Incorporou-se em nosso léxico o termo “desjudicialização”, como sinônimo de demanda, ação ou procedimento que outrora somente poderia ser resolvido ou presidido pelo Poder Judiciário, mas que, atualmente, pode ser resolvido de forma alternativa, sem a participação da Justiça.
A Meta nº 9 para o Poder Judiciário, expedida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e aprovada para os anos de 2020 e 2021, por exemplo, estabelece que os Tribunais devem “realizar ações de prevenção e desjudicialização de litígios […]”. De acordo com o glossário da Meta, desjudicializar significa “reverter a judicialização excessiva a partir da prevenção, localizando a origem do problema e encontrando soluções pacíficas por meio de técnicas de conciliação ou mediação com atores do sistema de justiça, sem que cause impacto no acesso à justiça. A palavra desjudicialização tem natureza qualitativa e não quantitativa”.1
O chamado fenômeno da “desjudicialização” é, pois, a solução que visa promover a resolução de conflitos sem que haja a compulsoriedade do ingresso de ação perante a esfera judicial, já tão sobrecarregada.
Esse fenômeno pode ser visto na utilização de métodos alternativos de solução de conflitos (mediação, conciliação e arbitragem) e na transformação de procedimentos exclusivos do Poder Judiciário em procedimentos judiciais facultativos, como sói ocorrer com diversos procedimentos que podem ter seu direito integrado no âmbito das serventias extrajudiciais (tabelionatos e registros públicos).
Ocorre que, em qualquer caso, o que temos não é a extinção do poder do Estado-Juiz de resolver certas demandas, o que, inclusive seria inconstitucional, em face do princípio da inafastabilidade do poder jurisdicional, que estabelece que “nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída do Poder Judiciário” (art. 5°, XXXV, CF).
Em outras palavras, não temos uma “DESjudicialização” propriamente dita, visto que, a despeito de expressão recentemente consagrada pela doutrina e até por atos normativos infralegais, não existe tecnicamente uma retirada, exclusão ou cancelamento do poder de ação do Judiciário, mas sim o compartilhamento da competência/atribuição de processar, presidir e/ou julgar determinadas demandas.
O prefixo des- é apresentado na literatura linguística como um prefixo polissêmico – apresenta tanto um significado de negação quanto de reversão nos itens lexicais a que se adjunge. Ele indica negação, separação ou cessação de algo.
Como o compartilhamento de atribuições/competências sobre uma mesma matéria ou demanda não elimina, abole ou cancela a atuação do Poder Judiciário, nos parece que a multicitada palavra “desjudicialização” (prefixo des- + radical e sufixo judicialização) tem sido utilizada, desavisadamente, de forma incorreta, visto que não constitui tecnicamente uma semântica adequada.
Explico: se uma demanda ou processo é “desjudicializado”, podemos afirmar que negamos ou cessamos (des-) a judicialização (competência ou ato de decisão do Poder Judiciário) em relação a essa demanda ou processo, o que, como vimos, no sistema brasileiro sequer pode ocorrer, por força do princípio da ação ou princípio da inafastabilidade do poder judiciário (art. 5º, XXXV, da CF).
O sentido correto da palavra desjudicialização deve ficar restrito ao fato específico de retirar um processo judicial do Poder Judiciário para que seja decidido ou solucionado na via extrajudicial (fora do Poder Judiciário). É dizer: a palavra “desjudicialização” serve para explicar o ato jurídico stricto sensu, de natureza civil, da saída de um processo do Judiciário para ser realizado em outra via. Exemplo: ação judicial de usucapião que tramitava perante um Juiz de Direito, no fórum, cujo processo foi solicitado o arquivamento, e posteriormente é protocolada no Cartório de Registro de Imóveis, perante o Oficial de Registro.
Isso é desjudicializar… É um ato específico!
Repise-se, a palavra “desjudicialização” não explica o fenômeno da criação de vias alternativas extrajudiciais, as quais não excluem a competência do Poder Judiciário. Logo, não DESjudicializa!
A esse fato jurídico stricto sensu, de natureza administrativa, devemos nominar corretamente de “EXTRAJUDICIALIZAÇÃO”, visto que não exclui nem cancela o fenômeno da “judicialização”, sendo a outra face da mesma moeda.
Quando a legislação assim o permite, o jurisdicionado ou usuário do serviço pode eleger, optar voluntariamente, por sponte própria, se vai se valer da via judicial ou da via extrajudicial, motivo pelo qual – insisto – não estamos diante de um fenômeno de desjudicialização, até mesmo porquanto o princípio da inafastabilidade da jurisdição é garantia constitucional e cláusula pétrea (art. 5º, XXXV c/c art. 60, par. 4°, da CF).
Assim, até como forma de deferência à advocacia extrajudicial e aos serviços notariais e registrais, nos parece mais adequado tratarmos a possibilidade de utilização de procedimentos extrajudiciais como forma alternativa de solução de conflitos ou como opção instrumental à jurisdição voluntária como fenômeno de “extrajudicialização”, abandonando o termo semanticamente incorreto, que utiliza o prefixo -des.
Pare de desjudicializar o que não pode ser desjudicializado e comece a falar corretamente: o nome certo é EXTRAJUDICIALIZAÇÃO!
Amigo migalheiro! Enfim, terminamos a nossa série Nomenclaturas Notariais e Registrais. Obrigado por me acompanhar nos cinco capítulos dessa nossa jornada. Espero que eu tenha proporcionado – ao menos um pouquinho – de descontração e tenha contribuído para vosso conhecimento jurídico, histórico e social sobre os cartórios brasileiros. Avante!
Para acompanhar os cinco capítulos, acesse a coluna aqui.
Fonte: Migalhas
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