Assunto controvertido é quando o notário é questionado da possibilidade da lavratura de inventário quando o autor da herança deixou dívida municipal ou federal.
 
O leitor deve estar se questionando a respeito das dívidas estaduais. A princípio, não há o que se falar em comprovação da inexistência de passivo estadual, vez que tal assunto já foi resolvido em Pedido de Providências instaurado perante a 2ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo:
 

2ª VRP|SP: Exigência de Certidão Negativa de Débitos de Tributos Estaduais para lavratura de escritura pública de inventário, lastreada, de forma genérica, em dispositivos legais e normativos. Abrandamento para, doravante, dispensar tal exigência, circunstância que já vigora na prática dos inventários judiciais. Do contrário, constitui regra ilógica, que discrepa do espírito da Lei 11.441/07. Processo 100.09.113495-4. (grifei)

 
Especificamente, a normativa paulista, no que concerne à prática tabelioa, regra que os débitos tributários municipais e da receita federal (certidões positivas fiscais municipais ou federais) impedem a lavratura da escritura pública, alteração essa introduzida nas normas da Corregedoria pelo Provimento CG 07/2013:
 

116.2. Os débitos tributários municipais e da receita federal (certidões positivas fiscais municipais ou federais) impedem a lavratura da escritura pública.  (grifei).

 
Na mesma linha, no mesmo Capítulo XVI, item 118, o tribunal regra que na lavratura da escritura deverá ser apresentada a certidão negativa ou certidão positiva com efeitos de negativa de tributos. O art. 22 da Resolução 35 do Conselho Nacional de Justiça, já regrava tal situação:
 

Art. 22. Na lavratura da escritura deverão ser apresentados os seguintes documentos: a) certidão de óbito do autor da herança; b) documento de identidade oficial e CPF das partes e do autor da herança; c) certidão comprobatória do vínculo de parentesco dos herdeiros; d) certidão de casamento do cônjuge sobrevivente e dos herdeiros casados e pacto antenupcial, se houver; e) certidão de propriedade de bens imóveis e direitos a eles relativos; f) documentos necessários à comprovação da titularidade dos bens móveis e direitos, se houver; g) certidão negativa de tributos; e h) Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR, se houver imóvel rural a ser partilhado. (grifei)    

 
Considero que a normativa estadual paulista esteja desatualizada. A sociedade é dinâmica e com ela seguem as leis e normas. Um mesmo povo não consegue se submeter às mesmas leis por muito tempo.
 
Quando da edição da Lei 11.441/2007, vigorava em nosso ordenamento processual a lei federal nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973 (antigo CPC), que regrava em seu art. 1.031 a prova de quitação dos tributos do espólio:
 

Art. 1.031. A partilha amigável, celebrada entre partes capazes, nos termos do art. 2.015 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, será homologada de plano pelo juiz, mediante a prova da quitação dos tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas, com observância dos arts. 1.032 a 1.035 desta Lei. (grifei)

 
O art. 1.046 do Novo CPC, revogou integralmente a lei federal nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973 (antigo CPC) e no nosso pensamento, com a edição dos arts. 610 e 733, a ab-rogação da Lei Federal nº 11.441/07.
 
No Código de Processo Civil atual, tal comando contido na antiga lei processual, não mais existe, sendo sua correspondência atual, o art. 659:
 

CPC 1973 CPC 2015
Art. 1.031. A partilha amigável, celebrada entre partes capazes, nos termos do art. 2.015 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, será homologada de plano pelo juiz, mediante a prova da quitação dos tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas, com observância dos arts. 1.032 a 1.035 desta Lei. Art. 659. A partilha amigável, celebrada entre partes capazes, nos termos da lei, será homologada de plano pelo juiz, com observância dos arts. 660 a 663.

 
Veja-se que o novo dispositivo não mais menciona a necessidade da prova da quitação dos tributos relativos aos bens do espólio, em consonância com a nova realidade social. 
A Lei dos Registros Públicos determina:
 

Art. 289. No exercício de suas funções, cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício.

 
No mesmo sentido, a Lei nº 8.935, de 2004 prevê:
 

Art. 30. São deveres dos notários e dos oficiais de registro:
(…)
XI – fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar;

 
O notário e o registrador imobiliário são responsáveis pelos tributos incidentes pelos atos praticados em razão do seu ofício, jamais sobre os impostos que recaem sobre o bem transmitido, pois se assim fosse, constituiria um modo de cobrança indireta por agente não competente.
 
A Corregedoria Paulista já se manifestou sobre a forma de cobrança indireta por agente incompetente da regra prevista nos arts. 47, I, b, da Lei n.º 8.212, de 24 de julho de 1991, e no art. 257, I, b, do Decreto n.º 3.048, de 6 de maio de 1999, e no art. 1.º do Decreto n.º 6.106, de 30 de abril de 2007, quanto à dispensa das certidões negativas de débitos emitidas pelo INSS e pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e da certidão conjunta negativa de débitos relativos aos tributos federais e à dívida ativa da União emitida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, tendo em vista os precedentes do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de inexistir justificativa razoável para condicionar o registro de títulos à prévia comprovação da quitação de créditos tributários. A União tem seus meios próprios de cobrança de eventuais débitos, inclusive, no inventário, quando da declaração de Imposto de Renda – final do espólio, que por meio dos ajustes fiscais necessários, condiciona-se os sucessores às dívidas do falecido na forma do art. 1.792 do Código Civil Brasileiro, sendo que o herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbindo-lhe, porém, a prova do excesso, servindo o próprio inventário como prova da escusa, com a demonstração dos valores da inventariança.
 
A existência de débitos e valores relativos a tributos, sejam municipais ou federais, deve ser discutida nas vias ordinárias, com a garantia constitucional de dilação probatória e do contraditório e ampla defesa. Tais providências, quais sejam, de cobrança, inserção do devedor na dívida ativa, execução fiscal, deve ser tomada exclusivamente pelo órgão municipal ou federal que representa a secretaria que detém o crédito, reitera-se, ao notário e ao registrador não se pode atribuir-se ainda mais esse ônus fiscalizatório, sob pena de afronta ao princípio constitucional esculpido no art. 5º inciso LV da Constituição Federal.
 
O sucessor uma vez interpelado pelo notário quanto aos débitos incidentes sobre um imóvel, por exemplo, vê-se obrigado à quitação do débito sem ao menos ter a oportunidade de questionar a origem da dívida, e assim o faz rapidamente para evitar condicionar-se a outra sanção do Estado, qual seja, a multa quanto ao recolhimento do imposto causa mortis. 
 
Nessa linha de pensamento, o Conselho Nacional de Justiça, nos autos do pedido de providências nº 000123082-.2015.2.00.0000, formulado pela União/AGU, julgou não haver irregularidade na dispensa, por ato normativo, da apresentação de certidão negativa de tributos para o registro de título no Registro de Imóveis:
 

“CNJ: Pedido de Providências Provimento do TJ-RJ que determinou aos cartórios de registro de imóveis que deixem de exigir a certidão negativa de débito previdenciária (CND) Pedido formulado pela UNIÃO/AGU para a suspensão cautelar e definitiva dos efeitos do Provimento n. 41/2013, além da instauração de reclamação disciplinar contra os magistrados que participaram da concepção e realização do ato e ainda, que o CNJ expeça resolução ou recomendação vedando a todos os órgãos do Poder Judiciário a expedição de normas de conteúdo semelhante ao editado pela requerida Provimento CGJ nº 41/2013 editado pelo TJRJ está de acordo com a interpretação jurisprudencial do STF Ressalte-se que não houve qualquer declaração de inconstitucionalidade dos artigos 47 e 48 da Lei nº 8.212/91, mas sim fixação de norma de competência da Corregedoria Geral de Justiça local para regulamentar as atividades de serventias extrajudiciais vinculadas ao Tribunal de Justiça Pedido de providências improcedente”.

 
Mesma dispensa normativa, consta das Normas Paulistas, no item 60.2 do Capítulo XVI, aplicável à lavratura dos atos notariais.
 
A cobrança indireta de tributos pelo notário é afronta ao livre exercício à atividade econômica e profissional, bem como da disposição de bens, compelindo ao bem uma situação de “fora do comércio” colidindo, por fim, com o princípio da função social do imóvel, vez que sem a regularização da transmissão sucessória, a propriedade se torna irregular.
 
Outro argumento para a dispensa é qualidade propter rem da obrigação tributária.
 

OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA PROPTER REM. RESPONSABILIDADE POR SUCESSÃO. ARTIGOS 130 E 131 DO CTN.I – A Primeira Seção desta Corte Superior, em 25.11.2009, no julgamento do REsp nº 1.073.846/SP, de relatoria do Ministro Luiz Fux, submetido ao regime previsto no art. 543-C do CPC, pacificou entendimento no sentido de que a obrigação tributária, quanto ao IPTU, acompanha o imóvel em todas as suas mutações subjetivas, ainda que se refira a fatos imponíveis anteriores à alteração da titularidade do imóvel, exegese que encontra reforço na hipótese de responsabilidade tributária por sucessão prevista nos artigos 130 e 131, 1, do CTN . II – Agravo regimental improvido. (grifei)

 
Para corroborar com esse entendimento, convém transcrever o entendimento de Rodrigues (2002. p. 79):
 

“A obrigação propter rem é aquela em que o devedor, por ser titular de um direito sobre uma coisa, fica sujeito a determinada prestação que, por conseguinte, não derivou da manifestação expressa ou tácita de sua vontade. O que o faz devedor é a circunstância de ser titular do direito real, e tanto isso é verdade que ele se libera da obrigação se renunciar a esse direito.”

 
Ora, se a obrigação acompanha o bem, independente de quem seja o titular do direito, a que se serve condicionar a formalização da sucessão a apresentação da certidão negativa de débitos? Se a dívida é junto à união, qual o motivo de se fazer o ajuste final na declaração do espólio, se os herdeiros, no exercício seguinte terão que declarar a aquisição do bem por sucessão causa mortis? O notário e o registrador não podem ser imputados a fiscalizar tal tipo de obrigação tributária, pois o próprio Código Tributário Nacional regra a responsabilidade do sucessor:

 
131. São pessoalmente responsáveis:
(…)
II – o sucessor a qualquer título e o cônjuge meeiro, pelos tributos devidos pelo de cujus até a data da partilha ou adjudicação, limitada esta responsabilidade ao montante do quinhão do legado ou da meação; (grifei)

 
Assevero, como de início, que a normativa nos parece desatualizada – a própria norma em capítulos diferentes se contradiz, senão veja o item 119.1, Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo:
 

117.1. Com exceção do recolhimento do imposto de transmissão e prova de recolhimento do laudêmio, quando devidos, nenhuma exigência relativa à quitação de débitos para com a Fazenda Pública, inclusive quitação de débitos previdenciários, fará o oficial, para o registro de títulos particulares, notariais ou judiciais. (grifei)

 
Vejamos conforme acima, que o item 116.2 do Capítulo XVI das NSCGJ/SP regra que a existência de débitos municipais e federais impedem a lavratura da escritura de inventário, entretanto o recém colacionado item 117.1 do Capítulo XX, da mesma normativa, retrata que o registrador imobiliário não poderá exigir nenhuma quitação tributária de dívida fazendária. Ora, se não é requisito para o registro, também não o pode ser para a formalização da sucessão (escritura).   
 
A primeira Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital de São Paulo também decidiu nesse sentido:
 

Primeira Vara de Registros Públicos de São Paulo – Dúvida Registrária – Tabelionato de Notas – M. F. de O. M.  Existindo norma expressa no sentido de que os Oficiais não podem exigir, para registro de título, qualquer documento relativo a débitos para com a Fazenda Pública, ou Municipalidade de São Paulo, logo a exigência ora apresentada deve ser afastada. Processo 1111333-04.2018.8.26.0100. (grifei)

 
Sendo assim, nosso entendimento é no sentido da inconsistência da norma Paulista, pela ab-rogação da Resolução 35/2007 do CNJ, da sequela da dívida junto ao bem transmitido aos sucessores do falecido, e no caso de dívida com a união, pela existência da via ordinária de cobrança de eventuais débitos, SENDO POSSÍVEL a lavratura do inventário extrajudicial com dívidas que recaiam sobre os bens do espólio transmitente, sem a responsabilização pessoal, administrativa e tributária do tabelião e do registrador imobiliário.