Reforçar a proteção jurídica da maternidade e da mulher transgênero no Direito Notarial e Registral é mais um passo para a expansão da garantia legal dos direitos da mulher no Brasil
 
Comemoramos, no último dia 8 de março de 2021, o Dia Internacional da Mulher.
 
No decorrer de lutas históricas da nossa civilização, as mulheres conquistaram uma série de direitos fundamentais básicos, antes restritos aos homens. No entanto, esse processo foi e continua sendo lento, inconstante e, frequentemente, o reconhecimento é apenas no plano formal.
 
Por isso, a luta pela igualdade de gênero está longe de ter sido superada. Pelo contrário, mais que nunca, assistimos a diversas tentativas de retrocessos políticos na área. Soma-se a isso os efeitos nefastos e desiguais (também na perspectiva do gênero) da crise econômica e sanitária oriunda da Covid-19.
 
Os dados corroboram essas afirmações (Piauí, 2020):
 

  • Segundo o IBGE (2020), a participação da mulher no mercado de trabalho atingiu a menor marca em 30 anos (46,3%) no segundo semestre de 2020. Essa marca é menor também do que o ano anterior à pandemia e do que a participação masculina no mesmo período;
  • Conforme as estatísticas divulgadas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (2020), os canais do governo federal tiveram 12 denúncias de violência contra a mulher registradas por hora em 2020;
  • O rendimento médio mensal por gênero continua discrepante. No primeiro trimestre de 2020, o IBGE (2020) constatou que as mulheres receberam 22,5% a menos que os homens;
  • Em 2020, apenas 33% dos cargos de liderança são ocupados por mulheres em empresas de médio porte na América Latina (Women in Business, 2020);
  • O Brasil ocupa o penúltimo lugar na América Latina em representatividade feminina na política. Temos apenas 15% de deputadas na Câmara dos Deputados (ONU Mulheres, 2020);
  • Esses são apenas alguns dos inúmeros exemplos. Outros tantos poderiam ser trazidos aqui, relacionados com a discriminação e violações no dia-a-dia do mercado de trabalho; o controle (direto ou indireto) do corpo feminino e direito de reprodução pelo Estado ou parceiros; os vínculos afetivos assimétricos e as condições profissionais desiguais como um todo.

 
A pauta dos direitos da mulher deve, portanto, ser relembrada e rediscutida, nas mais variadas perspectivas possíveis. Especialmente se considerarmos a sua natureza transgeracional: as aspirações de liberdade e igualdade entre gêneros afetam as mulheres de hoje e as gerações futuras.
 
Abordar o grande tema “direitos da mulher” envolve também falar de questões de sexualidade, identidade de gênero e também da proteção jurídica da maternidade. Apesar dos recentes estudos que comprovam o adiamento da maternidade ou a opção pela não-maternidade (Lima, 2012), esse assunto é enfrentado por toda mulher, mesmo que para justificar socialmente suas escolhas.
 
A mulher contemporânea, seja mãe ou não, sofre com questões ligadas à maternidade: a pressão social, a culpabilização psíquica, o reforço à idealização da maternidade em redes sociais, a dupla jornada e seus desafios, na hercúlea tentativa de conciliar obrigações maternas e/ou domésticas com a carreira (Rocha, 2012).
 
Nesse contexto, é possível refletir sobre a proteção jurídica da maternidade em várias dimensões. Fazer isso do ponto de vista registral é o desafio aqui proposto.
 
A maternidade, para fins registrais, é presumida do fato natural da gravidez e parto e provada da mesma maneira que o nascimento, com a Declaração de Nascido Vivo – lei 12.662/12 – ou por duas testemunhas. Segundo Cassettari; Oliveira e Neto (2014), isso significa que se declara não somente que houve um nascimento, mas que uma criança nasceu de determinada mulher. Nesse contexto, a maternidade não depende da prática do ato jurídico de reconhecimento, como a paternidade.
 
Apesar disso, apenas com a lei 13.112/15, que alterou a lei de Registros Públicos (lei 6.015/73), a mulher mãe passou a ter expressamente igualdade legal e formal de condições de proceder ao registro de nascimento do seu filho. Antes disso, a legitimidade de registrar o filho era exclusiva do pai (na letra da lei, apesar de já haver atos infralegais que permitiam).
 
Com a modificação, tanto a mãe quanto o pai, isoladamente ou em conjunto, tem o poder-dever de realizar a declaração de nascimento. Há, ainda, uma ampliação do prazo, na falta ou impedimento do pai ou da mãe (art. 52, 1º e 2º da lei 6.015/73, com redação dada pela lei 13.112/15).
 
A seguir, colocaremos algumas situações fáticas pelas quais a mulher mãe poderia passar ao se dirigir ao Cartório ou ao registrar seu filho em estabelecimento de saúde após o parto:
 
1. Comparecimento da mulher casada acompanhada de terceiro que assume a paternidade
 
Estamos diante de uma situação na qual pode incidir uma presunção de paternidade do marido decorrente do casamento (caso se enquadre em um dos incisos do art. 1.597 do CC) somada com uma presunção de paternidade de terceiro pelo seu reconhecimento espontâneo.
 
Sem dúvidas, a escolha da mulher casada de ser acompanhada por terceiro e sua declaração de que este terceiro é o pai deve ser levada em conta. Caso não haja motivo para suspeita de fraude e consentimento dos comparecentes, não há motivos para que o oficial se negue a proceder ao registro nos termos requeridos pelos interessados.
 
2. Reconhecimento de maternidade por mulher incapaz
 
Segundo o princípio da instância, o registrador não atua de ofício e somente lavrará o registro de nascimento quando for instado a fazê-lo, por pessoa capaz e legitimada (Cassettari; Oliveira; Neto, 2014)
 
Como já colocado anteriormente, a mãe tem legitimidade para realizar o registro (art. 52, 1º da lei de Registros Públicos).
 
Quanto à incapacidade, pode ser resultante de incapacidade absoluta (mãe menor de 16 anos); relativamente incapaz (maior de 16 e menor de 18 anos). Exclui-se dessa última hipótese a incapacidade por deficiência, na medida em que o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15) acarretou uma verdadeira revolução na teoria das incapacidades. A pessoa com deficiência possui capacidade civil para os atos existenciais.
 
O entendimento fixado no Provimento 13 do CNJ é que a mãe absolutamente incapaz só poderá proceder ao registro do seu filho se representada no ato por seu representante legal (art 8º, §2º).
 
Filiamos à tese de Cassettari; Oliveira; Neto (2014): é irrelevante a capacidade jurídica da mãe para fins de registro, pois a maternidade decorre de fato natural (gravidez e parto), já comprovado da mesma forma que o nascimento. Logo, mesmo a mãe absolutamente incapaz deveria poder proceder ao registro de seu filho, caso esteja provada a maternidade da mulher incapaz na mesma documentação (Declaração de Nascido Vivo) ou por prova testemunhal (duas testemunhas) que declaram o nascimento (e, consequentemente, a maternidade).
 
Por outro lado, já é consolidado o entendimento de que a mãe relativamente incapaz em  razão da idade, pode registrar o nascimento de seu filho mesmo sem assistência de representante legal (art. 8º, §1º, II do Provimento 13 do CNJ), já que isso é suficiente para o reconhecimento da paternidade (art. 1.609, III e art. 1.860, §único do CC).
 
Desse modo, entendemos que a capacidade jurídica para fins de registro deveria ser exigível apenas para o ato jurídico de reconhecimento da paternidade, quanto ao pai absolutamente incapaz (nos termos do art. 8º, § 3º do Provimento 13 do CNJ).
 
3. Comparecimento de mulher não casada desacompanhada
 
Essa situação refere-se à hipótese de que apenas a maternidade é conhecida, para fins registrais.
 
Como a mulher não é casada, não cabe nenhuma presunção de que o filho foi concebido na constância de casamento (art. 1597 do CC). Como está desacompanhada, não pode incluir o nome de suposto pai no registro, pois a declaração feita exclusivamente pela mãe não é suficiente. A paternidade deve ser investigada ou o próprio pai deve reconhecer a paternidade, seja declarando-a presencialmente ao oficial ou com a apresentação de declaração ou por meio de procurador (ambos com firma reconhecida ou instrumento público) – (Assumpção, 2015).
 
Nesse caso, o oficial deve indagar a mãe sobre a paternidade e esclarecer sobre a possibilidade de averiguação oficiosa da paternidade. Apenas se ela indicar o suposto pai e o interesse na abertura do procedimento, o oficial deve informar ao juiz do caso, nos termos do art. 2º da Lei 8.560/92. Caso contrário, deve lavrar o registro, sem a indicação de paternidade (Padoin, 2011).
 
4. Maternidade socioafetiva
 
O Provimento 63/17 do CNJ regulamenta o registro da filiação socioafetiva. Foi, contudo, modificado pelo Provimento 83/2019, que possibilitou as hipóteses de reconhecimento de filiação socioafetiva pela via extrajudicial (Oliveira, 2019).
 
Nos termos do art. 10, após a modificação, autoriza-se o reconhecimento extrajudicial e voluntário de maternidade (ou paternidade) socioafetivo de pessoa acima de 12 anos (para menores de 12 anos, apenas via judicial).
 
Exige-se, também, que o registrador ateste a existência de vínculo afetivo e não que automaticamente registre com base apenas na declaração dos interessados (art. 10-A, §1º).
 
Por fim, o provimento traz a limitação de no máximo duas mães ou dois pais no campo da filiação (art. 14).
 
Sem dúvidas, o provimento já significou certo avanço para simplificar o procedimento de registro da maternidade socioafetiva, apesar de haver entraves que permanecem na prática (Oliveira, 2019).
 
5. Gestação por substituição
 
A Resolução 2.013/13 do Conselho Federal de Medicina regulamenta a possibilidade de doação temporária de útero. Estamos falando, por exemplo, de uma mulher que não pode gestar ou em união homoafetiva e que se vale da famosa “barriga de aluguel”.
 
Apesar do apelido, no Brasil, a doação temporária de útero não pode ter caráter lucrativo e deve haver parentesco consanguíneo até quarto grau com um dos parceiros.
 
Nessa hipótese, não vigoraria a presunção de maternidade da mulher que gestou e teve o parto (cedente de útero). Deve ser presumida a maternidade da doadora do material genético que gestou por substituição. Não haverá maiores problemas se a mãe biológica foi corretamente inscrita na Declaração de Nascido Vivo. A dificuldade prática pode surgir se o profissional de saúde não tiver informação do procedimento e indica erroneamente a mulher que gestou e pariu como mãe (Cassettari; Oliveira; Neto, 2014).
 
Há três possibilidades de solução dessa questão: 1) suscitar procedimento de dúvida (art. 296 c/c 198 a 204 da lei de Registros Públicos); 2) apresentação dos documentos comprobatórios e o oficial encaminha ao juiz o caso; 3) mais simplificado: não havendo suspeita de fraude e com consentimento de todos envolvidos e prova documental do procedimento, o oficial procede ao registro da mãe biológica (Cassettari; Oliveira; Neto, 2014).
 
Fizemos, portanto, um balanço geral das regras registrais vigentes e que afetam diretamente a mulher mãe e as eventuais situações fáticas, constrangimentos ou dificuldades registrais que a mulher mãe poderia passar no decorrer do procedimento.
 
Outra questão registral, agora relacionada aos direitos de minoria e indiretamente conectada ao direito das mulheres, no caso, da mulher transgênero, é o direito de alteração do prenome e do gênero nos registros de nascimento e casamento*.
 
A mulher transgênero, assim como o homem transgênero, não necessita realizar cirurgia de redesignação sexual, tratamento hormonal ou patologizante e nem de mandado judicial para alteração do prenome nos seus registros de nascimento e de casamento.
 
Esse entendimento foi fixado na ADI 4275 pelo STF, em interpretação conforme a Constituição de 1988 do art. 58 da lei 6.015/73, que enquadrou o nome social da pessoa transgênero na possibilidade de alterar o nome para apelidos públicos e notórios.
 
A Suprema Corte observou posicionamento do STJ anterior, a Opinião Consultiva 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o direito ao nome do Pacto de San Jose da Costa Rica e o posicionamento da Organização Mundial da Saúde de que transexualidade não é doença mental. Além disso, fundamentou sua decisão na dignidade da pessoa humana; igualdade, intimidade, direito à saúde (bem-estar biopsicofísico) e direito à felicidade.
 
Ficou consolidado pelo STF que isso não fere o princípio da veracidade registrária, sopesado em relação à proteção da intimidade e que o princípio da publicidade deve ser mitigado, restringindo o acesso ao inteiro teor da alteração de prenome e gênero ao próprio requerente ou por decisão judicial.
 
A partir da decisão do STF, o CNJ aprovou o Provimento 73/2018, para regulamentar essa alteração do prenome de pessoa transgênero.
 
Por fim, apenas no caso de suspeita de fraude ou má-fé, o registrador deve submeter à apreciação do Judiciário.
 
*Sobre esse tema, convido meus leitores a assistirem meu vídeo no canal do Youtube da Escola dos Notários e Registradores do Estado do Rio de Janeiro (Enoreg RJ): Disponível aqui.
 
Diante de todo exposto, é notório que a mulher, mãe ou não, transgênero ou cisgênero, passa por inúmeras situações de violações diárias aos seus direitos mais básicos, inclusive no âmbito do Direito Notarial e Registral.
 
É preciso, cada vez mais, repensarmos as regras registrais para promover a efetividade dos direitos das mulheres e, na medida do possível, simplificar o procedimento registral para a mulher, especialmente em situações que fogem daquilo que é denominado de “tradicional”.