Introdução
 
Em exórdio, importante destacar que, nos julgamentos dos Recursos Especiais 646.721/RS e 878.694/MG pelo Supremo Tribunal Federal, ficou definido que é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/02, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002. Com esse recurso de repercussão geral (pacificando o entendimento ao aplicar à união estável os mesmos direitos previstos no Código Civil para o casamento), o convivente supérstite concorre, hoje, com os outros parentes sucessíveis, conforme o inciso III do artigo 1.790 do CC/02.
 
Como segundo entendimento a ser considerado importa destacar que, no regime de separação legal (ou obrigatória) de bens, regime objeto do presente, fixou-se o que a doutrina denomina de “separação relativa ou limitada”, por se comunicarem os bens adquiridos na constância do casamento (Súmula 377, STF). Mas, em relação aos bens particulares, o cônjuge ou companheiro, sob esse regime, não concorrerá (como herdeiro) por expressa vedação do art. 1.829, I, do CC/02, posto que implicaria em burla à restrição protetiva da separação obrigatória. A regra protetiva subsiste, embora já reconhecida judicialmente como incompatível com dignidade da pessoa humana, igualdade e intimidade (TJSP, 2ª Câmara, Apelação 7.512-4-SJRPreto, j. 18-8-1998).
 
Por derradeiro, temos o entendimento dominante fixando qual o regime de bens que deve vigorar nas uniões estáveis entre septuagenários, segundo o qual, como esclarece Mário Luiz Delgado (2015): “tem prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável à união estável entre septuagenários é o da separação obrigatória (REsp 646.259/RS)”.
 
Levando-se em consideração, pois, os regramentos acima delineados, podemos nos deparar com uma situação que merece a devida reflexão. Uma união estável envolvendo septuagenário, por ocasião de sua sucessão, pode resultar em um enquadramento contrário à vontade dos herdeiros, qual seja: a hipótese em que pessoa do convivente supérstite não fará jus à meação, posto que sofrerá a incidência da restrição protetiva do regime obrigatório. E nem fará jus à herança, caso o falecido só deixe bens particulares (adquiridos antes do início da convivência), cuja sucessão é vedada pelo art. 1.892, I, do CC/02. Em suma: não será meeiro nem herdeiro.
 
Com efeito, caso os herdeiros – em reconhecimento pelo fato notório de ter sido a pessoa companheira uma valorosa companhia de vida da falecida, por exemplo – insistirem em atribuir direitos (patrimoniais) ao companheiro supérstite (que se encontrar na referida lacuna jurídica), surgem apenas duas alternativas: 1. Contemplar o convivente supérstite com uma doação no corpo do inventário extrajudicial, recolhendo o tributo de transmissão “inter vivos” e ainda arcando com os emolumentos adicionais; 2. Ou afastar a desinteressante incidência da restrição protetiva da separação obrigatória de bens, pura e simplesmente, atribuindo-lhe os meritórios direitos de meeiro e, principalmente, os de herdeiro para o caso existirem só bens particulares.
 
A repercussão jurídica da adoção da segunda e polêmica opção pode representar algo de difícil operacionalização perante o notário e sua temida responsabilidade subsidiária tributária no caso de o Fisco discordar desse direito dos herdeiros. Contudo, como será demonstrado adiante, não se pode negar uma odiosa restrição à liberdade contratual dos próprios titulares dos direitos que, justamente, a norma cogente (regime obrigatório) objetiva tutelar. Um contrassenso que merece o devido ajuste, bastando o emprego do raciocínio lógico, como será demonstrado.
 
Do regime de bens da união estável septuagenária reconhecida extrajudicialmente
 
A liberdade que aqui se pretende seja reconhecida aos herdeiros – consistente em fixar o regime que quiserem conforme o mérito que porventura desejem reconhecer ao convivente supérstite – encontra apoio tanto na corrente contrária à pretensão pretoriana de igualitarismo exagerado entre união estável e casamento (por violar o princípio constitucional da liberdade) como também, ainda que paradoxalmente, nos próprios fundamentos dos julgados que buscam sempre a extensão (do regime da separação obrigatória de bens, em razão da senilidade) às hipóteses de união estável. (DELGADO, 2015).
 
Como afirma Fernanda Pederneiras (2020), a regra protetiva do regime de bens da separação “parte da premissa de que o casamento do idoso estaria sempre atrelado a interesses financeiros”, retirando do nubente o arbítrio de se sujeitar ao formato de casamento que melhor entender. Como primeiro sinal de enfraquecimento dessa anacrônica premissa, caso a união estável iniciada “antes” do advento da idade, poder-se-á afastar tal regime, conforme entendimento do enunciado 261, da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, in verbis, “a obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade”.
 
Nesse diapasão, também é o entendimento jurisprudencial que, no julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do Recurso Especial 1.318.281/PE, assim definiu:
 

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. MATRIMÔNIO CONTRAÍDO POR PESSOA COM MAIS DE 60 ANOS. REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. CASAMENTO PRECEDIDO DE LONGA UNIÃO ESTÁVEL INICIADA ANTES DE TAL IDADE. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
 

1. O artigo 258, parágrafo único, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos, previa como sendo obrigatório o regime de separação total de bens entre os cônjuges quando o casamento envolver noivo maior de 60 anos ou noiva com mais de 50 anos.
 
2. Afasta-se a obrigatoriedade do regime de separação de bens quando o matrimônio é precedido de longo relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, visto que não há que se falar na necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico.
 
3. Interpretação da legislação ordinária que melhor a compatibiliza com o sentido do art. 226, §3º, da CF, segundo o qual a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento.
 
4. Recurso especial a que se nega provimento. Grifos Nossos
 
Constata-se do julgado supramencionado o reconhecimento pelo Judiciário de que a regra foi estabelecida quando da “necessidade de proteção do idoso em relação a relacionamentos havidos de última hora por interesse exclusivamente econômico”. Além disso, o próprio intérprete legal fixa a existência da anterioridade da existência da união Estável como balizador do afastamento do regime legal de bens.
 
De fato, também em sentido contrário ao sentido da regra protetiva, grande parte da doutrina defende até mesmo a inconstitucionalidade da imposição do regime de separação obrigatória aos idosos, tendo como base a violação de princípios como da isonomia, da liberdade e da dignidade humana. (Boechat Cabral e Gama Figueiredo, 2012).
 
Noutros julgados em mesmo sentido, buscou a mitigação do regime da separação legal em homenagem ao princípio da variedade de regimes (ou da autonomia), pelo qual a lei coloca à disposição dos nubentes vários modelos de regime de bens. Tal princípio indica que, portanto, a lei não impõe um regime matrimonial; mas, sim, garante aos cônjuges a máxima liberdade na escolha do regime que melhor atenda a seus interesses. Em virtude disso, o provimento 08/2016 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Pernambuco passou a permitir ao idoso a elaboração de pacto antenupcial, permitindo-lhe afastar a norma cogente do regime da separação legal e optar pelo regime mais severo da separação convencional (ou absoluta). Afastando-se, “voluntariamente”, tanto a incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal quanto a norma cogente do regime legal.
 
Nesse mesmo sentido foi a decisão da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo no Recurso Administrativo 1065469-74.2017.8.26.0100, que assim entendeu:
 

REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS – CASAMENTO – PACTO ANTENUPCIAL – SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA – ESTIPULAÇÃO DE AFASTAMENTO DA SÚMULA 377 DO STF – POSSIBILIDADE.

 
Nas hipóteses em que se impõe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto antenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377 do Excelso Pretório, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória.
 
O que se constata é que, ao se dar opção aos nubentes ou companheiros septuagenários de afastar a imposição da Súmula 377 e, por conseguinte, do regime legal de bens, isso se constitui num verdadeiro exercício da autonomia privada. Portanto, seria a concretização eficaz de um planejamento familiar em um ato público, que é o pacto antenupcial. (TARTUCE, 2016)
 
A corrente contrária ao referido pacto antenupcial, por sua vez, critica por entender que, se a separação é obrigatória, significa retirada a faculdade de escolha do regime de bens. Para essa doutrina, tal pacto seria nulo por fraude à lei cogente.
 
Esses entendimentos avessos ao exercício da autonomia privada de forma absoluta não levam em consideração a finalidade da norma protetiva matrimonial. Por que a lei impõe o regime de separação de bens a certas pessoas? A resposta está em proteger certas pessoas de si próprias, pois entende que o casamento pode ser fonte de prejuízos a pessoas vulneráveis.
 

“A ratio legis foi a de proteger o idoso e seus herdeiros necessários dos casamentos realizados por interesse estritamente econômico, evitando que este seja o principal fator a mover o consorte para o enlace” (REsp 1.689.152/SC, rel. Ministro Luís Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 24/10/2017, DJe 22/11/2017). GRIFOS NOSSOS

 
Oras, a teleologia e a razão de ser da lei é a mesma no âmbito do regime de bens obrigatório aplicável também no caso de união estável de septuagenário. Deste modo, os titulares dos direitos econômicos tutelados pela impositiva separação obrigatória são justamente os ditos herdeiros necessários que, dentro do âmbito dos seus direitos disponíveis – ainda que se cuide de uma norma cogente – podem, voluntária e livremente, afastar a regra protetiva de seu interesse, deixando de invocá-la, afastando-a em reconhecimento aos méritos de alguém que conviveu com o falecido de uma forma notória e empiricamente não atrelada a interesses econômicos.
 
Analisando-se o artigo 19 da Resolução 35/07 do Conselho Nacional de Justiça, tem-se, in verbis: “A meação de companheiro(a) pode ser reconhecida na escritura pública, desde que todos os herdeiros e interessados na herança, absolutamente capazes, estejam de acordo.” É hialino, pois, a garantia da autonomia da vontade aos herdeiros no momento da lavratura da escritura pública de inventário. Nesse sentido inclusive é o que assevera Conrado Paulino (2020, p. 365) ao destacar que:
 

“como no inventário extrajudicial todos os herdeiros são capazes e concordes, nada impede que reconheçam na escritura a condição do(a) companheiro e de sua eventual meação, evitando a necessidade da geralmente longa via judicial para a transmissão individualizada dos bens do autor da herança.”

 
Oras, se todos são maiores e capazes e a escritura pública serve para efetivar as vontades dos respectivos direitos dos herdeiros, não existe nenhum óbice legal para ir além do reconhecimento da união estável e, por conseguinte, no caso de septuagenários, seja afastada a incidência do regime de separação legal de bens na hipótese ser essa a vontade dos herdeiros e que tal fato seja declarado na escritura, dispensando-se expressamente a proteção legal.
 
Como ensina Leonardo Brandelli, (2011, p. 36):
 

“o direito é fórmula de convivência social, é instrumento que viabiliza a convivência em sociedade, o ordenamento jurídico deve colocar à disposição dos indivíduos a possibilidade de um desenvolvimento espontâneo e eficaz; deve priorizar a realização voluntária do direito, prevenindo litígios.”
 

Com a ausência de litígio acerca do direito do companheiro por parte dos herdeiros, inclusive porque os sujeitos passivos da proteção da norma são justamente eles, não há motivos para duvidar que estes podem dispor de tal direito, principalmente para preservar a eventual última vontade do falecido, privado em vida da liberdade na escolha do regime, e prestigiar o companheirismo daqueles que passaram a vida juntos, mas que, por entraves legais alheios à sua vontade, não puderam estipular quanto aos seus bens o que queriam. Assim, conforme ensina o doutrinador supramencionado, a espontaneidade dos atos praticados pelos herdeiros deve ser prestigiada pelo Direito quando da lavratura das escrituras de inventário.
 
Considerações Finais
 
O ideal seria que a legislação brasileira abolisse de vez a anacrônica presunção de vulnerabilidade geradora do regime de separação obrigatória de bens dos idosos. Seja em reconhecimento às fortes críticas doutrinárias à limitação da liberdade do septuagenário. Seja em razão da constatação do envelhecimento saudável da população diante dos avanços da medicina nas últimas décadas, levando ao aumento da expectativa de vida.
 
Outrossim, essa “presunção” legal de incapacidade pela senilidade revela-se mais evidente e insensata com o surgimento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, lei 13.146/15. Tal legislação chega ao ponto de tipificar criminalmente condutas que precipitadamente concluam que a pessoa portadora de deficiência é um incapaz.
 
Como afirma Ricardo Torques (2020, p. 3):
 

O Código Civil, por exemplo, pressupunha que se você fosse deficiente você era incapaz, não poderia comprar e vender uma casa, não poderia casar autonomamente, não poderia nem mesmo ser testemunha em um processo (…) Ao invés de incapaz, a pessoa com deficiência será plenamente capaz para praticar atos da vida civil.

 
Questiona-se, então, se não seria o caso de se indagar o absurdo: a aplicação do art. 1.641, II, do Código Civil brasileiro não representaria uma conduta não só discriminatória como ilícita após o surgimento do referido Estatuto? A lei não está a presumir que o idoso não tem capacidade nem discernimento necessários para pactuar livremente o seu regime de bens?
 
A verdade, infelizmente, é que o tratamento legislativo dado ao idoso no Brasil não goza dos mesmos critérios nem dos mesmos princípios que regem o Estatuto do Deficiente, como são, por exemplo, os do inciso I do art. 4º, in verbis: “I – respeito à dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer suas próprias escolhas, e à independência das pessoas”.
 
Pelo contrário, o País continua legislando no sentido de presumir a incapacidade do idoso de manifestar livremente sua vontade, fixando-lhe embaraços discriminatórios ao livre exercício da liberdade de contratar, sob o frágil pretexto de “adoção de medidas preventivas para a coibir a prática de abusos contra pessoas idosas, especialmente vulneráveis no período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional” (CNJ, Recomendação 46/2020).
 
Assim, uma vez constatada a discriminação legal incompatível com o princípio da isonomia, como nem a legislação nem o Judiciário conseguem dissipar oportunamente tais incoerências, nada impede que, no exercício da liberdade contratual por quem seja o próprio titular dos direitos hereditários tutelados (pela norma cogente do art. 1.641), se corrijam eventuais efeitos nocivos das condenáveis presunções legais de incapacidade.
 
E não nos parece justo que, no ato de contratar na escritura de inventário (reconhecendo os merecidos direitos patrimoniais do convivente supérstite), os herdeiros sofram um encargo econômico maior (impostos e emolumentos) no exercício desse poder de disponibilidade patrimonial.