, desde logo prorrogando o prazo da prenotação, sendo que eventual óbice deve ser apresentado durante o procedimento, e não anteriormente. (…) A recusa a autuação só poderá se dar quando inexistentes os documentos previstos no já mencionado item 425, ou quando o requerimento se der fora dos parâmetros previstos no Art. 3º do Provimento 65/17 do CNJ. Neste sentido, decidi no Processo nº 1004203-52.2018.8.26.0100 que “o requerimento (…) é insuficiente para dar início ao procedimento de usucapião extrajudicial, pois não preenche os requisitos da petição inicial prevista no Art. 319 do Código de Processo Civil. Conforme Art. 3º do Provimento 65/2017 do CNJ, tais requisitos devem ser observados para que seja feita a autuação do pedido e para que haja regular prosseguimento do feito.” Assim, quando irregular o requerimento ou inexistente um dos documentos ali descritos, deverá o Oficial exigir adequação daquele ou apresentação destes antes de realizar a autuação, sem prejuízo da possibilidade de pedido de suscitação de dúvida pelo interessado. (…) Em suma, apresentado o requerimento de usucapião, o Oficial deve verificar a adequação da petição (conforme Art. 3º do Provimento 65/17 do CNJ) e a apresentação dos documentos previstos no item 425 do Capítulo XX das NSCGJ. Qualificados positivamente, realizará a autuação. Em caso negativo, exigirá a adequação do requerimento, em seu aspecto formal. Em qualquer dos casos, a apresentação de óbices a usucapião, quanto a seu mérito, deve se dar com o procedimento já autuado. Se o óbice for relativo a impugnação por titulares de direitos reais sobre o imóvel usucapiendo ou dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por terceiro interessado, o Oficial observará o item 429 e ss. do Capítulo XX das NSCGJ, bem como o decidido no Processo nº 1000162-42.2018.8.26.0100. Já quando o óbice disser respeito a insuficiência de documentos ou mesmo a falta de preenchimento dos requisitos legais da usucapião, deverá observar o disposto no Art. 17 do Provimento 65/2017 do CNJ, que assim dispõe: “Art. 17. Para a elucidação de quaisquer dúvidas, imprecisões ou incertezas, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis ou por escrevente habilitado. § 1º No caso de ausência ou insuficiência dos documentos de que trata o inciso IV do caput do art. 216-A da LRP, a posse e os demais dados necessários poderão ser comprovados em procedimento de justificação administrativa perante o oficial de registro do imóvel, que obedecerá, no que couber, ao disposto no § 5ºdo art. 381 e ao rito previsto nos arts. 382 e 383, todos do CPC. § 2º Se, ao final das diligências, ainda persistirem dúvidas, imprecisões ou incertezas, bem como a ausência ou insuficiência de documentos, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido mediante nota de devolução fundamentada. § 3º A rejeição do pedido extrajudicial não impedirá o ajuizamento de ação de usucapião no foro competente. § 4º Com a rejeição do pedido extrajudicial e a devolução de nota fundamentada, cessarão os efeitos da prenotação e da preferência dos direitos reais determinada pela prioridade, salvo suscitação de dúvida. § 5º A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP.” Assim, como exposto acima, a negativa de processamento do pedido só é possível quando não forem apresentados os documentos exigidos pelo Art. 3º do Provimento 65/17 do CNJ e no item 425 do Cap. XX das NSCGJ. Não há previsão normativa que permita ao Oficial negar o processamento do pedido extrajudicial de usucapião, desde logo, com base em seu mérito. Neste sentido, o Art. 17, §2º, do Provimento 65/2017 do CNJ prevê que a rejeição do pedido, por meio de nota de devolução, se dará “ao final das diligências”. Ainda, como decidido no Proc. 1091014-15.2018.8.26.0100: Tratando-se de procedimento de dúvida, não é possível dilação probatória para que se verifique a pertinência da justificativa da parte. Assim, julgar a dúvida improcedente representaria reconhecer o direito da parte antes mesmo de ser possibilitada impugnação por parte de terceiros. A procedência, por outro lado, representaria afastar sua justificativa quando esta possui, a princípio, razões pertinentes. Todavia, se autuado o procedimento, e sendo negado o direito apenas ao final, eventual impugnação por dúvida possibilitaria a este juízo uma análise completa do caso, permitindo um melhor provimento jurisdicional. Cabe ao Oficial, portanto, autuar o pedido e realizar as diligências necessárias para acolher ou afastar a justificativa apresentada pela parte, nos termos do Art. 13, §2º do Prov. 65/17 do CNJ. Se entender haver burla, deverá fundamentar, ao final do processo extrajudicial, as razões pela qual entende que o pedido de usucapião é improcedente, afastando especificamente os argumentos apresentados pela parte para não utilizar-se do sistema registral e notarial para adquirir a propriedade. Tal procedimento facilitará, inclusive, eventual pedido judicial de usucapião, uma vez que a requerente poderá utilizar-se de todo o processado (inclusive notificações e anuências), agilizando o processo judicial. Como exposto no Proc. nº 1008143-25.2018.8.26.0100, e recentemente no Proc. nº 1070011-04.2018.8.26.0100, a negativa do pedido com base no mérito, no início dos procedimentos, traz diversas dificuldades a este juízo. O acúmulo de questões semelhantes possibilitou concluir que o julgamento da dúvida suscitada nestes casos, como procedente ou improcedente, representa uma análise prévia das questões que deveriam ser tratadas ao final do processo extrajudicial. O julgamento de tais questões, de plano, não representa a melhor atitude, por impossibilitar o conhecimento completo de todos os fatos e fundamentos relevantes para que se alcance uma decisão correta. Deste modo, o melhor caminho a ser tomado é se julgar a dúvida prejudicada, por não haver fundamento na exigência do Oficial antes da autuação. O pedido extrajudicial deverá, portanto, ser autuado e regularmente processado. Excetuadas as hipóteses de impugnação, ou outros casos excepcionais, a negativa do pedido, quanto ao seu mérito, deverá se dar ao final, seguido o procedimento do Art. 17 do Provimento 65/17 do CNJ. E a mesma situação encontra-se aqui presente. O Oficial, desde logo, julgou pela impossibilidade do pedido, pois este levaria a preterição de herdeiros, sendo burla ao sistema legal de aquisição de propriedade, tratando-se ainda de meio para que não sejam pagos impostos. Todavia, tal conclusão não pode decorrer somente com os dados constantes do pedido inicial, sobretudo porque, com o processamento regular, participarão tais herdeiros e a Fazenda do Estado, sendo que após estas manifestações o Oficial poderá melhor julgar a alegada burla em face dos argumentos da requerente. Saliento, como já dito acima, que em hipóteses excepcionais o pedido poderá ser negado na origem. Como exemplo, isso ocorreu no Proc. 1054840-70.2019.8.26.0100, pois naquele caso a requerente era titular de domínio de parte dos imóveis usucapiendos e não demonstrou, na inicial, razão legítima para que fizesse surgir seu interesse no pedido. Não obstante, constou daquela decisão que não necessariamente o fato do requerente ser titular de domínio impede a usucapião. Cito: Ressalto que não deve ser considerado ilógico a usucapião de imóvel próprio em situações excepcionais, a serem analisadas pontualmente. O artigo jurídico publicado pelos renomados Desembargador Fernando Antonio Maia da Cunha e Juiz de Direito Alexandre Dartanham de Mello Guerra, abordando o assunto em destaque, elucida que: “Não nos parece que deva prevalecer o entendimento invariavelmente contrário à usucapião de coisa própria. Não há, sistematicamente, ausência de interesse processual nessas circunstâncias. A utilidade da usucapião, em casos dessa ordem, reside justamente em pretender-se a declaração originária de propriedade imobiliária (própria da usucapião). Trata-se de situação excepcional, por certo, que exige análise prudente, criteriosa, mas que não deve ser negada indiscriminadamente. A hipótese em estudo revela a utilidade da aplicação concreta da segunda finalidade da usucapião: servir como forma de sanear aquisições derivadas imperfeitas”(g.N). (…) Logo, para a admissão da possibilidade da usucapião de coisa própria, deverá haver uma análise minuciosa do fato concreto ou seja, dependem dos fundamentos jurídicos invocados e consequentemente a possibilidade de um juízo de mérito, sob pena de conforme acima mencionado constituir burla a lei, especificamente em relação ao recolhimento tributário. E no presente caso, a requerente, em que pese ser titular de domínio, bem justificou o pedido no sentido de afastar qualquer comunicabilidade com seu antigo marido, nos termos da súmula 377 do STF, ou seja, pretende suprir vício existente na aquisição derivada que fez com que o bem, sem o desejo das partes, se comunicasse. Tal argumento é suficiente para permitir o prosseguimento do pedido. Todavia, não se está aqui reconhecendo o direito da requerente a usucapir o bem, que dependerá do regular processamento do pedido, sendo inclusive possível que o Oficial, ao final do procedimento, afaste a pretensão, sob o fundamento de que a autora não possui, por exemplo, posse ad usucapionem. Aqui, cabem duas observações: tendo em vista o zelo dos Oficiais e visando o melhor para os interessados, em especial em vista dos valores devidos com o processamento da usucapião extrajudicial, é de todo recomendável que, protocolado o pedido, sejam apresentadas possíveis razões que possam impedir o sucesso do procedimento, mas com observação de que, sendo do interesse do requerente, que tem assessoria jurídica obrigatória de advogado, o pedido será autuado com manifestação meritória no momento adequado. É dizer que, quando for negada a autuação por questões de mérito, e não formais, havendo insistência do requerente, após a devida orientação do Oficial quanto a possíveis vícios do pedido, este deve ser autuado. Como segundo ponto, neste caso concreto, demonstrou-se o interesse de pessoas específicas, quais sejam os herdeiros do ex-marido da requerente, de modo que, mesmo que não constem tais dados na matrícula, durante o processamento do feito estes devem ser regularmente notificados, para permitir sua ciência inequívoca e impedir possível anulação do procedimento em ação judicial futura. Em suma, o pedido está prejudicado, devendo os autos retornarem ao Oficial, que deverá dar prosseguimento ao pedido se assim for requerido pela suscitada, estando desde logo alertada quanto a possíveis questões que podem levar a improcedência ao final. Deixo, todavia, de analisar o mérito (se a autora preenche ou não os requisitos para a usucapião), ficando apenas pontuado que, nesta sede de cognição, as alegações da inicial são suficientes para dar prosseguimento ao pedido de usucapião de bem próprio. Ao julgar a dúvida prejudicada, apenas está se afastando a pertinência de ser apresentado óbice quanto ao mérito no início do procedimento extrajudicial. Do exposto, julgo prejudicada a dúvida suscitada pelo Oficial do 2º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Alvina da Mota Sondermann, com as observações quanto ao prosseguimento do pedido caso assim expressamente requerido pela suscitada. Não há custas, despesas processuais nem honorários advocatícios decorrentes deste procedimento. Oportunamente, arquivem-se os autos. P.R.I.C. – ADV: LEANDRO AUGUSTO REGO (OAB 293281/SP) (DJe de 16.06.2020 – SP)
 
Fonte: Portal do RI