A alta tecnologia impõe desafios nos vários campos do conhecimento humano. Na área jurídica não tem sido diferente. Desde o surgimento do primeiro computador, por volta de 1947, até os dias atuais, o desenvolvimento tecnológico apresenta novidades que induzem a novos contornos dos institutos jurídicos o que nos força a reconhecer inclusive novo formatos contratuais, sobretudo diante dos modelos de compartilhamento das coisas.
 
Neste breve artigo, interessa-nos mais de perto as plataformas digitais que têm por escopo a intermediação de serviço de hospedagem, sendo a mais conhecida delas o “Airbnb”. O uso massificado do referido aplicativo acabou fazendo surgir, no Brasil, uma discussão jurídica relevante e, deve-se admitir, de difícil solução.
 
Recentemente, o STJ julgou o Recurso Especial 1.819.075-RS vedando o uso de unidade condominial com destinação residencial para fins de hospedagem remunerada, com múltipla e concomitante locação de aposentos existentes nos apartamentos, a diferentes pessoas, por curta temporada. O recurso julgado não estava afetado como recurso repetitivo, de forma que solucionou a controvérsia pontualmente, formando-se importante precedente, mas sem vincular a mesma solução para todos os casos análogos.
 
O julgamento teve ampla repercussão, especialmente porque toca em questões sensíveis das relações condominiais, notadamente às que dizem respeito ao sossego, salubridade e segurança dos condôminos. Nomeadamente o aspecto da segurança tem sido utilizado na argumentação dos que defendem que não pode haver a cessão da posse das unidades imobiliárias em condomínios residenciais por diária. Por outro lado, a discussão se desenvolve no campo da impossibilidade de haver restrição ao exercício do direito de propriedade sem previsão legal, o que deslocaria a discussão para o campo da constitucionalidade da eventual restrição.
 
Parece-nos, entretanto, que a questão tem outra sede que não a relacionada aos poderes inerentes à propriedade e às suas limitações. De fato, há um ponto preliminar sobre o assunto que se resolve a partir da análise da natureza jurídica do contrato celebrado e de sua repercussão prática quanto à compatibilidade da destinação exclusivamente residencial do condomínio. Vale dizer, a questão deve ser resolvida no âmbito da destinação condominial.
 
Para tanto, o ponto de partida é o de se saber se estaríamos diante de um “contrato de locação por diária”, de um “contrato de hospedagem” ou de um modelo contratual atípico?
 
As questões condominiais devem ser vistas depois da definição da natureza jurídica do contrato desenvolvido entre os clientes e os aplicativos de hospedagem. O ângulo de análise deve se dar, a priori, a partir da natureza contratual, só depois perpassando pelos elementos que compreendem o direito de propriedade, inclusive tendo-se em vista que a destinação ou finalidade do condomínio – classicamente observada no sistema brasileiro – pode não ser compatível com a natureza contratual considerada.
 
Observa-se que o serviço prestado através das plataformas digitais aqui analisadas tem como escopo principal a aproximação de pessoas que têm interesse em ceder seus imóveis, especialmente cobrando por diárias, para outras pessoas que buscam hospedagem, tanto assim, que nomeiam as partes no contrato de “anfitrião” e “hóspede”.
 
Nesse passo é importante observar que se está diante de uma categoria contratual complexa que envolve, pelo menos, três relações jurídicas: a) entre o “anfitrião” e o prestador do serviço pelo “aplicativo”; b) entre o “hóspede” e o prestador do serviço pelo aplicativo; e, c) entre o “anfitrião” e o “hóspede”. O objeto dessa relação complexa entre os usuários  envolve publicação de ofertas de hospedagem, busca e reservas de serviços e, ao final, a cessão do imóvel por prazo curto, contratado por diária. Vale consignar que este contrato deve ser analisado, necessariamente, à luz de todos esses elementos. É que, se destacarmos apenas um deles, o contrato, como se propõe na prática, desconfigura-se.
 
Sendo assim, seguiremos para a primeira pergunta: estamos diante de um contrato de locação?
 
Os contratos celebrados através dos aplicativos de hospedagem transcendem os limites conceituais da locação. Como dito, a prática contratual envolvendo os aplicativos de hospedagem tem elementos complexos que englobam pelo menos as três relações já referidas acima, não se limitando, portanto, à relação entre o “anfitrião” e o “hóspede”, que poderia ser vista, eventualmente, como o elemento locatício do contrato. Vale consignar que o contrato celebrado entre o “anfitrião”, o hóspede” e o prestador do serviço do aplicativo, de fato, não se limita a um contrato de locação. Não sendo contrato de locação, não há como se especular também sobre a existência de um contrato de locação para temporada, nos termos previstos no art. 48, da lei 8.245/91 (Lei de Locações).
 
Em sentido contrário a esta posição, Marco Aurélio Bezerra de Melo anota que, “na realidade, o contrato não é de hospedagem, mas sim de locação por temporada, nos moldes previstos na lei 8.245/1991, com as diferenças típicas da pós-modernidade trazida pela economia compartilhada via plataforma digital”
 
A posição suscitada por Marco Aurélio Bezerra de Melo é a mesma trazida pelo Min. Luis Felipe Salomão, em seu voto que, no dia 10 de outubro de 2019, quando se deu início ao julgamento do Recurso Especial 1.819.075-RS, trouxe a conclusão de que os condomínios não podem proibir os proprietários de realizar locação de curta temporada via Airbnb.
 
A par dos argumentos levantados com extrema técnica, não só pelo Min. Luis Felipe Salomão, em seu voto, assim como, pelo Prof. Marco Aurélio Bezerra de Melo, grifa-se mais uma vez que, a partir da análise das cláusulas gerais de contratação dispostas pelos serviços de aplicativos, vê-se que se está diante de contrato complexo, que não se limita ao elemento locatício.
 
Não sendo locação, estaríamos diante de um contrato de hospedagem?
 
A lei 11.771/2008 traz os elementos caracterizadores do contrato de hospedagem no seu art. 23. O complexo contratual aqui analisado envolvendo as plataformas digitais também transcende os elementos do contrato de hospedagem, embora, diante de suas peculiaridades, tenha muito maior aproximação a este contrato.
 
A rigor, o que se denota a partir dos elementos observados do contrato aqui estudado, é que se está diante de uma atividade complexa que envolve o serviço prestado pela empresa proprietária do aplicativo, em que os usuários publicam, oferecem, buscam e reservam múltiplos serviços; sua funcionalidade em ambiente eletrônico; a noção de compartilhamento;  a relação jurídica entre o “anfitrião” e o serviço do aplicativo; entre o “hóspede” e o serviço do aplicativo; e, entre o “anfitrião” e o “hóspede”, transcendendo os conceitos do contrato de locação e hospedagem. Vale destacar a visão de Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi e Maria Lígia Coelho Mathias sustentando que “a natureza jurídica do contrato envolvendo a plataforma Airbnb e assemelhadas é híbrida ou mista, traduzindo-se num contrato sui generis por envolver aspectos da locação e da hospedagem, com preponderância desta última”.
 
Por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.819.075-RS, em abril de 2020, o Min. Raul Araujo apresentou voto divergente do Min. Luis Felipe Salomão, acima já mencionado, e concluiu que se está diante de “um contrato atípico de hospedagem, que expressa uma nova modalidade, singela e inovadora de hospedagem de pessoas, sem vínculo entre si, em ambientes físicos de padrão residencial e de precário fracionamento para utilização privativa, de limitado conforto, exercida sem inerente profissionalismo por proprietário ou possuidor do imóvel, sendo a atividade comumente anunciada e contratada por meio de plataformas digitais variadas”.
 
Diante dos elementos vistos no contrato realizado através das plataformas de hospedagem e aqui já suscitados, parece-nos que a natureza jurídica do contrato aqui estudada é atípica, aproximando-se mais do contrato de hospedagem, de forma que, é mais apropriada para a espécie a afirmativa de que se trata de um contrato atípico de hospedagem.
 
Diante desse quadro, calha agora partirmos para o foco principal da controvérsia, que diz respeito ao impacto que os efeitos deste contrato provocam em relação aos condomínios residenciais e o uso das unidades autônomas por pessoas que contratam através do serviço das plataformas digitais.
 
Vale observar que o serviço prestado pela plataforma de hospedagem por diária alcança imóveis – e mesmo móveis, a exemplo de barcos com cabines para pernoite – em diversas circunstâncias, tais como, flats, apart-hotéis, “residences”, casas fora de condomínio em local urbano ou rural. Essas tipologias imobiliárias não trazem nenhum aspecto controvertido. Com efeito, no caso dos flats, apart-hotéis, “residences”, já é esperado e natural que haja uso destinado ao contrato de hospedagem típico ou atípico, conforme a conclusão a que chegou a 4ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 1.819.075-RS. No mesmo sentido, nas hipóteses das casas situadas fora de condomínio não há discussão sobre o uso de espaços condominiais.
 
O ponto polêmico surge, então, nos casos em que o objeto do contrato de hospedagem atípico aqui considerado é uma unidade imobiliária em condomínio edilício com destinação residencial. Vale dizer, o ponto controvertido diz respeito ao “contrato de hospedagem atípico em condomínio com destinação residencial”.
 
Conforme já dito, a questão antes de perpassar pela impossibilidade de limitações aos elementos inerentes ao direito de propriedade, diz respeito à constituição e, sobretudo, à atribuição da finalidade do condomínio edilício, sendo relevante, especialmente, as regras previstas nos artigos 1.332, inciso III e 1.336, inciso IV, do Código Civil.
 
A discussão central sobre a possibilidade ou não de se disponibilizar unidades imobiliárias para hospedagem por diárias em condomínio edilício através do uso de plataformas digitais encontra-se, portanto, na destinação do condomínio prevista na convenção. Uma vez definida a destinação por ato de vontade do instituidor e não modificado pelos condôminos, estes devem observá-la, a teor do art. 1.336, IV, do Código Civil.
 
Se no ato de vontade de instituição do condomínio edilício, seja por destinação do proprietário da edificação; seja pelo incorporador; seja pelo testador, ficou determinado que a destinação ou finalidade do condomínio edilício é residencial, esta deve ser observada, sem que isso represente afronta ao direito de propriedade do condômino.
 
As tradicionais vedações sobre a impossibilidade de ser ter, por exemplo, uma loja, um consultório médico, uma clínica de beleza em um apartamento, não suscita a mesma discussão que vemos agora para o contrato atípico de hospedagem. A obrigatoriedade de se observar as regras sobre a destinação da edificação não afronta o direito de propriedade e não há inconstitucionalidade, porquanto se está observando as normas de natureza convencional autorizadas pela lei e, dentro das quais, deve se desenvolver o exercício do direito de propriedade.
 
Portanto, uma vez disposta na convenção de condomínio que a destinação da edificação é residencial, comercial ou mista, estas devem ser observadas pelos condôminos e por terceiros.
 
O modelo de negócio praticado pelas plataformas digitais que fornecem o serviço de hospedagem por diárias, conforme já dito, aproxima a atividade do ramo da hotelaria e turismo. A própria oferta de preços para uso da unidade imobiliária levando-se em conta o fator “preço por diária”, demonstra que se está diante de atividade voltada para hotelaria e turismo (de lazer, de negócios, entre outros), com fluxo maior de hospedagem, não se compatibilizando com a natureza exclusivamente residencial de determinado condomínio.
 
Sendo assim, se a convenção de condomínio, estabelecida por ato de vontade do seu instituidor e mantida sem alterações pelos condôminos, determina que a natureza da edificação é residencial, os condôminos não poderão dar destinação vinculada à atividade de hotelaria e turismo, próprio do contrato atípico de hospedagem aqui visto, porque incompatível com a destinação exclusivamente residencial prevista na respectiva convenção condominial.
 
Nesse sentido, é possível se concluir que o contrato envolvendo as plataformas digitais de hospedagem e seus clientes tem natureza de contrato de hospedagem atípico, que se aproxima de atividade de hoteleira e de turismo e que, por isso, é incompatível com a destinação residencial prevista na convenção de condomínio edilício, de forma que o condômino não poderá ceder o imóvel nesta modalidade contratual, salvo existindo autorização expressa constante na convenção de condomínio, ou nas hipótese de concordância tática dos demais condôminos. O tema requer outras reflexões, que pretendemos fazer, em breve, em artigo mais detalhado.