As instituições das notas e dos registros públicos, ainda, é certo, que respondam a alguns dados naturais — isto é, fatores que dizem respeito à própria natureza do homem —, têm muito de determinação artificial. Mas o que nelas se avista ser elegível e não uma imposição da natureza das coisas, por mais seja algo, como se disse, artificial, não necessariamente (e até de modo muito raro) pode reputar-se arbitrário. Em geral, essas instituições fazem-se descendentes dos costumes, tributárias de suas vicissitudes históricas, entidades que recolhem e custodiam as experiências favoráveis de sua trajetória na vida jurídica, política, econômica e social: e essas experiências conspiram contra a ideia de cúmulo de funções numa só repartição concentracionária.
Assim, sendo verdade que todas as coisas têm essência, as naturais, criada pela própria natureza, e as produzidas pelo homem, uma essência artificial, esta última é fruto conjugado das ideias que a inspiraram na origem — pelo bom motivo de que a causa final, última embora na execução, é a primeira na intenção — e do dinamismo de seu itinerário.
A instituição notarial integra o ius gentium, porque, numa de suas partes — iusnatural — atende à exigência indeclinável da dação de publicidade comunitária. Quando se consideram a ágora grega e o foro romano tem-se neles um símbolo constante de exigir-se sempre na cidade, na expressão de Ortega y Gasset, “un lugar de ayuntamiento civil, un espacio acotado para funciones públicas”, porque assim o referiu aquele que foi o maior dos urbanistas da América hispânica, Patricio Randle, “la ciudad ha sido edificada con el fin de discutir los negocios públicos”. Ou seja: o que se exige pela ordem natural das cidades é que os negócios jurídicos sejam publicados (scl., tornados de conhecimento público). A outra parte da instituição notarial é já sua fisionomia peculiar, é sua parte determinativa no âmbito do ius gentium, variável segundo as circunstâncias de tempo, de lugar, de tradições etc.
Embora, portanto, a essência do notariado e a do registro público seja a dação da publicidade jurídica — e em cada um deles com determinada maneira de ser —, essa tarefa publicitária, ou, mais exatamente, essa missão jurídica, política, social e econômica especializa-se não só para atender às peculiaridades de tempos, lugares e culturas diversificadas (especialização ab externo: a indicada por fatores externos), mas também com vistas a satisfazer a conveniência de distinguir as artes notarial e registral (especialização de congruo).
Foi assim, historicamente, na formação do notariado hispânico, de que o Brasil recolheu a herança (para o que segue, cf. Bono, Brunner, Núñez, Orlandis, Vallet).
Com efeito, ao tempo das invasões bárbaras, o Direito germânico admitia a autotutela do direito de crédito, a contar da retenção de bens até medidas de constrangimento corporal (o direito de punho — Faustrecht e o de apreensão pessoal do devedor e do fiador — Einlagen); esse derecho de prendar o de embargar conservou-se nas Espanhas até mesmo após a reconquista. Impondo-se aos credores, em dado período, a exigência da não controvérsia notório do crédito reclamado, sob pena de duplicar-se o valor a devolver-se ao devedor mal cobrado (pœna dupli), isso levou a que os credores redescobrissem a relevância dos antigos scribæ, fortalecidos pelos estudos da Universidade de Bolonha. Esses tabeliães foram adotado diferentes cautelas (cautelæ), cláusulas contratuais — nem sempre inocentes (os termos cautelæ Cepollæ significavam, na linguagem tivial, os artifícios, as astúcias, artimanhas etc.), cláusulas que se adicionavam ao fim das escrituras para robustecer o direito dos credores: por exemplo, as cláusulas cautelares de rancura — prévia renúncia do devedor a disvutir judicialmente o débito — e do obstagium ou pactum de ingrediendo, pelo qual o devedor reconhecia, em favor do credor, a possibilidade de apreensão de seus bens ou de sua própria pessoa.
Calha, entretanto, que essas cláusulas não eram suficientes, porque a actio iudicati — a execução para satisfazer o crédito — sempre exigia um título judicial (sententia, iudicatum), e, de não se admitir, então, a execução de título extrajudicial, os credores passaram a procurar as instâncias pretoriana (processo in iure) e judiciária (processo in iudicio), surgindo os processos simulados, de maneira que “el acreedor, antes de entregar el dinero, exigía del deudor una determinada conducta judicial” (Núñez Lagos).
Esse processo simulado (ou juicio fingido) veio a simplificar-se com a sucessiva dispensa do processo in iudicio e da decisão de mérito do pretor, substituindo-se, portanto, a formalidade da sentença pela só expedição de uma ordem, de um mandado (preceptum de solvendo) que se dotou da força correspondente à actio iudicati.
Foi esse preceito de solvendo que se converteu, adiante, num preceptum notariorum, mais conhecido como cláusula guarentigia (palavra italiana, com a significação de garantia, asseguração, solidez), dando-se, pois, a extrajudiciarização da actio iudicati, ou, em outras palavras, a admissão de força executória em título não judicial, documento público (notarial), com que o notário se investia, parcialmente, de funções de fato atribuídas impropriamente à jurisdição dos juízes.
Estava, assim, constituído de modo singular o notariado latino hispânico (ou, mais amplamente, latino-românico-hispânico), e, de par com a tarefa de recolhimento de atos e sua textualização autêntica em títulos formais, própria dos notários, tratou-se, em seguida, da custódia e publicação livresca (tabular) desses títulos (actum e dictum) para amplo conhecimento comunitário. Tarefa a última prontamente reconhecida por distinta da elaboração de títulos, e cuja especialização — com divisão de funções — apresentava já a admitida vantagem de uma nova qualificação jurídica do actum e do dictum, uma espécie de segunda instância na administração pública dos interesses privados.
Essa sobrequalificação pode considerar-se a principal vantagem do discrimen das notas e dos registros. Mas outros benefícios se recrutavam ainda dessa especialização das artes notarial e registral. Por exemplo, o da maior destreza no exercício funcional, correspondente à necessidade de menor expansão quantitativa do objeto dos estudos e da prática específica; em paralelo, assinale-se a tendência vistosa de especialização em diferentes ramos do saber (por exemplo, no da Medicina e no Direito, incluso na repartição das funções dos magistrados). Outro exemplo, agora pelo aspecto negativo, ao evitar-se, com a não cumulação, o favorecimento registrário quanto aos títulos elaborados por quem acumule as funções das notas e dos registros. Mais ainda: a ideia mesma de divisão de funções inibe o ordinariamente reconhecido déficit dos organismos e funções concentracionários, monopolísticos.
Apenas em situações muito excepcionais — v.g., a de distritos (ou mesmo municípios) de pouquíssima povoação e, para mais, distantes de lugar que possa vantajosamente manter as funções discriminadas em várias repartições — é que se poderia justificar a cumulação das atividades extrajudiciais. E, ainda assim, transitoriamente, o mais estreitamente temporário que as circunstâncias permitam. Ao revés, será adversar a história mesma das notas e dos registros, sua experiência vívida, a marcha de seu progresso do geral ao especializado.