Com 67 anos, três casamentos, três filhos com a primeira mulher e seis netos, o cirurgião urologista Ricardo de la Roca foi infectado há duas semanas pelo novo coronavírus e esteve “perto de ser entubado”, mas conseguiu se recuperar sem precisar chegar a extremos. Precavido, àquela altura ele já havia providenciado um testamento: “Vi que fiz a coisa certa depois que estive internado, com 50% do meu pulmão tomado por uma pneumonia viral. Ninguém sabe sobre o próprio destino”, diz. Ao redigir o testamento, a intenção de De la Rocca era garantir que os herdeiros não encontrassem dificuldades para saldar os compromissos que ele havia assumido, e mantivessem uma convivência pacífica.
 
“Deixei orientações para que uma de minhas filhas se responsabilizasse pelo pagamento de todas as contas, fizesse a liquidação dos consultórios, pagasse os salários e direitos trabalhistas dos funcionários. Minha preocupação era manter a harmonia entre eles e minha atual esposa. Queria que não houvesse pendências judiciais, todos ficassem confortáveis e pudessem cada um seguir o seu caminho”, explica.
 
De acordo com o médico, que registrou o documento em um cartório de notas, a reação dos familiares foi positiva. “Eles sabiam que, por força da profissão, eu não poderia ficar em quarentena. E que, ao mesmo tempo, eu estava no grupo de risco.” Lá na China A coluna conversou com advogados renomados de família, para verificar se o suposto boom de divórcios noticiado no início da quarentena na província de X'iam, na China, teria correspondência no Brasil. De acordo com o jornal chinês “The Global Times”, o fenômeno ocorrido lá foi causado pelo desgaste da convivência em tempo integral de marido e mulher, durante o confinamento imposto pela pandemia.
 
Embora o mesmo tipo de corrosão tenha sido observado em relacionamentos no Brasil, e amplamente divulgado na mídia, os advogados afirmam que a busca por orientação para abrir processos de divórcio não teve a mesma expressividade que se registrou na redação de testamentos. “Mais do que o desgaste das relações, há o medo morrer. De uma hora para outra, a pandemia de covid-19 trouxe uma percepção de finitude que as pessoas não tinham. Ninguém ficava pensando em morte o tempo todo”, afirma o advogado Carlos Eduardo Regina, que defende os filhos de Gugu Liberato.
 
Diz Regina que, “de repente, preocupações comezinhas ganharam um peso inédito”. “O pai de família, ou quem quer que esteja no comando financeiro da casa, pensa: 'Amanhã, se eu não estiver aqui, quem vai pagar o supermercado?'. Sendo que amanhã pode ser amanhã mesmo.” Melhor adiantar Apesar do confinamento, o segundo casamento do cirurgião vascular Wilson Jr., 59 anos, vai bem — o que não significa que o tenha livrado de problemas de saúde decorrentes da obesidade. Com 120 kg em 1,76 m, Jr. sofre de diabetes e pressão alta, e, por conta disso, achou melhor adiantar o testamento que havia planejado fazer no fim do ano.
 
“Sei que faço parte do grupo de risco da covid-19, estou mais propenso a desenvolver a doença e que posso não resistir”, diz ele, que é pai de cinco filhos. “Minha principal preocupação foi deixar o apartamento em que eu moro com reserva de usufruto para minha segunda mulher. Meus filhos com ela são menores, um deles tem 10 anos, achei que seria bom dar a ela alguma segurança.” Sigilo absoluto Jr,. conta que nem as mulheres nem os filhos sabem do testamento. “Achei melhor não comentar. Isso causaria uma dor de cabeça que eu prefiro evitar”, diz ele, que registrou o documento em um cartório.
 
“A publicidade do testamento é proibida, justamente para evitar dissabores entre familiares”, explica o tabelião Daniel Paes de Almeida, presidente do Colégio Notarial Brasil, seção São Paulo. “Caso outra pessoa queira ter acesso, precisará de uma ordem judicial. Depois da morte do testador, quando ele não poderá mais ser coagido a mudar o texto, aí sim qualquer pessoa que apresente o atestado de óbito poderá ver o teor do documento.” O custo fixo de um testamento, estabelecido pelos cartórios de notas, é R$ 1.746, mas o testador vai desembolsar ainda o ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza), 1% a 5% sobre a parte do tabelião, ou de R$ 10 a R$ 15, dependendo do município no qual está o cartório. “Se o patrimônio for inferior a 3.000 Ufespes — R$ 82.830, o valor dos emolumentos será reduzido em 50%”, explica Almeida. Diretiva de vontade Caso a pessoa prefira um testamento particular, pode fazê-lo com o auxílio de um advogado. Aparentemente mais simples, não é considerado tão seguro, se não houver um registro público. De acordo com a advogada de família e sucessões Priscila Correa da Fonseca, “o ideal é que as três testemunhas sejam mais novas que o testador, para que haja chance de ainda estarem vivas quando ele morrer, e assim poderem corroborar o que consta no documento”.
 
Compreensivelmente, Priscila afirma que a pandemia de covid-19 levou a um aumento no interesse pela chamada “diretiva antecipada de vontade”, também conhecida como “testamento vital”. É uma manifestação de como a pessoa deseja ou não ser atendida em caso de doença com risco de vida. “Ela pode deixar determinado que não quer ser entubada, por exemplo, ou ainda que quer ser acompanhada por determinado médico”, explica Priscila. “Basicamente, a pessoa estabelece que não se opõe a medidas que atenuem seu sofrimento, ou à manutenção da qualidade de vida, mas não autoriza o prolongamento de uma situação sem volta.”
 
Demanda reprimida Com mais de 30 anos de experiência na área de família, Priscila também não afirmaria que há mais casais se divorciando. Ela observa que muitos estão no limite da tolerância, mas, por uma questão de segurança, preferem aguardar o final do confinamento para tratarem da separação. Sua previsão é de que haja uma espécie de demanda reprimida. “Os divórcios vão começar a pipocar depois que tudo isso passar”, acredita a advogada, que já recebeu o epíteto de “Priscila, a Rainha dos Divórcios”. Segundo ela, o caos econômico gerado por um governo instável, destituído de garantias, torna mais difícil discutir valores nesse momento. “O que mais aparece agora é pedido de redução de 100% na pensão alimentícia, em função de alegadas falências na quarentena. Mas o juiz não é besta.” Relações distantes Na experiência da advogada Renata Guimarães, nem tudo durante o confinamento de casais (e eventuais filhos) foi desgaste. Ela diz que muitas “relações distantes” se aproximaram justamente por causa da quarentena.
 
“A dificuldade de circulação levou as pessoas a se mudarem para a casa dos namorados, o que em alguns casos revelou que os dois não tinham tanta afinidade e que seria melhor romper. Ou, ao contrário, que gostariam de adiantar o casamento, ou a união estável.” Segundo Renata, o fenômeno da aproximação de relações distantes fez crescer a demanda pelo chamado pacto de convivência, ou pacto de namoro. “O documento serve para declarar o que o relacionamento não é: uma união estável. Fica então claro para filhos de ambos que o patrimônio de um não vai virar herança para o filho da outra, ou vice-versa.”
 
Todas as idades As pessoas que se decidem pelos pactos são de todas as idades, segundo Renata, mas em relação aos testamentos tradicionais, que ela tem feito mais durante a quarentena, o número maior é de idosos pertencentes ao grupo de risco da covid-19. “A presença constante de morte nos noticiários fez com que a preocupação desse grupo aumentasse. São clientes querendo redigir um documento sucessório, ou modificar cláusulas de antigos, incluir e retirar favorecidos.”

Parece que a hora é esta.