Quando há uma ruptura familiar, geralmente ocasionada por processos de separação ou divórcio dos humanos, como deve ser tratada a questão referente à custódia dos animais de estimação?
 
1. INTRODUÇÃO
 
A relação estabelecida entre o ser humano e os animais remonta aos primórdios da civilização.
 
Quando pensamos no termo “animais de companhia” ou “animais de estimação”, a primeira figura que nos vem à mente é a do cão, pois longa é a amizade existente entre os seres humanos e os cães. Daí porque, na contextualização de animais de estimação, daremos enfoque ao processo de domesticação do cão, como exemplo da evolução da ligação afetiva existente entre homem e animal.
 
Segundo consta, data de 20.000 a 40.000 anos atrás o surgimento do cão, o chamado canis lupus familiaris.
 
Muitas são as teorias a respeito de quando ocorreu o considerado encontro entre homem e cão, havendo diversas imprecisões a respeito de suas datas.
 
Contudo, a evidência mais antiga relacionada à domesticação do cão data de 14.200 anos atrás (Bonn-Oberkassel).
 
Como demonstração dessa longa amizade entre homem e cão, deve ser registrado o fato de que os egípcios nutriam grande consideração pelos cães, que eram considerados como parte integrante de suas famílias, havendo registros de que esses animais eram enterrados junto com os membros da família, de forma a simbolizar que a ligação entres eles estabelecida era eterna.
 
Além do registro acima, merece destaque a informação de que foi na Roma antiga que os cães, além de desempenharem suas funções para caça, guerra e guarda, ganharam o status especial de animais de companhia.Dessa maneira, fica evidenciada a estreita relação de afetividade desenvolvida entre os cães e o homem, relação essa que, no passar dos anos, também foi desenvolvida com outras espécies de animais, como por exemplo os gatos.
 
Nos dias atuais, várias são as espécies consideradas como animais de estimação, começando pelos cães e gatos, passando por aves, peixes, répteis, chegando aos simpáticos mini pigs.
 
Segundo dados divulgados pelo Instituto Pet Brasil, no ano de 2020, a população mundial de animais de estimação cresceu 1,7% frente a 2019. Os felinos foram a categoria com maior crescimento (3,1%), seguida por cães (2,1%), répteis e pequenos mamíferos (1,7%), peixes ornamentais (1,0%) e aves ornamentais (0,5%).1
 
O Brasil é considerado um dos maiores mercados Pet do mundo, ocupando hoje a terceira posição entre os países com forte atuação nesse segmento, atrás apenas dos Estados Unidos da América, que ocupa a primeira colocação, e da China.
 
De acordo com o mesmo Instituto Pet Brasil, o mercado brasileiro de produtos e serviços voltados aos animais de estimação concluiu o ano de 2020 com um faturamento de R$ 40,8 bilhões.2 Taís números traduzem não só aspectos econômicos do mercado de animais de estimação, como também reflete a importância que esses animais possuem nos lares das famílias brasileiras.
 
Não são poucos os casos em que os animais de estimação são tratados como verdadeiros membros da família, tal como ocorria no Egito antigo, sendo que os laços de afetividade ganham dimensões muitas vezes inimagináveis para aqueles que não possuem em seu convívio um pet.
 
Por todas essas razões, quando há uma ruptura familiar, geralmente ocasionada por processos de separação ou divórcio dos humanos, como deve ser tratada a questão referente à custódia dos animais de estimação? Com qual das partes deve o animal permanecer? Haveria algum tipo de direito de convivência por parte daqueles que deixam de exercer a custódia do animal? E a quem competiria arcar com as despesas para garantir suas necessidades e bem-estar?
 
Procuraremos, nos tópicos seguintes, responder essas e outras indagações, nada obstante a inexistência no Brasil de legislação específica sobre o tema. Tomaremos por empréstimo a sistematização existente em Portugal e as decisões judiciais que estão sendo proferidas no Brasil.
 
2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEGISLAÇÃO ANIMAL NO BRASIL
 
A CF/88 assegura que todos os Estados brasileiros têm o dever legal de proteger os animais. É o que se compreende do art. 225 da CF/88.3
 
Nos dizeres de Rafael Calmon, “a Constituição Federal brasileira considera o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado um direito fundamental (art. 225). Todavia, embora confira alguma proteção legal aos animais não humanos integrantes do ecossistema, parece não considerá-los como verdadeiros destinatários de direitos fundamentais, pois, de acordo com a tradição jurídica nacional, apenas as pessoas (naturais e jurídicas) podem ser reputadas como sujeitos de direito (CC, art. 1º)”.4
 
Com efeito, o art. 82 do CC brasileiro estatui que são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.
 
Isso quer dizer que ainda hoje, no Brasil, os animais se encontram contextualizados como bens móveis, na categoria dos semoventes. Contudo, a meu ver, essa posição, por si só, não lhe retira a proteção que lhe é dada pela CF/88 e por outras legislações extravagantes existentes.
 
Mas não podemos deixar de citar que, a exemplo do que ocorre em outros países, discute-se no Brasil a necessidade de alteração da legislação para elevar o animal à condição de sujeito de direito.
 
Contudo, os projetos legislativos em tramitação parecem conter algumas incoerências, de forma até mesmo a descaracterizar a real intenção de proteção aos animais.
 
Assim, as alterações legislativas deveriam se ater aos efeitos benéficos de uma proteção aos direitos e bem-estar dos animais dentro de uma realidade condizente com as diversas categorizações jurídicas das espécies. Tal como vem ocorrendo no Brasil, onde está se querendo que prevaleça um viés de causa partidária, poderemos, em um futuro breve, ter como resultado prático das alterações legislativas que pretendem sejam levadas a cabo, por via indireta, o desaparecimento de determinados grupos de animais, uma vez que aos seres humanos será proibido criar e assim perpetuar certas espécies.
 
Os apontamentos acima servem como ponto de reflexão para que os legisladores promovam alterações, menos para agradar determinados grupos ideológicos e mais para proteger os animais, sem que com isso os transformem numa espécie de “seres intocáveis”, o que ocasionaria, mais dia ou menos dia, na extinção da espécie. Todo radicalismo traz prejuízos. Uma posição mais equilibrada, a meu ver, deve sempre prevalecer!
 
Deixando de adentrar nos pormenores das diversas questões atinentes às alterações legislativas em matéria de Direito Animal, que fogem do presente estudo, passamos a nos concentrar em aspectos relacionados ao Direito de Família, em especial na observância das relações afetivas entre seres humanos e animais de estimação ou de companhia, expressões aqui empregadas como sinônimas.
 
No Brasil, diferentemente do que ocorre em outros países, como Portugal, não há referência específica de uma legislação que abarque a questão da posição dos animais diante do rompimento da relação familiar na qual se encontra inserida.
 
Contudo, encontra-se em tramitação no Senado Federal o PL 542/18, que dispõe sobre a custódia compartilhada dos animais de estimação nos casos de dissolução do casamento ou da união estável.
 
Os pontos centrais desse PL visam estabelecer o compartilhamento da custódia de animal de estimação de propriedade em comum, quando não houver acordo na dissolução do casamento ou da união estável. Haveria, também, alteração do CPC, para determinar a aplicação das normas das ações de família aos processos contenciosos de custódia de animais de estimação.
 
O PL, para efeito de caracterização de propriedade comum do animal de estimação, leva em consideração que o tempo de vida do animal tenha transcorrido majoritariamente durante o período do casamento ou união estável. Dessa forma, a meu sentir, eventual documento que venha atestar a aquisição do animal por um ou outro consorte não seria o elemento de relevo para decidir a questão.
 
O indicativo é que prevaleceria o período de convivência entre o animal e os humanos da relação familiar estabelecida, de forma que o elo afetivo estabelecido entre eles tem preponderância para caracterizar a propriedade comum do animal de estimação.
 
Estabelecida a propriedade comum e não havendo na dissolução familiar consenso sobre a custódia do animal, o juiz deve determinar o compartilhamento da custódia e das despesas de manutenção do animal de forma equilibrada entre as partes (art. 1º).5
 
Note-se, também, que a proposta legislativa fixa o juízo da Família como sendo o competente para apreciar e decidir a questão.
 
Já o § 2º, do art. 1º, do PL em comento, estabelece que “no compartilhamento da custódia, o tempo de convívio com o animal de estimação deve ser dividido tendo em vista as condições fáticas, entre as quais, o ambiente adequado para a morada do animal, a disponibilidade de tempo e as condições de trato, de zelo e de sustento que cada uma das partes apresenta”.
 
O Projeto prevê claramente a hipótese em que o compartilhamento da custódia deixará de existir. O texto faz referência explícita que “o descumprimento imotivado e reiterado dos termos da custódia compartilhada acarretará a perda definitiva, sem direito a indenização, da posse e da propriedade do animal de estimação em favor da outra parte, encerrando-se o compartilhamento da custódia”. Nesta situação, a parte punida responderá por eventuais débitos a seu encargo relativos ao período em que o animal se encontrava sob custódia compartilhada.
 
Outras previsões importantes são consideradas no texto apresentado ao Senado. Havendo histórico ou indícios de prática de violência doméstica e familiar, não será concedida a custódia compartilhada do animal, caso em que a posse e propriedade do animal caberá exclusivamente – sem direito de indenização – àquele que demonstrar maior vínculo afetivo com o animal.
 
Impedido de exercer a custódia estará o consorte que porventura pratique qualquer ato de maus tratos ao animal. Tenho que neste ponto mereceria suplementar o texto para que nele restasse previsto, de forma clara e sem embargos de interpretações outras, que a pessoa que apresentasse qualquer histórico de prática de maus tratos, passado ou presente, deveria ter obstado o seu direito de compartilhamento da custódia de um animal de estimação, mesmo que a vítima de maus tratos tenha sido animal de outra espécie.
 
Pois bem. Em linha gerais, ainda mais se considerarmos o vácuo legislativo existente no Brasil em relação à matéria, o referido PL 542/18 se mostra um importante avanço na busca da regulamentação do tema.
 
Infelizmente, a tramitação desse projeto no Senado Federal se apresenta lenta, parecendo não merecer atenção dos nobres legisladores, em detrimento de outras proposituras que deveriam ser melhor estudadas, de forma que nenhum direito viesse a sofrer dano, como por exemplo o da ilegítima tentativa de se buscar a qualquer custo a proibição do direito de criação e manutenção de certas espécies de animais, o que acarretaria, em última análise, a extinção “programada” dessa espécie, contrariando, inclusive, a CF/88 brasileira.
 
Importante frisar, como veremos em tópico próprio, que mesmo diante da falta de previsão normativa, os tribunais brasileiros têm reconhecido o direito de visitas de ex-companheiros ao animal de estimação adquirido na constância de um relacionamento afetivo, caracterizado pelo casamento ou união de fato.