No caso de divórcio, a propriedade do imóvel comprado ou regularizado durante o casamento ou união estável ficará com a mulher, independentemente do regime de bens
 
“Não podemos defender nossa posição a favor dos direitos dos homens, sem assumir um interesse semelhante nos direitos das mulheres. A justiça, por sua própria natureza, tem de ter um alcance universal, em vez de ser aplicável aos problemas e dificuldades de algumas pessoas, mas não de outras” (Amartya Sen – A ideia de justiça).
 
A lei 14.118/21 institui o programa Casa Verde e Amarela. O destaque reside nos artigos 13, 14 e 15, basicamente determinando que tanto o contrato quanto o registro do imóvel serão feitos, preferencialmente, em nome da mulher. Sendo ela chefe de família, não necessitará da concordância do marido. Prejuízos sofridos em razão da regra deverão ser resolvidos em demandas indenizatórias. No caso de divórcio, a propriedade do imóvel comprado ou regularizado durante o casamento ou união estável ficará com a mulher, independentemente do regime de bens (comunhão parcial ou total ou separação total de bens). A exceção é para operações financiadas com recursos do FGTS e quando a guarda dos filhos for exclusiva do homem. Nesta última situação, o imóvel será registrado em seu nome ou transferido a ele.
 
Nas conhecidas palavras de Eça de Queiroz, “Não há nada novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males“. De fato, a preferência da mulher para contratos e registros envolvendo a aquisição da moradia familiar já constava da lei 11.977/09 (e posteriores acréscimos oriundos da lei 12.693/12). Portanto, apenas com algumas alterações topográficas, o programa “casa verde e amarela” reproduz ipsis litteris todo o conteúdo jurídico favorável à mulher, já disciplinado pelo Programa “Minha Casa, Minha Vida”.
 
Na Exposição de Motivos do Programa MCMV, especificamente no que concerne ao registro da titularidade em nome da mulher – exceto nos casos em que haja filhos e a guarda seja atribuída exclusivamente ao marido ou companheiro – constava o seguinte: “(…) A opção por essa medida legislativa vem sinalizar a importância que este governo tem dado à mulher nos programas sociais, especialmente enquanto chefe e centro de inúmeras famílias. Quarenta e sete por cento dos contratos da primeira etapa do Minha Casa, Minha Vida já foram assinados por mulheres“.
 
Claro que seria possível discutir a constitucionalidade de uma norma que destina o bem adquirido em sua integralidade à mulher, independentemente do regime de bens do casamento e da contribuição efetiva de cada um para a aquisição do imóvel. Igualmente, aponta-se a contradição de se suprimir tal direito se a guarda dos filhos ficar com o homem, na medida em que uma partilha de bens conformada pela atribuição da guarda dos filhos comuns acaba por fomentar a disputa pela guarda de crianças apenas para a preservação do patrimônio, em detrimento da prevalência da guarda compartilhada. Outro aspecto diz respeito a se excetuar aquisições com recursos provenientes do FGTS. Todavia, se o homem adquire o imóvel com um bem particular que no passado fora obtido mediante recursos decorrentes do FGTS, não seria possível invocar idêntica exceção? E a principal controvérsia: surgiria uma propriedade “cambiante”, que se alternaria entre homem e mulher conforme a titularidade da guarda de filhos?
 
No extremo, poder-se-ia mesmo indagar sobre a efetividade da norma, na medida que a lei 14.118/21 “requenta” dispositivos que vigiam há dez anos, mas não vinham sendo aplicados na prática.
 
Contudo, penso de forma diferente. A lógica subjacente a ambos os textos normativos é a da política pública sob a ótica de gênero. O economista Amartya Sen, Nobel de economia em 1998, postula que a expansão da liberdade e' o fim e o meio do desenvolvimento, sendo que as variáveis relacionadas a` condição de agente das mulheres tem um papel muito mais importante na promoção do bem-estar social do que aquelas relacionadas ao nível de riqueza na sociedade. Portanto, a pobreza deve ser vista como privação de capacidades básicas e não somente como baixo nível de renda. Renda e capacidades são duas perspectivas diretamente vinculadas, sendo que a renda e' um meio fundamental para a obtenção de capacidades. A relação entre renda e capacidades é afetada pela idade, gênero, condições ambientais e epidemiológicas. A distribuição dentro da família e' um dos pontos que perturba a ideia clássica de medir a pobreza apenas pela renda. A maneira como as decisões sobre a renda familiar são tomadas, se com ou sem a participação das mulheres, é um elemento que passa despercebido sob um exame que desconsidere as capacidades.
 
A perspectiva das capacidades melhora o entendimento da natureza e das causas da pobreza, desviando a atenção dos meios, sobretudo da renda, para os fins, isto e', a capacidade das pessoas levarem o tipo de vida que elas valorizam e a liberdade de poder alcançar esse fim. Amartya Sen considera que a agenda de luta pelos direitos das mulheres possui dois aspectos básicos inter-relacionados: os direitos voltados para o bem-estar e os direitos voltados para a livre condição de agente. Se historicamente, houve uma concentração nos aspectos de bem-estar, atualmente a condição de agente recebe mais atenção, pois o bem-estar das mulheres recebe influência direta de variáveis ligadas a sua condição de agente – como, por exemplo, o seu potencial para auferir renda independente, de ter direitos de propriedade, e participar nas decisões dentro e fora da família. O dado empírico aponta que a melhora da posição social das mulheres, sobretudo através da educação e da sua capacidade de gerar renda, contribui para diminuir as taxas de fecundidade, para a preservação do meio ambiente e da diminuição da violência na sociedade.
 
No que tange à preferência legislativa com relação ao registro de propriedade, aplica-se a mesma lógica que o economista Muhammad Yunus – laureado com o Nobel da Paz em 2006 – pioneiramente adotou em sua iniciativa em a mitigar a pobreza através do banco que fundou, oferecendo ativamente microcrédito para milhões de famílias, focalizando principalmente nas mulheres como mutuárias, em razão de sua criatividade e responsabilidade, aqui concebida como aptidão para geração de renda e uma preocupação maior com a manutenção do patrimônio em razão das necessidades dos filhos ou mesmo cuidados com os idosos do núcleo familiar. As mulheres são excelentes administradoras de recursos esparsos: querem promover mudanças em suas vidas passo a passo e utilizam o dinheiro com mais cautela.
 
Com base nos estudos dos novos institucionalistas – em especial de Douglass North e Hernando de Soto, que conferem relevância as instituições na economia – observa-se que se o direito de propriedade for mais bem definido, atribuído e garantido nas comunidades mais pobres, menores serão os custos de transação e, consequentemente, maior será' o valor do ativo e da renda do proprietário desse ativo. Ao atribuir preferência as mulheres responsáveis pela unidade familiar para o registro, o legislador concebe a titulação como mecanismo capaz não apenas de resgatar para a legalidade os possuidores e detentores de imóveis urbanos e rurais, como também, de viabilização da livre iniciativa de milhares de futuras empreendedoras, na medida em que o registro da propriedade confere ao seu titular um ativo circulável hábil a proporcionar empréstimos a juros baixos, posto garantidos por hipotecas e propriedades fiduciárias, com menor risco de insolvência comparativamente aos homens e maior cuidado perante a entidade familiar . Nessa senda, Hernando de Soto assume com precisão que “o que falta aos pobres são sistemas legalmente integrados de propriedade que possam converter seus trabalhos e poupanças em capital”. Realmente, conceder titulação em prol de uma massa de excluídos significa liquidar o apartheid, converter apátridas em cidadãos e transformar capital morto (posse irregular) em capital vivo (ativos). Melhor ainda se além de conceder titularidades, o legislador mire para os melhores destinatários.