A paternidade socioafetiva – reconhecimento legal de parentesco a partir dos vínculos sociais e afetivos entre um adulto e uma criança que não possuem filiação biológica – voltou à discussão após uma decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), que determinou que um homem deverá pagar pensão alimentícia a uma criança mesmo depois que um exame de DNA confirmou que ele não é o pai biológico. Na deliberação, a 4ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP alegou que o pai já tinha criado um vínculo com a criança, e isso configuraria paternidade socioafetiva.
 
A socioafetividade, que abrange principalmente casos de homens que registram filhos biológicos de terceiros em seus nomes, embora também se aplique a mulheres, em menor grau, é complexa e tem passado por constantes modificações nos últimos anos. O conceito surgiu das chamadas “adoções à brasileira”, isto é, adoções irregulares em que alguém registra uma criança como se fosse seu filho, mesmo sabendo que a paternidade ou maternidade biológica pertence a outra pessoa. Casos desse tipo, como não foram seguidos os trâmites legais necessários, são contrários à norma jurídica e não podem ser comparados ao ato formal de adoção, conforme explica Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas) e advogada familiarista.
 
“Quando alguém assume a paternidade de uma criança que não é sua, fazendo o registro em seu nome, pratica crime contra o estado de filiação. O crime pode ser considerado como praticado com o chamado dolus bonus [quando se identifica a boa intenção ou a nobreza do motivo, embora o ato seja reprovável], podendo o juiz deixar de aplicar a pena. No entanto, ainda que o homem, que sabia da falsidade registral, se separe da mãe da criança, vai continuar com as responsabilidades de pai, como pensão alimentícia, além de ter naquela criança um herdeiro”, explica.
 
“Além dessa hipótese, há aquela em que alguém assume no plano dos fatos a paternidade, embora não realize o falso registro, o que popularmente se chama de “filho de criação”, e também se enquadra na paternidade socioafetiva”, afirma Regina Beatriz.
 
O Código Civil em vigor estabelece que a relação de parentesco pode ser biológica ou de outra origem, sendo essa “outra origem” o fundamento legal da paternidade ou maternidade socioafetiva.
 
Muitas decisões judiciais foram proferidas ao longo dos anos no sentido do reconhecimento dessa relação socioafetiva, especialmente em casos de “adoção à brasileira” e, mais recentemente, em casos dos chamados “filhos de criação”. A maioria das causas levadas aos tribunais dizem respeito à recusa da aceitação da paternidade socioafetiva após a separação do casal ou a questionamentos, por motivos de herança, por parte de herdeiros biológicos de quem deixou um filho socioafetivo.
 
“Nessas situações, a jurisprudência se firmou no sentido de que as obrigações paternas devem ser mantidas no caso de separação e que o filho socioafetivo deve ser sucessor em caso de herança”, afirma Regina Beatriz. “Entretanto, em se tratando de “adoção à brasileira”, a vasta jurisprudência do STJ – e, por conseguinte, nos tribunais estaduais – se firmou no sentido da prevalência de uma ou outra espécie de paternidade: a socioafetiva ou a biológica, havendo casos em que o próprio filho, sabendo que aquele homem não era seu pai, pretendia o reconhecimento da paternidade biológica”.
 
Multiparentalidade no STF
 
A situação mudou quando o tema chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 898.060, em setembro de 2016, a Corte fixou uma tese de repercussão geral na qual cabe a multiparentalidade, ou seja, num processo judicial podem ser reconhecidos como pai tanto o biológico quanto o socioafetivo simultaneamente. A partir daí, passou a ser possível que uma criança passasse a ter em seu registro de nascimento dois pais e uma mãe, duas mães e um pai, além de outros arranjos, já que não foi delimitado um limite de responsáveis.
 
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”, cita a tese fixada pela maioria dos ministros do STF.
 
Na ausência de legislação sobre o tema, CNJ cria provimentos
 
Em novembro de 2017, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento Nº 63 que, dentre outras medidas, autorizou o registro em cartório da filiação socioafetiva de pessoas de qualquer idade. Com a norma, que tornou bastante frágil o processo de registro de filhos não biológicos, o CNJ tornou meramente administrativo o reconhecimento da paternidade socioafetiva, ou seja, não seria mais preciso buscar a Justiça para reconhecer a filiação socioafetiva; bastava ir a um cartório e registrar a criança.
 
“A Adfas foi contrária ao posicionamento do STF e, especialmente ao provimento do CNJ – esse, então, totalmente inadequado porque não conta sequer com a fiscalização do Poder Judiciário”, afirma Regina Beatriz. “No Registro Civil, quais instrumentos o cartório tem para avaliar a socioafetividade entre o adulto e a criança?”, questiona a jurista.
 
Diante de sucessivas críticas à fragilidade da norma do CNJ, em agosto de 2019, houve a publicação do Provimento Nº 83. O documento alterou trechos da norma anterior e tornou mais rígido o processo do registro de filhos a partir do conceito de socioafetividade.
 
Desde então, o registro de filhos socioafetivos pode ser feito em cartório apenas caso a criança seja maior de 12 anos; caso contrário, a questão deverá ser demandada na Justiça. Além disso, a norma determinou que, para o registro em cartório, ocandidato a pai ou a mãe socioafetivo deve comprovar que a paternidade ou maternidade socioafetiva é estável e está exteriorizada socialmente. O requerente também precisa demonstrar a afetividade por meio de documentos – como apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; inscrição da criança em plano de saúde; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar, etc.
 
No Provimento Nº 83 também foi definido que, caso sejam atendidos todos os requisitos para o reconhecimento da paternidade ou maternidade em questão, o cartório deverá encaminhar o pedido ao Ministério Público (MP), que avaliará cada caso; sem um parecer favorável do MP, não é mais possível fazer o registro.
 
“Diante da omissão do Congresso Nacional, o CNJ acabou ‘legislando’ sobre o tema. Num primeiro momento, porém, abriu-se demais a questão da filiação socioafetiva e isso estava dando margens a muitos abusos e gerando insegurança para as crianças. Com o novo Provimento deu-se mais segurança ao procedimento”, afirma Paulo Roque, advogado especialista em Direito Civil e de Família. “Da mesma maneira acho prudente determinar que o Ministério Público, como fiscal da lei, seja ouvido, como está sendo feito atualmente”.
 
Roque destaca que, mesmo com as novas determinações, só haverá maior segurança para a criança se o cartório realmente investigar a existência da socioafetividade. “Não é só afeto, é muito mais do que isso. Significa haver um tratamento entre os dois literalmente como se fosse de pai e filho. É algo que emerge da relação, e o Direito só faz reconhecer. Não é porque a criança gosta do adulto que vai haver essa relação; é preciso verificar se a pessoa exerce, de fato, a função de pai”.
 
Regina Beatriz também destaca a maior segurança jurídica trazida pela nova medida: “No Provimento anterior, o CNJ foi levado a equívoco. O Provimento 83, em 2019, começou a colocar algumas restrições nesse reconhecimento da multiparentalidade em cartório de registro civil. Outra mudança importante dessa norma foi que desde então só é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, ou seja, não dá mais para uma criança ter dois pais e duas mães, apenas dois pais e uma mãe ou vice-versa”, explica a presidente da Adfas.
 
Socioafetividade e casais LGBT
 
A paternidade e maternidade socioafetiva é um assunto de amplo interesse de casais LGBT, que veem no tema a possibilidade de registrar filhos não biológicos em seus nomes. O próprio Provimento Nº 63 foi publicado após pressão de movimentos LGBT, que reivindicavam a flexibilização do registro de crianças geradas por meio de inseminação artificial.
 
Além da tentativa de registro de crianças geradas a partir de reprodução assistida, a socioafetividade é utilizada em casos, por exemplo, em que uma mulher que já tem um ou mais filhos de um casamento anterior se separa do companheiro, une-se a uma mulher, e a nova companheira deseja registrar a filiação da(s) criança(s) também em seu nome. Da maneira como a legislação está atualmente, em situações desse tipo – da mesma forma que para casais heterossexuais – se a criança tiver menos de 12 anos será possível demandar a filiação socioafetiva unicamente pela via judicial.
 
“A regra existe para registros de crianças com mais de 12 anos. Para situações diferentes desta, será preciso tentar resolver na Justiça. A regra é a paternidade biológica, a exceção é a socioafetiva. Então a Justiça pode excepcionalmente conceder a filiação dependendo do caso”, aponta Roque.