A imposição da separação de bens aos maiores de 70 anos e a aplicabilidade da súmula 377 do STF, até sua possibilidade de afastamento por pacto antenupcial
 
Atualmente, o Código Civil determina o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de 70 anos, conforme inciso II, do art. 1641, sendo este entendimento proveniente do CC/1916, onde se aplicava a obrigatoriedade do regime aos homens com mais de 60 e as mulheres com mais de 50 anos de idade.
 
Sob o enfoque da igualdade constitucional entre homens e mulheres, o CC/2002 evoluiu. Porém, quanto à imposição de regime de bens aos nubentes em razão de sua idade, permanece atentando contra os princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana e liberdade, tolhendo o exercício da autonomia da vontade do idoso enquanto sujeito de direitos.
 
Doutrinariamente, muitas são as críticas ao art. 1641, II do CC/02, que presume a incapacidade da pessoa pela implementação da idade, sequer possibilitando prova em contrário, o que discrimina, ao invés de proteger o idoso. Chegaram a tramitar projetos de lei no intuito de revogar o referido inciso, como o PL do Senado 209/2006, de autoria de José Maranhão (atualmente falecido) e o PL 189/2015, de autoria do deputado Federal Cléber Verde.
 
Tendo em vista a vigência do dispositivo, importante a análise de sua aplicabilidade, porque distinta a do regime da separação convencional de bens, especialmente em razão do contido na súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, onde dispõe que “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.
 
Ocorre que, em havendo a comunicação dos bens adquiridos onerosamente durante o casamento, estamos diante de outro regime de bens, o da separação parcial que, desde a lei 6.515/1977, é supletivo aos casais sem pacto antenupcial, o que de imediato parece fazer pouco sentido. Essa desordem se acomoda ao observarmos que a Sessão Plenária que aprovou a súmula 377 ocorreu em 3/4/1964. Na ocasião, vigia o CC/1916 e o regime de bens supletivo era de comunhão universal.
 
Sobre ainda ter, a súmula 377, aplicabilidade ou não, duas correntes doutrinárias se formaram, como bem explica Tartuce (2021, p.1230-1231):
 

1ª corrente – A súmula está cancelada, pois o CC/2002 não repetiu o art. 259 do CC/1916 que supostamente lhe dava fundamento (art. 259. “Embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento”). Na doutrina, encabeçam esse entendimento Silvio Rodrigues, Francisco Cahali e José Fernando Simão. Para essa corrente, haveria separação absoluta tanto na separação convencional quanto na separação legal de bens, pois nos dois regimes nada se comunica.
 
2ª corrente – A súmula não está cancelada, diante da vedação do enriquecimento sem causa, retirada dos arts. 884 a 886. Assim, urge a comunicação dos bens havidos pelo esforço comum, para evitar o locupletamento sem razão. Essa corrente parece ser a prevalente, seguida por Nelson Nery Jr. e Rosa Nery, Zeno Veloso, Rodrigo Toscano de Brito, Paulo Lôbo, Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Sílvio Venosa, Eduardo de Oliveira Leite, Ralf Madaleno, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvaldt, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. (…)

 
Tanto na doutrina como na jurisprudência, o entendimento presente é de que a súmula 377 permanece hígida. Entretanto, outros de seus aspectos suscitaram dúvidas sobre sua interpretação, como a necessidade ou não de prova do esforço comum, para que haja a comunicação dos bens.
 
Enquanto uma tese sustentava ser presumido o esforço comum na aquisição dos bens durante o matrimônio, outra expunha que tal interpretação tornaria ineficaz o regime da separação legal dos bens, haja vista sua equiparação à comunhão parcial, além de exigir produção de prova negativa para afastar a presunção, tornando praticamente impossível a separação dos aquestos.
 
O Superior Tribunal de Justiça, que apresentava dissonância de entendimento entre as suas terceira e quarta turmas, pacificou a questão através do julgamento dos embargos de divergência em RE 1.623.858-MG1, filiando-se ao entendimento de que necessária comprovação do esforço comum para que haja comunicação dos bens, fixando o seguinte tema:
 

Casamento contraído sob causa suspensiva. Separação obrigatória de bens (CC/1916, art. 258, II; CC/2002, art. 1.641, II). Partilha. Bens adquiridos onerosamente. Necessidade de prova do esforço comum. Pressuposto da pretensão. Moderna compreensão da súmula 377/STF.

 
Destarte, o entendimento atual é de que necessária comprovação do esforço comum, cabendo ao interessado demonstrar efetiva e relevante – ainda que não financeira – participação para a aquisição onerosa do patrimônio.
 
Outra questão importante é a possibilidade de afastamento da súmula 377 mediante pacto antenupcial. Ao ser estabelecida a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, o inciso II, do art. 1641 permanece sendo respeitado, sem dar ensejo a nulidade (art. 1655). O enunciado 634 da VIII Jornada de Direito Civil abordou a questão, concluindo:
 

É lícito aos que se enquadrem no rol de pessoas sujeitas ao regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641 do Código Civil) estipular, por pacto antenupcial ou contrato de convivência, o regime da separação de bens, a fim de assegurar os efeitos de tal regime e afastar a incidência da súmula 377 do STF.

 
Notemos que o afastamento da súmula 377 torna o regime de separação absoluta, o que é relevante na aplicabilidade do art. 1.647, alcançando maior autonomia ao cônjuge na administração dos bens.
 
O estudo acerca do regime da separação legal e súmula 377 tem grande valia na atualidade, entretanto, acredita-se que por pouco tempo. É forçoso concluir que a pessoa não deixe de possuir discernimento apenas porque completou 70 anos de idade, além do que é assaz contraditório reconhecer que o idoso não possa optar pelo regime de bens que melhor lhe aprouver para o seu casamento, mas possa o juiz contar com idade superior e decidir sobre a matéria in concreto.
 
O inciso II, do art. 1641, tutela norma de direito patrimonial em detrimento de direito existencial do indivíduo, não se harmonizado ao sentido da evolução do código civil contemporâneo.