A jurisprudência do STJ corretamente, com base na boa-fé objetiva, vem mitigando a regra de impenhorabilidade do bem de família legal, prestigiando, assim, o também fundamental direito à tutela executiva
 
Como forma de garantir o direito à moradia e a dignidade da pessoa humana, a lei 8009/90, em seu art. 1º, determinou que “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.”
 
Prevê a lei 8.009/90 a proteção legal do bem de família, que não se confunde com a convencional, a que, por sua vez, é regulada pelo art. 1.711, do CC: “podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família“.
 
A diferença primordial entre os institutos é que o bem de família legal, diferentemente do convencional, não gera a inalienabilidade do bem: “o bem de família legal, regulado pela lei 8.009/90, gera, apenas. A impenhorabilidade, não respondendo pelas dívidas civis, trabalhistas, comerciais, fiscais, previdenciárias e de qualquer natureza” (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. Volume 1,11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 558).
 
Conforme reiteradamente consignado pelo STJ a proteção ao bem de família decorre da “despatrimonialização do Direito Civil, que impõe uma releitura dos institutos à luz do feixe axiológico trazido pela CF, ou seja, uma verdadeira filtragem constitucional, na medida em que a interpretação das normas civis deve privilegiar, sempre, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a igualdade substancial, previstas nos arts. 1º, III, e 3º, III e IV, da CF, tendo, pois, como centro o ser humano e suas necessidades existenciais.” (REsp 1.364.509/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 17.06.2014).
 
Não obstante a proteção prevista no art. 1º, o art. 3º da lei 8009/90 estabelece exceções à impenhorabilidade do bem de família, destacando-se, aqui, as dívidas que decorrerem do próprio imóvel, sendo bom ponderar, ainda, o recente entendimento do STF no sentido de que o bem do fiador que garante contrato de locação comercial não pode ser penhorado (RE 1.296.835, Rel. Ministra Carmem Lúcia, DJe 29.01.2021).
 
Todavia, o STJ, tendo como fundamento a cogente diretriz interpretativa e aplicativa da boa-fé objetiva (arts. 113 e 422, do CC), levando em consideração, ainda, a necessária repressão ao abuso de direito (art. 187, do Código Civil) – inerente a qualquer Ordenamento Jurídico Democrático -, vem entendendo pela existência de outras exceções à impenhorabilidade do bem de família.
 
Os julgados do STJ que mitigaram a regra de impenhorabilidade basicamente dizem respeito a utilização indevida – leia-se: de má-fé -, da proteção legal dada ao bem família pela a lei n. 8009/90. Vejamos alguns dos casos analisados pela Corte:
 

a)  Alienação de bens em fraude contra credores, o que foi reconhecido por sentença em Ação Pauliana, retornando o bem ao patrimônio do devedor (AgRg no REsp 1.085.381/SP, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJe de 30.3.2009);
 
b)  O devedor alienou todos os seus bens, menos um, durante o curso de processo que poderia levá-lo à insolvência (REsp 1.299.580/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 20.03.2012);
 
c) Transferência de imóvel residencial da família no trâmite de execução em face do casal, para a cunhada e irmã dos devedores (REsp 1.575.243/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 02.04.2018);
 
d) Doação ao filho, menor impúbere, que sequer havia interesse na realização do negócio, sendo manifestado, na verdade, a vontade dos pais, com a realização de anterior promessa de compra e venda “de gaveta” com terceiros, de modo ocultar o patrimônio dos patriarcas no registro de imóveis (REsp 1.364.509/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 10.06.2014);
 
e) Alienação fiduciária do bem de família para garantia de contrato, sendo alegado pelo devedor, após o inadimplemento do negócio jurídico, a impossibilidade de venda ou leilão do imóvel, haja vista a sua impenhorabilidade consagrada pela lei 8.009/90 (REsp 1.595.832/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 4/2/20).

 
Não há como duvidar do acerto das decisões do STJ, sob pena de se prestigiar a má-fé e o ilícito, além de recepcioná-la como fonte de direitos e garantias, algo completamente incompatível com o Estado Democrático de Direito existente na República Federativa do Brasil, inclusive por ser impossível ter-se como justo aquilo que vai contra a norma, os bons costumes e a eticidade, sendo bom lembrar, neste sentido, que a construção de uma sociedade justa é um dos objetivos da RFB (art. 3º, I, da CF).
 
De fato, a impenhorabilidade do bem de família é uma garantia, mas que, todavia, deve ser interpretada e analisada de acordo com a cláusula geral de boa-fé, sob pena de afastamento da proteção com fundamento no abuso de direito: “é possível, com fundamento em abuso de direito, afastar a proteção conferida pela lei 8.009/90” (REsp 1.299.580/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 20.03.2012).
 
Por mais nobre que seja a garantia dada pelo legislador esta jamais pode se desapegar das vertentes da boa-fé: “Com efeito, nenhuma norma, em nosso sistema jurídico, pode ser interpretada de modo apartado aos cânones da boa-fé” (REsp 1.364.509/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 10/6/14)
 
Neste sentido, oportuna citação do min. Sálvio de Figueiredo Teixeira no REsp 123.495/MG, ao julgar caso envolvendo a proteção do bem família, e que é corriqueiramente citado nos arrestos recentes do STJ sobre o tema: “não é ao lado do que anda de má-fé que se deve colocar o direito; sua função é proteger a atividade humana orientada pela moral ou, pelo menos, a ela não oposta” (REsp 123.495/MG, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJe 18.12.1998).
 
É bem verdade que a tarefa do Judiciário ao analisar a penhorabilidade do bem de família não é das mais fáceis, pois trata-se do confronto entre duas garantias fundamentais, quais sejam o mínimo existencial e o direito à tutela executiva, conforme bem elucidado pela Ministra Nancy no REsp 1.364.509/RS: “Então, no que tange à aplicação das disposições jurídicas da Lei 8.009/90, há uma ponderação de valores que se exige do Juiz, em cada situação particular: de um lado, o direito ao mínimo existencial do devedor e/ou sua família; de outro, o direito à tutela executiva do credor, ambos, frise-se, direitos fundamentais das partes” (REsp 1.364.509/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 10.06.2014).
 
Contudo, a ponderação desses valores deve levar também em consideração a boa-fé objetiva, em uma interpretação dos atos do devedor ao decorrer do processo, seja de conhecimento, seja de execução, de modo a se analisar, inclusive através de provas indiciárias, se o devedor agiu e vem agindo de má-fé para com o credor o com o Juízo Executivo.
 
Interpretar o instituto do bem de família sem se analisar o estrito cumprimento da cláusula geral de boa-fé objetiva pelo devedor seria enfraquecer, ainda mais, o processo de execução, que é o grande “gargalo” da função jurisdicional do Estado, de modo que representa mais de 50% (cinquenta por cento) do acervo de processos do abarrotado Judiciário, conforme Relatório “Justiça em Números em 2020”, feito pelo CNJ.              
 
Assim, não se pode permitir, que valendo-se da proteção dada pela lei 8009/90, o devedor pratique atos tendentes a deturpar o também fundamental direito à tutela executiva, sob pena de, como acertadamente colocado pela Ministra Nancy no REsp 1.575.243/DF, sendo lícito e aceitável a utilização da lei para promover a injustiça: “[…] não se pode permitir que, sob a sombra de uma disposição legal protetiva, o devedor pratique atos tendentes a inviabilizar a tutela executiva do credor, o que implicaria o uso da lei para promover a injustiça e, com isso, enfraquecer, de maneira global, todo o sistema de especial proteção objetivado pelo legislador.” (REsp 1.575.243/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 02.04.2018).
 
O Professor Flávio Tartuce entende que, mesmo que haja má-fé do devedor, não se pode desprestigiar a impenhorabilidade do bem de família, notadamente pelo fato de que […] “normas de exceção não admitem interpretação extensiva; além de sacrificar a proteção da moradia, de índole constitucional.
 
Cumpre aqui, de acordo com todos os fundamentos expostos, descordar da opinião do Jurista, porquanto a boa-fé objetiva deve incidir em todas as relações jurídicas, de modo que, ainda que exista a proteção da Lei nº. 8009/90, esta deve ser excepcionada pela análise do comportamento do devedor.
 
Ou seja, o devedor de má-fé não pode ser valer da impenhorabilidade do bem de família, sendo que, pensar em sentido contrário, seria prestigiar o ilícito, algo que, todavia, não é aceitável em um Estado Democrático de Direito.
 
Essa mesma linha de pensamento foi adotada pelo STJ ao afastar a impenhorabilidade do bem de família no julgamento o REsp 1.575.243/DF: “Com efeito, um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico pátrio é o da boa-fé objetiva, que, além de incidir em todas as relações jurídicas, constitui diretriz interpretativa para as notas de nosso sistema. É nesse contexto que deve ser examinada a regra de impenhorabilidade do bem de família trazida pela lei 8.009/90, tendo como determinante a boa-fé do devedor para que possa se socorrer do favor legal, reprimindo-se quaisquer atos praticados no intuito de fraudar credores.” REsp 1.575.243/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 02.04.2018).
 
Conclui-se, assim, que deve haver uma análise minuciosa por parte do Magistrado quando da apreciação do pedido de impenhorabilidade do bem família, devendo sempre ponderar, inclusive através das provas indiciárias produzidas pelo credor, se o devedor se valeu, de boa-fé, da proteção dada pela lei 8009/90, sob de pena de o bem ser penhorado para a satisfação do credor, prestigiando, assim, o também fundamental direito à tutela executiva.