O professor de Direito Civil na USP (Largo São Francisco), José Fernando Simão, atua desde 2008 como livre-docente na mesma instituição em que se graduou, se tornou mestre e doutor. Simão também mantém uma forte atividade acadêmica em Portugal e, junto ao sócio Maurício Bunazar, possui o escritório Simão e Bunazar Advogados. Como ele mesmo define, é “professor e advogado full time”.
O professor criou proximidade com o Direito Notarial e Registral ao ministrar a aula sobre o tema numa pós-graduação (2019) e também por conta de sua grande amizade com o tabelião Zeno Veloso. Em entrevista exclusiva ao Jornal do Notário, José Fernando Simão avalia a relação dos profissionais do Direito com as serventias extrajudiciais, discorre sobre a fronteira dicotômica entre o Direito Real e Direito Obrigacional, explica como a função social do contrato tem eficácia externa e analisa como o ato notarial eletrônico foi afetado pela pandemia. “A relação dos profissionais de Direito com as serventias extrajudiciais é das melhores pois o cartório é um lugar seguro para as suas transações jurídicas”, pontuou. “Um compromisso de compra e venda só vincula os contratantes, mas, no momento em que ele é registrado, gera-se um Direito Real – que tem eficácia erga omnes – e, sem o registro, ainda que o compromisso possa atingir terceiros pela função social, não tem a força do Direito Real”. Leia abaixo a entrevista na íntegra.
Jornal do Notário: O senhor poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória profissional?
José Fernando Simão: Eu sou formado, Mestre e Doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da USP, Largo São Francisco – eu entrei na graduação em 1992, sou professor de lá desde 2008 e até hoje não saí da faculdade. Sou também advogado de formação, mas nunca prestei concursos públicos para carreiras públicas. Tenho uma forte atividade acadêmica também em Portugal e, portanto, sou professor e advogado full time – não tenho nenhuma outra atividade além dessas.
Conheci a atividade notarial e registral mais de perto em uma pós-graduação em que ministrei aula no passado e depois, graças aos meus ex-alunos que hoje são amigos notários e registradores, acabei tendo bastante participação nessa área. Teve importância também minha amizade com o Zeno Veloso – que sempre foi tabelião – e isso me deu uma dimensão também para que eu entrasse nas questões extrajudiciais. Hoje tenho bastante afinidade com o tema por conta dos cursos, palestras e artigos escritos.
Jornal do Notário: Como o senhor avalia a relação dos profissionais do Direito com as serventias extrajudiciais? De que forma esses serviços auxiliam no cotidiano da Justiça?
José Fernando Simão: A relação dos profissionais de Direito com as serventias extrajudiciais é das melhores pois o cartório é um lugar seguro para as suas transações jurídicas. Ou seja, se eu fui ao cartório, é para ter resultados corretos – o cartório garante que tudo funciona muito bem. Os serviços extrajudiciais são uma reserva de verdade e de celeridade.
Além disso, o extrajudicial acaba auxiliando o advogado com sugestões, ideias. Há uma troca saudável entre as atividades. Quando os cartórios passaram a ter uma automatização decorrente de investimentos, a coisa ficou ainda mais interessante pois valorizou a atividade. É uma relação de simbiose muito positiva para todo mundo.
Jornal do Notário: Recentemente o senhor participou de uma live nas redes sociais do CNB/SP sobre o tema “Como os atos notariais e a relação de Direito Real e Obrigacional foram afetados pela pandemia. Das origens ao Blockchain”. Qual é a importância de estabelecermos uma fronteira dicotômica entre o Direito Real e Direito Obrigacional?
José Fernando Simão: Antes da pandemia, nós tínhamos um problema gravíssimo: a necessidade presencial para todos os atos – ignoravam-se as possibilidades virtuais. Essa dificuldade de contato virtual era muito relegada a segundo plano quando não dificultada pelas regras da atividade. A pandemia mostra que ou a sociedade se adapta ou não conseguimos sobreviver. Quando não podemos sair de casa, continuar negando essa possibilidade, que eu vou chamar de virtualização, é uma bobagem, mas viabiliza a prática de atos.
Com relação exclusivamente ao blockchain, nós temos uma questão de que a atividade vai precisar se reinventar, porque o blockchain hoje é visto como uma fonte de informação seguríssima, pois há uma replicação das informações em volume incontável de computadores e num espaço virtual descomunal.
Portanto, a questão é saber se a atividade registral vai ser substituída pelo blockchain porque a partir do momento que socialmente se passe a reconhecer que o que está no blockchain é verdadeiro, eu dispenso carimbos, chancelas e documentos públicos. Então a relação do blockchain com a atividade registral pode ser de grande impacto – em que a atividade de chancela, veracidade, autenticidade deixa de se dar na área do extrajudicial e vai para o blockchain. Não sei se a atividade consegue conjugar a sua atual configuração com esse modelo por internet.
Não sei como se dará ao certo essa relação, mas também há pessoas que acham que o blockchain não vai ser a solução de todos os problemas, que ele pode não comportar todas as informações necessárias para armazenamento, que pode haver até um colapso. Então ainda estamos em um âmbito muito especulativo.
Sobre o outro ponto, o Direito Obrigacional é aquele com efeitos inter partes e que gera crédito, prestações. O Direito Real é o direito erga omnes, quando o sujeito é passivo e, para muitos, indeterminado, que possa opor propriedade (a todas as pessoas do universo que não são), numa leitura de relação jurídica. Situação jurídica que eu exerço diretamente sobre a coisa é uma outra possível leitura.
Ocorre que, com a evolução das categorias jurídicas hoje se entende que um contrato produz efeitos com relação a terceiros e esses efeitos decorrem basicamente da função social do contrato (art.421).
Assim como os Direitos Reais foram alterados por decisão judicial e não atingem todos como, por exemplo, a hipoteca que eu celebro como banco não atinge os adquirentes das unidades que tinham compromissos de compra e venda posteriores à celebração da hipoteca. Então quando o STJ restringe a eficácia da hipoteca apesar da má fé dos adquirentes etc e, ao mesmo tempo, o STJ aumenta a eficácia do contrato com relação a terceiros, as fronteiras entre as categorias ficam mais fluidas. Ou seja, o proprietário pode opor a propriedade. As categorias vão se aproximando, se afastando um pouco da dicotomia para que elas passem a ser mais próximas em termos de eficácia (entre os direitos obrigacionais e os direitos reais).
Talvez essas relações possam se aproximar tanto que acabe-se fundindo essas categorias em certos conceitos. Pode ser que tenhamos, com o tempo, Direitos Obrigacionais, Direitos Reais e Direitos “Híbridos”.
Jornal do Notário: O contrato chamado compromisso de compra e venda, lavrado no tabelionato de notas, também pode ser considerado Direito Real? De que forma a função social do contrato tem eficácia externa?
José Fernando Simão: Sim, se for levado a registro, gera o Direito Real – chamado Direito Real de Aquisição. Portanto, o registro é o elemento constitutivo do Direito Real de Aquisição. Não basta ter um compromisso, é ter um compromisso levado a registro junto à matrícula do imóvel. Nesse sentido, me parece que afeta a constituição de um Direito Real porque o Direito Real segue a tipicidade estrita, ele não pode ser criado livremente pelas partes. Então, eu tenho a dizer que a eficácia externa da função social do contrato não altera a tipicidade dos Direitos Reais.
Um compromisso de compra e venda só vincula os contratantes, mas, no momento em que ele é registrado, gera-se um Direito Real – que tem eficácia erga omnes – e, sem o registro, ainda que o compromisso possa atingir terceiros pela função social, não tem a força do Direito Real. Portanto, ainda que a eficácia externa realmente amplie os efeitos do contrato, não a transforma em Direito Real sobre hipótese alguma.
Jornal do Notário: Como os atos notariais, dentro dessa relação (Direito Real x Obrigacional), foram afetados pela pandemia? O ato notarial eletrônico modifica esse cenário de alguma forma?
José Fernando Simão: Nós podemos pensar, por exemplo, em um testamento em que as partes não possam se valer de testemunhas – por conta do isolamento social –, e eu posso imaginar que nesse momento o tabelionato de notas lavra uma ata notarial para dizer que mesmo sem testemunhas é válido devido à pandemia. É o testamento ológrafo simplificado.
Eu posso enxergar no Registro Civil os casamentos feitos por videoconferência por realidade óbvia e plausível diante da impossibilidade de convívio social.
Eu vejo pouco a questão da dicotomia entre Direitos Reais e Obrigacionais com a pandemia. O que eu vejo mais é a facilitação da celebração de certos atos, acreditando-se que a presença virtual é tão real quanto presença física. Isso abre portas para tudo.
A pandemia abriu portas para o reconhecimento de que a presença visual por câmera, por imagem, é tão real quanto a presença física.
Jornal do Notário: Como o senhor enxerga o papel do notário na aferição da manifestação de vontade das partes? Qual a sua avaliação sobre a modernização tecnológica dentro dessa esfera?
José Fernando Simão: Falando em pessoas com deficiência: eu tenho vários tipos de pessoas com deficiência – até aquelas completamente incapacitantes, como é o caso de uma pessoa com autismo em um grau máximo, como aquelas doenças mais leves, de simples confusões mentais etc.
O notário e registrador acabam tendo hoje um peso nessa verificação. Eles não podem se negar a praticar certos atos alegando deficiência – seria discriminatório. Mas isso não quer dizer que a pessoa com deficiência pode praticar todos os atos – a pessoa simplesmente pode não saber o que está fazendo.
O paradigma da capacidade hoje foi substituído para o paradigma da vontade. Não é mais função de aferição de capacidade, é aferição de discernimento prático para saber se a pessoa pode praticar o ato.
A tecnologia pode ser útil como, por exemplo, um pequeno atestado de que a pessoa responder 10 perguntas e acertou 9, que a pessoa sabe o que está fazendo. A tecnologia pode ter muitas funções, inclusive de aferir que a vontade interna é igual à vontade declarada.
Jornal do Notário: Como o senhor enxerga o futuro do notariado brasileiro?
José Fernando Simão: O futuro do notariado brasileiro é extremamente incerto. O mundo atual tende à desburocratização. É o mundo em que as pessoas querem, cada vez de maneira mais rápida e eficiente, praticarem seu negócio jurídico. A burocracia, portanto, é algo contrário à realidade atual. Então quanto mais a atividade notarial se revestir em burocracia, menor a chance que ela tem de sucesso no mundo atual.
É claro que também é exigida a segurança jurídica. Portanto, a atividade não pode simplesmente abrir mão dessas garantias de segurança, da certeza. Esse é o grande desafio: manter-se a segurança jurídica – que é própria da atividade notarial e registral – mas garantir agilidade em um mundo que é extremamente rápido. Como manter a segurança jurídica reduzindo burocracia, procedimentos tidos pela sociedade como desnecessários. Será o grande desafio. In medio virtus (No meio, a virtude).