A Lei nº 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, foi criada com o objetivo de “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, como exposto em seu preâmbulo. Para tanto, prevê uma série de medidas de proteção, não só no âmbito judicial, como também no administrativo, além de definir os tipos de violência de que uma mulher pode ser vítima (artigo 7º) e vetar a utilização de benefícios para o agressor (artigo 41), como a composição cível, a transação e suspensão condicional do processo, todos dispostos na Lei nº 9.099/95, que disciplina os procedimentos dos Juizados Especiais, e proibir a aplicação de penas de cestas básicas, prestação pecuniária ou substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa (artigo 17).
 
Não há dúvidas de que a lei, quando promulgada, alterou um paradigma, demonstrando o intuito de o Estado proteger a vítima mulher de violência doméstica ou familiar, que era — e ainda é, a despeito da lei — humilhada, agredida e morta por seus companheiros e não havia uma punição efetiva aos agressores — basta analisar a história da Maria da Penha, cujo processo está disponibilizado no site da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Todavia, com o seu tempo de aplicação, algumas lacunas passaram a ser percebidas, não só por problemas legais, mas também por problemas da organização do Judiciário.
 
O artigo 14 da Lei nº 11.340/06 dispõe que o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra mulher terá competência para analisar questões cíveis e criminais (natureza híbrida). Entretanto, na prática, esse dispositivo não é perfeitamente observado porque esses juizados se limitam a analisar casos relacionados à segunda espécie. Assim, se uma vítima tiver o objetivo de discutir questões de reparação de danos morais, por exemplo, deverá ingressar com uma ação em vara cível, porque isso não pode ser discutido no Juizado Especial, que, teoricamente, seria mais célere para efetivação.
 
Essa compreensão, inclusive, está no Enunciado nº 3 do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, o qual, contrariando a Lei nº 11.340/06, dispõe que “a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é restrita às medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, devendo as ações cíveis e as de Direito de Família ser processadas e julgadas pelas varas cíveis e de família, respectivamente”.
 
Além de contrariar a Lei Maria da Penha, a observância desse enunciado dificulta que determinadas modalidades de violências sejam devidamente submetidas ao escrutínio do juizado. É o caso da violência patrimonial. Existem mulheres que, apesar de terem fonte de renda própria, vivem em um ambiente patriarcalista, não possuindo controle de seu próprio dinheiro. Ou seja, a agredida recebe o seu salário, mas não tem poder sobre seu destino, que é definido por seu cônjuge ou companheiro. Dessa forma, quando ocorre violência física, em que o agressor é obrigado a ser retirado de casa, a vítima corre o risco de ficar incapacitada de praticar alguns atos corriqueiros por simplesmente não ter acesso ao dinheiro do casal, pois, por exemplo, pode estar aplicado em investimentos cuja titularidade seja do agressor.
 
Para coibir isso, a Lei nº 11.340/06 prevê, em seu artigo 24, diversas medidas cautelares a fim de coibir a violência patrimonial. Além disso, a partir da interpretação analógica que pode ser extraída da expressão “entre outras”, contida no final do caput, pode-se concluir que o juiz não se limita às possibilidades dispostas. É possível, obviamente de forma fundamentada, impor outras medidas diversas que efetivem a proteção da mulher.
 
Essa lógica é defendida tanto pela doutrina quanto pelo Conselho Nacional de Justiça, o qual orienta que “(…) os bens da vítima também podem ser protegidos por meio das medidas protetivas. Essa proteção se dá por meio de ações como bloqueio de conta, indisposições de bens, restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor e prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica. De acordo com a lei, o juiz pode determinar uma ou mais medidas em cada caso, podendo ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos pela Lei Maria da Penha forem violados”.
 
Porém, tal tarefa não é fácil e há cautela, por parte de magistrados, na concessão dessas restrições, sob a alegação de que esse objeto é de competência da vara de família. Segundo os julgados, o bloqueio de bens, por exemplo, requer uma discussão probatória, indo de encontro à lógica da análise das medidas protetivas, que possuem caráter emergencial e são analisadas sumariamente. Além disso, o artigo 14-A, incluído pela Lei nº 13.894/19, introduziu a possibilidade de ser proposta ação de dissolução de divórcio ou de união estável no referido juizado, excluindo-se a competência para pretensão relacionada à partilha de bens.
 
A legislação, portanto, traz uma brecha para que os magistrados do Juizado de Violência contra Mulher facilmente evitem ingressar na discussão patrimonial, se eximindo de qualquer tipo de responsabilidade ao afirmar que o objeto da discussão é de competência distinta. Não há, portanto, bloqueio dos bens do casal, conquanto esteja cabalmente demonstrado que a comunhão parcial ou total dos bens e que a mulher era vítima de violência patrimonial.
 
Esse posicionamento, por óbvio, é uma faca de dois gumes: se por um lado preserva os direitos de o investigado não ter seus bens bloqueados, de modo que fique impossibilitado de usufrui-los, por outro lado, não dá qualquer garantia à mulher que convivia com um parceiro abusivo, cujos atos misóginos e patriarcais a impediam de ter total autonomia financeira, a despeito de ter seu próprio emprego.
 
Além dessas questões, é importante destacar que, no caso de Fortaleza, o quantitativo de servidores vinculados ao Juizado de Violência contra Mulher diminuiu de 23 para 18, no período de janeiro de 2020 a abril de 2021, embora durante esse intervalo a diretoria do Fórum de Fortaleza tenha, por meio da Portaria nº 486/2020, determinado a criação do 2º Juizado de Violência contra Mulher. Todavia, essa duplicação foi meramente formal, uma vez que, como demonstrado, a quantidade de agentes públicos tenha diminuído, sobrecarregando e inviabilizando um trabalho a contento. Basta verificar no Anexo V — Membros e Agentes Públicos, de novembro de 2021, disponível no portal de Estrutura de Remuneração e Pessoal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, que será verificado que só existem 13 pessoas ligadas aos referidos juizados.
 
Diante desses dados, e se limitando a Fortaleza, a atuação dos juizados não observa adequadamente os dispositivos da Lei Maria da Penha, à doutrina e à orientação do Conselho Nacional de Justiça. Basear-se em um enunciado do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher amplia esse erro, pois, além de esse dispositivo não ter força de lei, vai de encontro a esta, a qual determina que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher devam possuir competência para discutir questões criminais e cíveis, o que permitiria o julgador realizar uma análise panorâmica do fato. Dessa forma, vítimas de violência patrimonial continuam sem uma proteção adequada, sem acesso imediato aos seus bens que estão na posse do agressor.
 
É importante, por fim, destacar que diante do pequeno quantitativo de servidores destinados a esses juizados, não é possível aumentar suas responsabilidades, sendo compreensível que a competência para divisão patrimonial seja destinada a outras varas. Contudo, isso não pode ser a razão para que as medidas protetivas de natureza patrimonial sejam evitadas, principalmente quando se verifica, no caso concreto, violência patrimonial contra mulher, ainda que, ao fim e ao cabo, a vara de família, por exemplo, seja competente para análise da partilha do patrimônio do casal.