A extinção do terreno de marinha e acrescido é boa notícia para ocupantes e foreiros de aproximadamente 531 mil imóveis enquadrados nesse tipo legal de propriedade
A Câmara dos Deputados aprovou no dia 22 de fevereiro de 2022, em dois turnos, Proposta de Emenda à Constituição (PEC 39/11) que revoga dois dispositivos constitucionais que tratam de terreno de marinha e acrescido (i). A PEC está tramitando no Senado Federal. A matéria mais sensível é a exigência de processo e ato específico de transferência das áreas com ou sem onerosidade.
A extinção do terreno de marinha e acrescido é boa notícia para ocupantes e foreiros de aproximadamente 531 mil imóveis (ii) enquadrados nesse tipo legal de propriedade. Esse número representa apenas o que está cadastrado no sistema da SPU. Não é possível, em princípio, informar as ocupações que não estão cadastradas.
A Emenda Constitucional merece ser louvada como relevante mudança constitucional por quatro motivos brevemente descritos:
I) terreno de marinha é tipo legal de domínio criado no período colonial para proteger o acesso público às praias. Hoje, existe o conceito legal de praiaiii como bem de uso comum que é mais eficiente e ambientalmente correto. Existe sobreposição entre os conceitos legais de “terreno de marinha” e “praia”. A adequação normativa impõe a eliminação do primeiro conceito que não tem mais finalidade quando sobreposto à área da praia.
II) a União não é e deve não atuar como imobiliária. A exploração empresarial (cobrar rendas e foro e vender) pela União das áreas excedentes aos limites da praia que comportem uso exclusivo implica em desvio de finalidade. A União é detentora de 655 mil imóveis em regime dominical e 55 mil imóveis de uso especial. Esses números evidenciam a distorção finalística que o terreno de marinha (531 mil) ocasiona na gestão do patrimônio imobiliário da União;
III) a demarcação de terreno de marinha cria milhares de conflitos e abusos dirigidos contra os proprietários e possuidores lindeiros. A União tem o poder exclusivo de demarcar a linha de preamar média de 1831 (LPM) e a largura de 33 metros cujo limite é denominado “LTM – Limites dos Terrenos de marinha”. Esse procedimento é lento, sujeito à muitas revisões e conflitos, e não termina nunca. Transcorridos 190 anos da criação da Lei (1831) que fixou o padrão técnico da linha, apenas 23% da costa brasileira está demarcada!iv
IV) a dissociação na titularidade sobre as áreas que excedem ao limite da praia é péssima para a Sociedade. O terreno de marinha na parte que comporta uso exclusivo cinde a propriedade em dois títulos e cria, em regra, regime precário de ocupação, de natureza pessoal, em parte de imóveis que são regulados como propriedade (direito real). Isso é péssimo para a Sociedade pela desordem, custos e burocracia que cria.
A Figura 2 apresenta essas razões com maior grau de abertura e decomposição lógica, o que poderá permitir melhor compreensão dos motivos acima explicitados.
O critério empregado na montagem do referido quadro (Figura 2) foi o exame de finalidade, enquanto relação entre sujeito e fins (adequação do sujeito e consistência da finalidade) e das disfunções no uso no que toca à definição dos limites e duplicidade de direitos sobre tais áreas.
A extinção do terreno de marinha revoluciona a ordem fundiária brasileira porque realinha a finalidade no uso dos imóveis nos seguintes aspectos:
a) praias são bens de uso comum do povo e como tal não podem ser bens dominicais da União;
b) áreas excedentes aos limites da praia são potencialmente de uso exclusivo e como tal devem ser objeto de propriedade ou posse, sem a insegurança, custos e burocracia do duplo regime tipicamente senhorial.
A questão principal que emerge da PEC 39/2011 consiste no modelo de transferência dos imóveis situados na faixa de marinha que comportam uso exclusivo (área excedente aos limites legais da praia, se existente).
A PEC 39/11 estabelece que a União terá de “transferir” as áreas de marinha, de forma gratuita ou onerosa, devendo adotar as providências necessárias no prazo de “até dois anos” (Figura 2).
Art. 2º Fica vedada a cobrança de foro e de taxa de ocupação das áreas de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, bem como de laudêmio sobre as transferências de domínio, a partir da data de publicação desta Emenda Constitucional.
Art. 3º A União adotará as providências necessárias para que, no prazo de até 2 (dois) anos, sejam efetivadas as transferências de que trata esta Emenda Constitucional.
Essa transferência “obrigatória” prevista na Emenda Constitucional criará relação jurídica na qual a União deverá vender ou doar imóvel determinado e o titular da ocupação ou aforamento poderá ou não (faculdade) comprar ou aceitar a doação. O modelo lógico dessa relação jurídica está representado na Figura 3.
Pode-se imaginar que os conflitos serão muitos em torno da faculdade de comprar. Se o titular da ocupação não quiser “adquirir” o título de propriedade, quais os efeitos do exercício dessa faculdade?
Duas interpretações serão confrontadas se o titular ocupante ou foreiro não concordar com as condições de venda:
i) a União poderá vender ou doar o imóvel a terceiro, o que significa reconhecer ao titular apenas o direito de preferência e indenização sobre as benfeitorias;
ii) A União não poderá vender ou doar o imóvel a terceiro, o que significa reconhecer ao titular direito de se manter no regime de ocupação ou aforamento.
Esse sistema de “transferência compulsória criará espécie de liquidação “infinita” de “ativos legais”, em procedimentos administrativos caros, trabalhosos e conflituosos. Por exemplo, em edifícios construídos em terrenos de marinha ou acrescido, algo relativamente comum, a União só tem direito à fração ideal do terreno.
A venda poderá ser realizada contra a vontade do ocupante?
O prazo de dois anos provavelmente será interpretado pela União como regulamentação da venda. A conclusão é que o terreno de marinha não se extinguirá, apenas se perpetuará com a alternativa de venda, sem ônus de pagamento de renda e laudêmio.
Nesse cenário, há uma boa notícia para o ocupante ou foreiro:
a cessação do direito de cobrança de foro, taxa de ocupação e laudêmio sobre os terrenos de marinha a partir da vigência da Emenda Constitucional.
Esse modelo de “transferência compulsória” provavelmente foi a solução encontrada pelo Governo Federal para obter caixa e salvar ativos que acredita milionários em troca de rendas e laudêmios que também eram milionários.
Fato é que a melhor alternativa para a Sociedade seria a transferência legal e automática dos terrenos excedentes à linha da praia aos titulares dos imóveis respectivos. Essa análise merece ponderação.
As vantagens e desvantagens dos dois modelos de transferência estão reproduzidas na Tabela 1.
A primeira questão que merece exame consiste na eficácia legal (alcançar o resultado previsto na norma). Qual a modalidade de transferência que assegura maior eficácia para extinguir efetivamente o terreno de marinha? A resposta parece indiscutível: a transferência legal. O efeito jurídico é total e imediato.
A diluição das extinções em procedimentos e atos administrativos certamente limitará a eficácia da ordem e finalidade expressa na Emenda Constitucional e alongará indefinidamente a execução da medida. A diferença consiste em praticar ato único ou instaurar 531 mil procedimentos ou processos.
A segunda questão que comporta exame é a distribuição do ônus entre partes. O terreno de marinha é “domínio” que deriva diretamente da norma legal. A União e seus antecessores (Império e Coroa) nunca adquiriram tais direitos. Nunca houve ônus de aquisição.
Terreno de marinha sempre esteve conexo com a proteção do acesso à praia. O direito foi criado por “lei” sem ônus de aquisição para o titular e de certa forma comporta ser extinto por “lei” sem ônus de aquisição para o novo titular. Essa forma equitativa de examinar a questão situa o terreno de marinha no seu estrito âmbito de finalidade.
A exploração patrimonial é deformação e desvio do instituto.
Nessa perspectiva, a imposição de ônus de aquisição aos atuais titulares constitui inovação do instituto que não guarda relação com a origem legal e finalística do terreno de marinha.
Ultrapassada essa questão de princípio, outro aspecto ponderável é a distribuição do ônus da aquisição. Em terrenos aforados, o percentual de “compra” é limitado a 17% do valor do imóvel. No caso dos terrenos em regime de ocupação, esse valor pode chegar á 100%, o que significa pagar duplo preço por algo que já foi adquirido. Esse ponto impõe ao titular da ocupação ônus excessivo, injusto e incompatível com a função social da propriedade e a tradição, por exemplo, do regime de enfiteuse.
O ônus da União não é a perda do imóvel, porque de fato nunca teve, gozou e explorou. A União perderá a renda e o laudêmio sobre o imóvel. Essa consequência é decorrente do ônus da extinção em favor da coerência finalística do sistema fundiário brasileiro.
De certa forma, o que ocorrerá é a prevalência da função social da propriedade, o que se impõe como ônus para a Sociedade e União.
A terceira questão que comporta exame é a distribuição do ganho. A União e os titulares de direitos de propriedade ganham com a transferência legal.
A União ganha com a redução do patrimônio imobiliário, da complexidade e do custo administrativo da gestão. Essa conta precisa ser realizada. A redução permitirá maior foco no patrimônio imobiliário efetivamente necessário ao exercício das competências constitucionais.
Os titulares de direito de aforamento ou ocupação ganham com a eliminação da duplicidade de regimes e unificação da propriedade e posse. Além da redução substancial dos custos de regularidade fundiária.
A quarta questão está relacionada com os aspectos operacionais. A transferência do terreno de marinha por lei é mais simples e barata. Viabilidade e custo são fatores operacionais relevantes nessa questão.
As conclusões relacionadas com a transferência compulsória do terreno de marinha são as seguintes:
i) Eficácia. O critério de transferência por ato, oneroso ou gratuito, compromete ou reduz substancialmente a eficácia legal da finalidade de extinção do terreno de marinha;
ii) Ônus e bônus para a União. Assegura bônus à União porque transforma domínio adquirido sem ônus, por força de “ato legal” e com finalidade extinta, em ativos com venda “compulsória”;
iii) Ônus e bônus para os ocupantes ou foreiros. Impõe ônus potencial porque obriga o foreiro e o ocupante a realizar desembolso e comprar faixa de marinha sobre a qual não tinha tal expectativa, se a interpretação for dirigida para impor tal condição como mera preferência;
iv) Viabilidade e custo operacional. O regime de transferência adotado é mais complexo e oneroso para ambas as partes interessadas.
Pode-se concluir ainda que a vinculação da transferência de terrenos de marinha à atos específicos da União tem por finalidade assegurar o preço de venda dos imóveis e o controle burocrático sobre o processo de tal forma que o instituto se mantenha por tempo indeterminado.
i Art. 4º Ficam revogados o inciso VII do caput do art. 20 da Constituição Federal e o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. ii Relatório Trimestral de Gestão SPU – 2º Trimestre de 2021.
https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/transparencia/relatorio-de-gestao/relatorio-de-gestao_2o_trimestre_2021.pdf iii Lei 7.661/1988. Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.
§1º. Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo.
§2º. A regulamentação desta lei determinará as características e as modalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar.
§3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema. iv Plano Nacional de Caracterização do Patrimônio da União. 2017. SPU.
https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/arquivos-1/2017/171214_pnc_edicao.pdf
Luiz Walter Coelho Filho é sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados. Graduado em Direito pela UFBA, ano de 1985. Exerce a advocacia nas áreas de Direito Administrativo e Imobiliário
Fonte: Migalhas
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