A edição da lei 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”), representou enorme avanço na tutela dos direitos fundamentais de liberdade e de privacidade, bem como do livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
 
Entretanto, perdeu-se a oportunidade de regular a proteção de dados pessoais de titulares falecidos. Fortemente inspirado na regulamentação geral de proteção de dados da Comunidade Europeia, a General Data Protection Regulation (“GDPR”), o legislador brasileiro deixou de fora da LGPD o tratamento de dados post mortem, mas, diferentemente do legislador europeu, o fez de maneira tácita.
 
Ao contrário da GDPR – cujos considerandos 27, 158 e 160 indicam uma posição de neutralidade, consignando expressamente a sua inaplicabilidade aos dados de pessoas falecidas, inclusive para fins de arquivo e de investigação histórica, deixando essa regulamentação a cargo de cada Estado-Membro – a LGPD não possui nenhum dispositivo sobre o tratamento de dados pessoais de titulares mortos.
 
Em linha com o quanto disposto na GDPR, alguns países da Comunidade Europeia editaram normas específicas sobre o tema. A Itália, por exemplo, alterou sua legislação para estabelecer que os direitos relacionados a dados pessoais de pessoas falecidas poderão ser exercidos por quem detenha interesse na proteção de tais dados. A Bulgária, por sua vez, limita esse direito aos herdeiros do de cujus.
 
Na França, por outro lado, abriu-se a possibilidade de o titular dar ao controlador orientações gerais ou específicas sobre retenção, descarte e compartilhamento dos dados pessoais após a morte, permitindo inclusive a indicação de terceiro para assegurar a implementação dessas orientações.
 
No Brasil, a lacuna legal traz uma série de dúvidas acerca da chamada “herança digital”, primeiro sobre a titularidade dos dados pessoais que a compõem e a efetiva existência de proteção a partir do falecimento, e, uma vez definidas essas incertezas, acerca do alcance de uma eventual tutela, lembrando que, mesmo com a morte dos respectivos titulares, seus dados pessoais permanecem sendo tratados por diversos controladores, tais como órgãos e serviços públicos e empresas com as quais se mantinha relação jurídica, inclusive com potencial exposição pública, como em aplicativos e redes sociais.
 
Para tentarmos responder a essas dúvidas, podemos recorrer à regra geral do Código Civil, cujo art. 6º estabelece que a existência da pessoa natural termina com a sua morte, momento em que o indivíduo deixa de ser sujeito de direitos e obrigações, acarretando como efeitos jurídicos, via de regra, a extinção dos direitos e das obrigações de natureza personalíssima e a transmissão aos sucessores dos direitos não personalíssimos, em especial os de natureza patrimonial. Vale dizer, a personalidade da pessoa extingue-se com a morte, sendo por definição intransmissível, mas remanescem os respectivos bens e direitos.
 
Tanto é assim, que os parágrafos únicos dos arts. 12 e 20 do Código Civil legitimam o cônjuge, ascendentes ou descendentes a defenderem os direitos da personalidade do de cujus, sua honra, boa fama e respeitabilidade, bem como a exploração comercial de sua imagem, voz e escritos.
 
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu em diversas oportunidades a legitimidade dos herdeiros para pleitearem indenização por atos lesivos à honra e à imagem do falecido, “porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta”.
 
Enquanto não vem iniciativa legislativa ou regulamentação pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados, as grandes plataformas digitais, de uma forma geral, permitem o cancelamento de perfis mantidos por usuários falecidos, mas o acesso e/ou gerenciamento das contas ainda não possui regras uniformes.
 
Os provedores de aplicativos de relacionamento social têm procurado apresentar em seus termos de uso alternativas para o caso de falecimento. O Instagram e o LinkedIn, por exemplo, autorizam a denúncia de contas de pessoas falecidas, solicitando a transformação em memorial e, sendo um familiar, o encerramento.
 
Já o Twitter informa que pode interagir com pessoa autorizada em nome do Estado ou um familiar direto para efetuar a desativação da conta, enquanto o Facebook permite ao próprio usuário adicionar um “contato herdeiro” para gerenciar algumas funcionalidades do perfil transformado em memorial após o falecimento ou pedir a sua exclusão.
 
Inclusive, a política do Facebook foi de certa forma validada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em julgado recente pela improcedência de ação de familiar contra a exclusão da conta de usuária falecida que não apontou o mencionado “contato herdeiro”. De acordo com o Tribunal bandeirante, os termos e condições aderidos em vida pela titular vedavam o compartilhamento de senhas e a utilização do perfil por terceiros, tendo concluído que “devem prevalecer, quando existentes, as escolhas sobre o destino da conta realizadas pelos indivíduos em cada uma das plataformas, ou em outro instrumento negocial legítimo, não caracterizando arbitrariedade a exclusão post mortem dos perfis. Inexistente manifestação de vontade do titular neste particular, sobressaem os termos de uso dos sites, quando alinhados ao ordenamento jurídico”.
 
A despeito dessas iniciativas do setor privado e da jurisprudência que é paulatinamente construída em torno da matéria, ainda persistem diversas dúvidas acerca do tratamento post mortem de dados pessoais e dos direitos e obrigações relacionados à herança digital, as quais clamam por iniciativas legislativas e/ou regulatórias para eliminar a insegurança jurídica atualmente existente.