Apelação Cível nº 1002635-98.2021.8.26.0066
 
Espécie: APELAÇÃO
 
Número: 1002635-98.2021.8.26.0066
 
Comarca: BARRETOS
 
PODER JUDICIÁRIO
 
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
 
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
 
Apelação Cível nº 1002635-98.2021.8.26.0066
 
Registro: 2021.0000918277
 
ACÓRDÃO
 
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1002635-98.2021.8.26.0066, da Comarca de Barretos, em que é apelante SILVIA RODRIGUES DE BRITO, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE BARRETOS.
 
ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
 
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores PINHEIRO FRANCO (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), LUIS SOARES DE MELLO (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), GUILHERME G. STRENGER (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL), MAGALHÃES COELHO(PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO) E DIMAS RUBENS FONSECA (PRES. DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO).
 
São Paulo, 20 de outubro de 2021.
 
RICARDO ANAFE
 
Corregedor Geral da Justiça e Relator
 
Apelação Cível nº 1002635-98.2021.8.26.0066
 
Apelante: Silvia Rodrigues de Brito
 
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Barretos
 
VOTO Nº 31.574.
 
Registro de Imóveis – Instrumento particular de dissolução de sociedade por responsabilidade limitada – Necessidade de escritura pública para a transmissão de imóvel da sociedade para a sócia, com valor individual superior a trinta salários mínimos, ainda que realizada a título de pagamento de haveres – Obrigatoriedade da comprovação do reconhecimento da imunidade, ou isenção, do imposto de transmissão de bens “inter vivos” – ITBI, na forma da legislação municipal – Dúvida julgada procedente – Recurso não provido.
 
1. Trata-se de apelação interposta por Silvia Rodrigues de Brito contra r. sentença que julgou a dúvida procedente e manteve a recusa do Sr. Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Barretos em promover os registros, nas matrículas nºs 74.797 e 74.798, do contrato de dissolução de sociedade por cotas de responsabilidade limitada em que prevista a transmissão dos imóveis para a sócia, porque é necessária a escritura pública e porque não foi comprovado o pagamento, ou isenção, do imposto de transmissão de bens “inter vivos” – ITBI (fl. 44/48).
 
A apelante alegou, em suma, que o instrumento particular de distrato é título suficiente para o registro da transmissão dos imóveis que recebeu em razão da dissolução da sociedade comercial. Disse que as alterações contratuais ou estatutárias podem ser efetivadas por instrumento particular, servindo a certidão passada pela Junta Comercial como documento hábil para a transferência por transcrição no registro público competente, como previsto nos arts. 53 e 64 da Lei nº 8.934/1994. Afirmou que a dispensa da escritura pública prevalece para o registro dos bens transmitidos pelos sócios para a integralização do capital social e, ainda, para as transmissões de bens feitas pela sociedade aos sócios em razão da extinção da pessoa jurídica, o que ocorre por força do princípio da simetria. Além disso, não há incidência do imposto de transmissão “inter vivos” nessa transferência, uma vez que basta o arquivamento do instrumento particular de distrato na Junta Comercial. Requereu o provimento do recurso para que a dúvida seja julgada improcedente (fl. 51/57).
 
A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fl. 86/88).
 
É o relatório.
 
2. O art. 64 da Lei nº 8.934/1994 prevê que a certidão dos atos de constituição e de alteração, fornecida pela Junta Comercial, constitui título hábil para o registro da transferência dos bens transmitidos pelo sócio para a sociedade empresária visando a subscrição ou o aumento do capital social:
 
“Art. 64. A certidão dos atos de constituição e de alteração de empresários individuais e de sociedades mercantis, fornecida pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou para o aumento do capital” (grifei).
 
Dessa forma, o instrumento particular de constituição ou alteração da sociedade de responsabilidade limitada, registrado na Junta Comercial, é título hábil para o registro da transmissão do imóvel feita pelo sócio para a integralização do capital social a que se obrigou.
 
Igual, porém, não ocorre com a transmissão de imóvel para o sócio, ainda que promovida a título de pagamento de haveres em razão da dissolução e posterior liquidação da sociedade empresária.
 
Isso porque, não dispondo a lei em contrário, é a escritura pública requisito de validade para a transferência de direitos reais sobre imóvel de valor superior a trinta salários mínimos, como previsto no art. 108 do Código Civil:
 
“Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País“.
 
Por sua vez, não há conflito entre o art. 64 da Lei nº 8.934/1994 e o art. 108 do Código Civil, pois a norma especial prevalece sobre a norma geral na hipótese que prevê, ou seja, na transmissão de bens do sócio para a sociedade promovida para a constituição ou o aumento do capital social.
 
Ausente conflito de normas, e cuidando-se de negócio jurídico celebrado em circunstância distinta, não há que se falar em violação de princípio da simetria, ou violação da isonomia, pois o princípio da igualdade impõe que o tratamento seja igual entre os iguais e desigual entre os desiguais.
 
E não há igualdade entre a sociedade, que tem personalidade jurídica própria, e os seus sócios, inclusive no que se refere aos patrimônios de ambos que são distintos.
 
A distinção entre a pessoa jurídica e os seus sócios, inclusive no que se refere ao patrimônio, foi realçada pelo art. 49-A do Código Civil, introduzido pela Lei nº 13.874/2019, que dispõe:
 
“Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.
 
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos“.
 
A função social das pessoas jurídicas referida no parágrafo único do art. 49-A do Código Civil, que abrange a sua função econômica, embasa o tratamento adotado na legislação para a transmissão dos bens, pelos sócios, destinados à integralização e aumento do capital social, uma vez que são essenciais para o desenvolvimento da atividade empresária.
 
Por isso, a transmissão de bem imóvel da sociedade para o sócio, ainda que a título de pagamento dos haveres decorrentes da dissolução e posterior liquidação da empresa, tem como requisito de validade a escritura pública, salvo se o imóvel tiver valor inferior a trinta salários mínimos, como previsto no art. 108 do Código Civil.
 
O instrumento público não é dispensado pela causa da transmissão do imóvel da sociedade para o sócio, consistente no pagamento de haveres decorrente da sua dissolução, pois até a sua efetiva liquidação e consequente extinção permanece a sociedade com o domínio dos bens que integram o seu patrimônio, como esclarece Fábio Ulhoa Coelho:
 
“A sociedade empresária dissolvida (por ato dos sócios ou decisão judicial) não perde, de imediato, a personalidade jurídica por completo. Ao contrário, conserva-a, mas apenas para liqüidar as pendências obrigacionais existentes (LSA, art. 207; CC/2002, art. 51, Ccom, art. 335, in fine). Em outros termos, ela sofre uma considerável restrição na sua personalidade, na medida em que somente pode praticar os atos necessários ao atendimento das finalidades da liquidação. Qualquer negócio jurídico realizado em nome da sociedade empresária dissolvida que não vise dar seguimento à solução das pendências obrigacionais não pode ser imputado à pessoa jurídica. Esta não é mais um sujeito apto a titularizar direitos ou contrair obrigações, salvo as indispensáveis ao regular processamento da liquidação. Imputam-se, desse modo, as conseqüências do ato exclusivamente à pessoa física que o praticou em nome da sociedade dissolvida” (Curso de Direito Comercial, Vol. 2, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 460).
 
A jurisprudência deste Egrégio Conselho Superior da Magistratura, com iguais fundamentos, exige o instrumento público como requisito para o registro do negócio jurídico de transmissão de imóvel da sociedade para o sócio, como se verifica na ementa do v. acórdão que foi prolatado na Apelação Cível nº 75.582-0/9 da Comarca de Jundiaí, j. 22.02.2001, de que foi relator o Desembargador Luís de Macedo:
 
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Recusa no registro de instrumento particular de distrato social de pessoa jurídica, registrado na Junta Comercial, visando a transmissão de bem imóvel da sociedade para um dos sócios. Aplicação do art. 134, II, § 6º, do Código Civil, sendo necessário que o ato de transferência seja instrumentalizado por escritura pública. Interpretação restritiva, não abrangente da hipótese do art. 64, da lei nº 8.934/94. Dúvida procedente. Recurso a que se nega provimento“.
 
3. Por fim, nos termos do art. 289 da Lei n.º 6.015/73 incumbe ao oficial de registro a rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício, podendo a omissão acarretar a sua responsabilidade solidária no pagamento do tributo, como previsto no art. 134, inciso VI, do Código Tributário Nacional:
 
“Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:
 
(…)
 
VI – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu oficio”.
 
A imunidade prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal não incide quando a pessoa jurídica tiver como atividade preponderante a compra e venda de bens ou direitos sobre imóveis, a locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.
 
Assim, incumbe ao Registrador o dever de fiscalizar o pagamento dos impostos devidos, observando-se que eventual não incidência do imposto está condicionada à apresentação da prova do reconhecimento administrativo da imunidade, ou isenção, conforme o art. 31, inciso XIX, da Lei Municipal Estadual 96/2008 que foi referido na nota devolutiva (fl. 08).
 
4. Ante o exposto, pelo meu voto nego provimento ao recurso e mantenho a recusa do registro do título.
 
RICARDO ANAFE
 
Corregedor Geral da Justiça e Relator (DJe de 26.01.2021 – SP)