Afinal, não podem os demais herdeiros restarem inertes sobre o imóvel objeto da ação de usucapião pelo longo prazo ininterrupto de 15 (quinze) anos e, posteriormente, se oporem à aquisição legítima do direito de propriedade pelo herdeiro que foi possuidor pelo prazo exigido pela legislação
 
A usucapião extraordinária é reconhecidamente um direito real de aquisição originária da propriedade, e decorrente da posse prolongada de certo bem, seja móvel seja imóvel. Uma das peculiaridades do instituto, como consta no escólio de Melhim Namem Chalhub, é que a “aquisição independe de qualquer relação jurídica entre o proprietário que perde esse direito e o possuidor que o adquire”, sendo tal fato de importante relevância para o caso específico da usucapião entre herdeiros, uma vez que independentemente da relação jurídica entabulada entre as partes (no caso, direitos hereditários), a usucapião poderá se consumar.
 
Como é cediço, para que a usucapião extraordinária seja reconhecida, é necessário o preenchimento dos requisitos formais do art. 1.238 do CC, sendo eles: (a) a posse mansa e pacífica do bem; (b) a posse ininterrupta por mais de 15 anos; (c) a dispensa do justo título e da boa-fé. Assim, basta que o possuidor exerça a posse sobre o imóvel, com animus domini, sem oposição de terceiro, pelo prazo ininterrupto de 15 (quinze) anos, para que, então, haja o reconhecimento da usucapião extraordinária, com a aquisição da propriedade pelo possuidor.
 
Esclarecidos os pontos referenciais da usucapião extraordinária, cabe tecer alguns comentários sobre os direitos sucessórios. Como bem nos ensina Eduardo de Oliveira Leite: “Sucessão, do latim succedere, significa 'vir no lugar de alguém' […] ela designa a transmissão de bens de uma pessoa em decorrência de sua morte”. Por conseguinte, é possível concluir que aberta a sucessão, que se dá com o falecimento do autor da herança, o patrimônio deixado transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784 do CC).  Neste ponto, forma-se, caso existam vários herdeiros, um condomínio pró-indiviso, onde todos são possuidores e proprietários da integralidade do patrimônio, sendo, portanto, plenamente capazes de exercer todas as prerrogativas da posse, em especial a sua defesa em relação a terceiros ou até mesmo em relação aos próprios herdeiros, conforme prevê o art. 1.228 do CC. Até a partilha dos bens, todos são possuidores e proprietários da integralidade do patrimônio deixado, vigendo, assim, todas as normativas relativas ao condomínio, conforme dispõe o art. 1.791, parágrafo único6, do CC.
 
Delimitados esses dois institutos, cumpre esclarecer se efetivamente é possível que um herdeiro possa usucapir um bem imóvel objeto de herança.
 
Pois bem, o herdeiro possuidor – usucapiendo na demanda – é, em síntese, uma pessoa que, por conta do falecimento de um ente da linha sucessória, adquiriu, além do direito de propriedade compartilhado, o direito de posse sobre os bens deixados, podendo exercer, desde que antes da abertura da sucessão, a posse de determinado bem imóvel de maneira unilateral. Por outro lado, os demais herdeiros, que possuem os mesmos direitos do possuidor direto, têm todas as prerrogativas de defesa da sua quota parte da posse e da sua propriedade dos bens comuns, sendo que uma vez que se sintam ameaçados por qualquer pessoa, possuem a privilégio de se valer de todos os institutos legais (demandas possessórias e, conforme o caso, petitórias) para buscar defender seus direitos.
 
Ocorre que por muitas vezes os demais herdeiros deixam de usar, dispor, gozar do bem, deixando, em especial, de dar uma destinação social ao imóvel e possuí-lo, afastando, portanto, qualquer garantia que pudessem vir a ter sobre o bem imóvel objeto de herança. Ora, muito embora o inciso XXII do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil assegure o direito de propriedade sobre o imóvel aos legítimos proprietários, tal garantia não é absoluta, em observância à função social da propriedade.
 
Neste sentido, o Ministro Luis Felipe Salomão, ao citar em seu voto7 a doutrina de Pontes de Miranda, nos ensina que o regime de condomínio é posto de lado quando houver posse exclusiva por parte de um dos condôminos, no caso o usucapiendo, ocasião em que se excluem os demais, afastando, assim, a comunhão de fato, ainda que continue existindo a comunhão de direito, sendo plenamente possível que o possuidor direto possa utilizar-se da demanda para atingir a finalidade de aquisição integral do bem (posse e propriedade), por meio da usucapião.
 
Neste seguimento, se somente um dos herdeiros acaba por dar cumprimento à função social da propriedade, poderá adquirir, por meio da usucapião, o direito à propriedade exclusiva do bem, frente aqueles coerdeiros que não se valeram de nenhuma cautela para garantir o seu direito ao quinhão hereditário desde que preenchidos os requisitos da usucapião.
 
Ora, se os demais herdeiros do imóvel, na condição de condôminos, não exercem seus direitos sobre o bem, durante o prazo ininterrupto de 15 (quinze) anos, sem tomar quaisquer providências para defesa ou assunção da posse direta de seu quinhão, seja por meio de defesa prévia, utilizada nos casos em que se visa garantir que o patrimônio do de cujus não seja possuído ainda em vida por um único possível herdeiro, seja por meio de defesa durante a abertura da sucessão, viabilizando que outro herdeiro exerça a posse exclusiva sobre um bem imóvel, como se dono fosse, sem qualquer oposição, evidentemente que poderão ter o seu direito de herança afastado, perdendo, assim, a sua proteção ao direito hereditário.
 
Tal consequência, inclusive, é equivalente à surrectio em favor do herdeiro possuidor, o qual, por exercer a posse mansa e pacífica do imóvel da herança pelo prazo legalmente previsto, sem oposição dos demais herdeiros, adquire uma nova posição jurídico-subjetiva e torna-se o legítimo proprietário do bem, o que dialoga com o macroprincípio da boa-fé objetiva. Afinal, não podem os demais herdeiros restarem inertes sobre o imóvel objeto da ação de usucapião pelo longo prazo ininterrupto de 15 (quinze) anos e, posteriormente, se oporem à aquisição legítima do direito de propriedade pelo herdeiro que foi possuidor pelo prazo exigido pela legislação, o qual, durante um elevado intervalo de tempo, cuida do imóvel, cumprindo integralmente as obrigações acessórias, e sobre ele exerce a posse, observando sua função social.
 
Dito isto, o E. STJ já reconheceu, em diversas ocasiões, a possibilidade de o herdeiro se valer da ação de usucapião para usucapir imóvel objeto de herança, dispondo, para além dos requisitos comuns do instituto, somente do acréscimo do requisito de posse exclusiva para que reste configurada a usucapião, conforme se vê:

 
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 282/STF. HERDEIRA. IMÓVEL OBJETO DE HERANÇA. POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO POR CONDÔMINO SE HOUVER POSSE EXCLUSIVA.
 
1. Ação ajuizada 16/12/11. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/8/16. Julgamento: CPC/73.
 
2. O propósito recursal é definir acerca da possibilidade de usucapião de imóvel objeto de herança, ocupado exclusivamente por um dos herdeiros.
 
[…]
 
4. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784 do CC/02).
 
5. A partir dessa transmissão, cria-se um condomínio pro indiviso sobre o acervo hereditário, regendo-se o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, pelas normas relativas ao condomínio, como mesmo disposto no art. 1.791, parágrafo único, do CC/02.
 
6. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários.
 
7. Sob essa ótica, tem-se, assim, que é possível à recorrente pleitear a declaração da prescrição aquisitiva em desfavor de seu irmão – o outro herdeiro/condômino -, desde que, obviamente, observados os requisitos para a configuração da usucapião extraordinária, previstos no art. 1.238 do CC/02, quais sejam, lapso temporal de 15 (quinze) anos cumulado com a posse exclusiva, ininterrupta e sem oposição do bem.
 
[…]
 
9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte,
 
(REsp 1.631.859/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/5/18, DJe 29/5/18) (Grifou-se)

 
No mesmo sentido, embora exista divergência doutrinária e até mesmo jurisprudencial quanto ao tema, a melhor doutrina caminha no mesmo sentido exposto pelo E. STJ, de reconhecer ser possível a utilização da usucapião entre condôminos, desde que reste comprovada a posse exclusiva conforme lição de Francisco Eduardo Loureiro:
 

Ainda no que se refere ao objeto, o entendimento dos tribunais é do cabimento da usucapião entre condôminos no condomínio tradicional, desde que seja o condomínio pro diviso, ou haja posse exclusiva de um condômino sobre a totalidade da coisa comum. Exige-se, em tal caso, que a posse seja inequívoca, manifestada claramente aos demais condôminos, durante todo o lapso temporal exigido em lei. Deve estar evidenciado aos demais comunheiros que o usucapiente não reconhece a soberania alheia ou a concorrência de direitos sobre a coisa comum. (Grifou-se)

 
Importa ressaltar que a legislação vigente somente veda a utilização do instituto da usucapião quando se estiver diante de bem público, não existindo impedimento legal à utilização nos casos de usucapião entre herdeiros.
 
De outro vértice, quanto ao prazo de início da contagem, a análise dependerá de cada caso concreto, uma vez que cada situação poderá ensejar um entendimento distinto. Para ilustrar as análises casuísticas possíveis, cabe trazer alguns exemplos hipotéticos.
 
Na primeira, o de cujus só deixou um bem imóvel passível de partilha, sendo que durante a sua vida, o herdeiro habitava em condomínio com o de cujus. Então neste caso, a posse exclusiva do herdeiro somente passaria a contar da data do falecimento, pois antes disso, a posse sobre o imóvel era compartilhada com o proprietário, caindo por terra o requisito de exclusividade.
 
Na segunda situação, o de cujus é proprietário de vários imóveis, sendo que um dos herdeiros é possuidor exclusivo de um dos bens desde antes do falecimento do de cujus. Neste caso, a posse exclusiva já era exercida antes da abertura da sucessão, sendo necessário computar o prazo desde o início da sua posse exclusiva, ainda que antes da abertura da sucessão. Ressalta-se que mesmo que haja a aquisição de 1 (um) dos imóveis por meio da usucapião, o herdeiro possuidor não perde a sua condição nos demais bens e não perde, também, qualquer percentual relativo ao seu quinhão hereditário.
 
Também não se pode olvidar que há entendimento no sentido de que o prazo na usucapião (15 anos) somente passaria a contar da data da partilha dos bens9. Todavia, não existe previsão legal determinando como data inicial a data da partilha, sendo que prevalece, no silêncio da legislação, a regra geral, que determina que o prazo passe a contar da data inicial da primeira posse sobre bem, seja ela anterior ou não ao falecimento do autor da herança.
 
Assim, ante o exposto, mostra-se questionável qualquer argumento no sentido de se reconhecer não ser possível a usucapião sobre imóvel deixado pelo instituidor da herança, em detrimento dos demais herdeiros, ao argumento de que o imóvel adquirido por herança é insuscetível de usucapião, sendo plenamente possível que um dos herdeiros possa se valer da usucapião em seu favor, para obter um ou mais bens deixados pelo falecido, desde que observados os requisitos para a configuração extraordinária, previstos no artigo 1.238 do Código Civil, e, também, o requisito estabelecido pelo E. STJ, qual seja, o exercício da posse exclusiva, com animus domini, pelo prazo de 15 (quinze) anos, devendo ser feita uma análise casuística antes de se chegar à conclusão sobre o início da contagem do prazo.