Não é de hoje que a sociedade está cada vez mais conectada. Mas, por certo, a decretação da pandemia da Covid-19 por parte da Organização Mundial de Saúde tem acarretado uma aceleração e reforço a tal fenômeno tecnológico, a refletir uma adaptação do direito ao próprio contexto social em que estamos inseridos. Afinal, o Direito é fruto da cultura e dela não pode se afastar, sob pena de não conferir uma adequada regulamentação a fatos sociais juridicamente relevantes.
 
Justamente nesse sentido, foi editado o Provimento nº 100 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na data de 26 de maio, que dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos e institui o sistema e-Notariado. A partir de então, os atos notariais passam a ser praticados através desse sistema, podendo-se citar, por exemplo, a realização de escrituras públicas translativas de direitos reais, testamentos e procurações gerais, entre outros.
 
Mas, visando a conferir maior segurança jurídica, é indispensável que alguns requisitos sejam cumpridos para a validade do ato notarial eletrônico praticado. Um deles é justamente a efetivação de videoconferência notarial para a captação do consentimento das partes acerca do ato jurídico, além de concordância com os termos do ato notarial eletrônico, com a respectiva assinatura digital (artigo 3º, Provimento nº 100, CNJ).
 
A videoconferência passa a ser, então, mecanismo essencial para equilibrar o mundo tecnológico com a captação da concordância/consentimento daquela pessoa. Sobre o último, a doutrina nacional é uníssona em apontar que o elemento volitivo é um requisito para a prática de atos jurídicos em sentido amplo, como é o caso dos negócios jurídicos em geral.
 
Assim sendo, todos os atos celebrados por meio do e-Notariado dependerão da realização da videoconferência, momento em que o tabelião analisará, além do consentimento, a identificação e a demonstração da capacidade e da livre manifestação das partes (artigo 3º, parágrafo único, Provimento 100, CNJ).
 
Isso quer dizer que, para além dos requisitos materiais inerentes ao próprio negócio jurídico a ser praticado, é essencial que o tabelião afira aspectos subjetivos concernentes à válida manifestação de vontade das partes.
 
Ratificando a importância dessa função do tabelião, o CNJ publicou a Recomendação nº 46, de 22 de junho, que dispõe sobre medidas preventivas para que se evitem atos de violência patrimonial ou financeira contra pessoa idosa, especialmente vulnerável no período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), no âmbito das serventias extrajudiciais.
 
Essa recomendação levou em consideração os dados estatísticos do Disque 100 (do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), que apontam que os casos de violência patrimonial contra a pessoa idosa, em 2019, tiveram um aumento de 19% e que, em 2020, com o isolamento social imposto pela pandemia, a situação tornou-se cada vez mais crítica. Além disso, visa a evitar o cometimento de crimes patrimoniais contra o idoso por meio dos serviços notariais e de registro, de modo a evidenciar o caráter preventivo de tal atividade.
 
Diante de tais fatores, o CNJ recomentou aos serviços notariais e de registro do Brasil que tomem as medidas preventivas para coibir a prática de abusos contra as pessoas idosas, realizando diligências se entenderem necessário, a fim de evitar violência patrimonial ou financeira em casos de antecipação de herança, movimentação indevida de contas bancárias, venda de imóveis, tomada ilegal, mau uso ou ocultação de fundos, bens ou ativos e qualquer outra hipótese relacionada à exploração inapropriada ou ilegal de recursos financeiros e patrimoniais sem o devido consentimento do idoso (artigo 1º, Recomendação nº 46, CNJ).
 
Muitos desses atos são atualmente efetivados, como se viu, mediante o sistema e-Notariado. E, para tanto, a videoconferência torna-se mecanismo para se constatar que existe uma ilegal ou inapropriada utilização de recursos financeiros e patrimoniais do idoso, sem que haja o devido consentimento deste.
 
Nesse cenário, constatando o tabelião que a capacidade e a livre manifestação daquela pessoa idosa encontram-se comprometidos, ele deverá comunicar o fato imediatamente ao Conselho Municipal do Idoso, à Defensoria Pública, à Polícia Civil ou ao Ministério Público (artigo 2º, Recomendação nº 46, CNJ).
 
Por essa disposição, passam os ofícios de notas a serem importantes instrumentos para a comunicação oficial de uma forma de violência intrafamiliar bastante corriqueira e, ao mesmo tempo, velada, que é justamente a violência patrimonial contra idosos.
 
Embora a Recomendação nº 46 tenha sido editada para tutelar os direitos da pessoa idosa neste período de pandemia no qual todos estão inseridos, com delimitação da sua vigência e validade até a data de 31 de dezembro (podendo ser prorrogada ou reduzida por ato do corregedor nacional de Justiça — artigo 3º), as disposições nela contidas parecem merecer uma vigência por prazo indeterminado.
 
Isso porque a Recomendação nº 46 do CNJ, em vez de regulamentar um aspecto pontual para este momento de pandemia, mais figura como um reforço positivo e atemporal visando a algo muito maior: uma mudança cultural de toda a sociedade, em prol de uma tutela mais adequada dos direitos da pessoa idosa.
 
Afinal, considerando que a regra em nosso sistema é que a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país (artigo 108, CC), a Recomendação nº 46 do CNJ deu um importante passo no conhecimento formal pelos órgãos competentes de atos de violência patrimonial contra idosos.
 
Assim, embora a videoconferência já seja mecanismo para se aferir a capacidade, a livre manifestação e o consentimento das partes, a partir de agora se demandará uma especial atenção por parte do tabelião ao praticar atos notariais que envolva uma pessoa idosa.
 
Por certo, havendo indícios de violência patrimonial, além de o tabelião comunicar o fato aos órgãos competentes, é possível que ele também se negue a realizar o ato, pois não preenchidos os seus requisitos essenciais. Deve-se enfatizar que a livre manifestação de vontade é requisito essencial para a prática de qualquer ato jurídico em sentido amplo e, nas declarações de vontade em si, se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que o sentido literal da linguagem (artigo 112, CC).
 
Considerando que uma das atribuições dos notários é formalizar juridicamente a vontade das partes (artigo 6º, Lei 8.935/94), sendo ela inexistente ou, até mesmo, evidentemente viciada, surge ao tabelião o relevante papel de frear os desmandos muitas vezes perpetrados em prejuízo da pessoa idosa.
 
Assim sendo, embora a Recomendação nº 46 do CNJ tenha estabelecido um prazo determinado para a sua vigência, é perfeitamente possível que as disposições nela contidas sejam aplicadas a qualquer tempo, pois reforça uma atribuição notarial que já pode ser extraída das demais normas do nosso sistema jurídico.
 
Mas, indubitavelmente, ela trouxe um elogiável papel de reforço positivo a favor de uma mudança cultural em uma sociedade cada vez mais envelhecida, tutelando, com maior intensidade, os direitos da pessoa idosa. Para além de evitar a violência patrimonial, conferiu maior fiscalização e, ainda, visibilidade a tal abuso intrafamiliar. Esse, sim, é o principal e mais louvável aspecto da Recomendação nº 46 do CNJ, cujos efeitos, felizmente, não se findarão com o término do seu prazo de vigência.
 
Patricia Novais Calmon é advogada especialista em Direito das famílias, sucessões e idoso, mestranda em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), presidente da Comissão de Adoção e do Idoso do IBDFAM-ES, diretora da Associação Brasileira de Advogados de Vitória (ABA-ES) e membro da International Society of Family Law.