Em março deste ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou decisão que negou o direito de uma mãe usar o perfil de sua filha falecida no Facebook. A empresa havia excluído a conta, já que os termos de uso vedavam a possibilidade de acesso ilimitado ao conteúdo após a morte. Em seu voto, o desembargador-relator Francisco Casconi lembrou que não há regras específicas sobre herança digital no ordenamento jurídico brasileiro.
O tema é cada vez mais evidente e gera intensos debates, mas as decisões relacionadas ainda são escassas. Há casos como uma liminar de 2013, da 1ª Vara do Juizado Especial Central de Campo Grande, que autorizou uma mãe a excluir a conta de Facebook da filha. Já em 2020, a 10ª Vara Cível de Guarulhos (SP) permitiu o acesso de uma mulher aos e-mails de seu falecido marido que continham documentos de negociações com uma imobiliária.
Como mostram os casos, o próprio conceito é amplo. O advogado Marcos Ehrhardt Júnior, professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), afirma que não há consenso doutrinário sobre o que deve ser considerado herança digital. Outro problema, segundo ele, é a “ausência de legislação específica sobre um assunto cujos desdobramentos não foram considerados pela esmagadora maioria da população, que tradicionalmente não gosta de lidar com temas relativos ao Direito Sucessório”.
Regulação do tema
A advogada Ana Lúcia Ricarte, do escritório Ricarte Advocacia, atua, dentre outras áreas, com Direito de Família e Sucessões, e é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam) em Mato Grosso. Para ela, sem legislação específica sobre herança digital, devem ser aplicadas as regras gerais sobre herança previstas no Código Civil, e como analogia a Lei dos Direitos Autorais e o Marco Civil da Internet.
Por outro lado, o advogado Felipe Negreti de Paula Ferreira, do escritório Laurentiz Sociedade de Advogados, que também atua na área, entende que a falta de regras para a herança digital muitas vezes abre espaço para o arbítrio do Poder Judiciário e gera instabilidade nas decisões.
Atualmente existem projetos de lei para regular a herança digital. Porém, os PLs 4.099/2012, 4.847/2012, 7.742/2017 e 8.562/2017, por exemplo, encontram-se arquivados. O PL 3.050/2020, mais recente, aguarda parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara.
Felipe entende que todas as propostas também estão desatualizadas. Já Marcos considera positivo que existam projetos neste sentido e torce para que os debates cresçam e explorem o potencial controverso do assunto.
Dados distintos e patrimônio
“Muito do dissenso acerca do tema diz respeito a compreensões diversas sobre o que deveria compor o acervo de bens digitais, especialmente quando nos deparamos com a exploração econômica de bens personalíssimos como, por exemplo, o uso da imagem em plataformas digitais e redes sociais”, explica Marcos.
As discussões não são restritas a perfis nas redes. Segundo o professor, nos próximos anos devem crescer as demandas envolvendo, por exemplo, titularidade de criptomoedas, milhas aéreas e pontos em programas de fidelidade, acervo de livros e músicas digitais etc. Na visão dele, entretanto, o Judiciário não parece estar preparado para lidar com a complexidade do tema.
Ehrhardt Jr. diz que é necessário distinguir os bens digitais de conteúdo econômico (como a titularidade de um livro eletrônico) e a expressão pessoal do indivíduo no mundo virtual. “Todos nós temos uma persona digital, vale dizer, uma expressão do exercício de nossa personalidade, direito indisponível e intransmissível, no universo virtual”, indica. Algumas pessoas não alteram configurações padrões em contas de redes sociais, enquanto outras decidem escolher o destino da sua presença digital após a morte, por meio de ferramentas disponíveis nas próprias plataformas.
“Não parece existir uma única resposta padrão que possa ser adotada indistintamente pelo Poder Judiciário para lidar com tal questão. Ainda estamos no ponto de analisar os poucos casos que já chegaram à apreciação judicial e entender os desdobramentos de cada uma das alternativas de decisão”, pontua.
A ideia, por exemplo, do testamento como instrumento específico para dispor sobre a última vontade do falecido é bem consolidada. Mas Marcos lembra que esse ato jurídico geralmente se relaciona a questões de conteúdo patrimonial: “Não parece ser necessário exigir o rigor da formalidade testamentária para tratar de situações sobre a destinação de contas e serviços digitais, especialmente os que não apresentarem conteúdo econômico”, ressalta.
Ele acredita que é necessário “discutir se compete ao inventariante legitimidade exclusiva para resolver tais situações em que existem conflito entre os termos de uso e os interesses dos herdeiros na proteção da memória de pessoas falecidas”. Afinal, nem sempre as escolhas do falecido coincidem com os interesses dos herdeiros, e, para ele, nem sempre os interesses em jogo se referem a aspectos patrimoniais.
Já segundo Ana Lúcia, tudo que é possível comprar pela internet ou guardar em espaço virtual passa a fazer parte do patrimônio das pessoas, e consequentemente do seu acervo digital. Ela entende que o legado digital abrange tudo que possa ser passado para os herdeiros, sejam bens econômicos ou meramente emocionais, e portanto essa transmissão precisa sempre ser garantida.
Felipe defende que essa garantia ocorra sem contestações caso o titular tenha demonstrado vontade nesse sentido: “Se o de cujus é o detentor das informações e deseja partilhar, sua vontade deve ser garantida”. Caso não exista essa disposição prévia do falecido, ele entende “ser transmissível todo conteúdo passível de valoração econômica”, mas apoia a ocultação de comunicações com terceiros e documentos compartilhados. Assim, por exemplo, uma conta de Instagram poderia ser posteriormente movimentada, com suas publicações mantidas, mas seriam excluídas todas as conversas e interações feitas pelo antigo usuário.
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0001007-27.2013.8.12.0110
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