O tema da “outorga conjugal”, também chamada de “outorga uxória”, ou mais antigamente de “outorga marital”, embora vastamente debatido e analisado pelos operadores do Direito ao longo dos anos, ainda desperta dúvidas e discussões no meio jurídico.

 

A primeira coisa que vem à mente de qualquer advogado com a mínima familiaridade sobre o instituto da outorga conjugal é a regra esculpida na primeira parte do inciso I, do artigo 1.647, do Código Civil Brasileiro, que veda a qualquer dos cônjuges alienar bem imóvel sem a autorização do outro cônjuge, com exceção ao casamento contraído sob o regime da separação absoluta de bens.

 

Vale lembrar que o inciso I do artigo 1.647 também proíbe que um dos cônjuges grave o bem imóvel com ônus reais (obrigações que limitam a fruição e a disposição da propriedade) sem o consentimento do outro cônjuge.

 

Mas o próprio artigo 1.647 prevê em seus demais incisos outras hipóteses nas quais se exige a autorização conjugal, quais sejam a de pleitear, como autor ou réu, bens imóveis ou direitos reais (inciso II); a de prestar fiança ou aval (inciso III); e a de fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação (inciso IV).

 

A outorga conjugal, ou sua dispensabilidade, ainda aparece no Capítulo II (“Da Capacidade”), Título I (“Do Empresário”), do Livro II (“Do Direito de Empresa”), do Código Civil, mais precisamente no artigo 978, que autoriza o empresário casado, qualquer que seja o regime de bens adotado, a alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa, ou mesmo gravá-los de ônus real, sem que para tanto seja exigida a autorização do seu cônjuge.

 

Amparando tal instituto, o Código de Processo Civil também exige o consentimento do cônjuge ao se propor, ou se contra um deles for ajuizada (litisconsórcio necessário passivo), ação judicial que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando os cônjuges forem casados sob o regime de separação absoluta de bens (CPC, artigo 73, caput, e § 1º e incisos), prevendo, ainda, nos incisos do § 1º, do artigo 73, a necessária citação do cônjuge em ação (i) resultante de fato que diga respeito a ambos os cônjuges ou de ato praticado por eles; (ii) fundada em dívida contraída por um dos cônjuges a bem da família; e (iii) que tenha por objeto o reconhecimento, a constituição ou a extinção de ônus sobre imóvel de um ou de ambos os cônjuges.

 

Mas enfim, qual a razão de ser da outorga uxória?

 

Em linhas gerais e de forma bastante objetiva, a intenção do legislador é proteger o patrimônio comum do casal contra atos (intencionais ou não) de qualquer dos cônjuges que possam dilapidar os bens da família. Visa, em última análise, resguardar a estabilidade financeira da família.

 

Voltando à análise do artigo 1.647, inciso III, do Código Civil, o legislador condicionou a prestação do aval (garantia pessoal) à autorização do outro cônjuge, desde que os cônjuges não tenham adotado o regime da separação absoluta de bens.

 

Daí a pergunta: essa regra é absoluta? A resposta é não, afinal, como toda regra, há exceções a se considerar, como, por exemplo, no caso do aval prestado sem a outorga conjugal em nota promissória (título de crédito nominado), que, amparada por legislação especial, não exige tal autorização (artigo 903, do Código Civil, c/c artigo 14, do Decreto nº 2.044/1908).

 

E no caso dos demais títulos de crédito emitidos e avalizados por terceiros? Essa garantia pessoal (aval) dada em título de crédito exige a autorização do cônjuge do avalista?

 

A questão é controvertida na jurisprudência. No entanto, há diversos julgados recentes de nossos Tribunais, em especial do Superior Tribunal de Justiça (revendo seu próprio posicionamento), considerando desnecessária a outorga conjugal ou uxória em aval dado a título de crédito nominado, típico, disciplinado pela lei especial de regência, excluindo desse entendimento, por conseguinte, os títulos inominados, atípicos, que se subordinam às normas do Código Civil, posto que enquadrados na definição de título de crédito constante do artigo 887, do Código Civil: “o título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei”.

 

Registre-se, por oportuno, que a própria existência de títulos de crédito atípicos é tema controvertido na doutrina. Mas essa questão não merece ser aprofundada aqui.

 

Enfim, a gênese desse entendimento é dizer que manter a outorga conjugal nos títulos de crédito atípicos, de livre criação ou inominados faz sentido na medida em que eles não estão amparados e/ou disciplinados por lei especial ou mesmo pelo Código Civil, e por isso não estão carregados das garantias e seguranças que a própria lei lhes emprestaria. Ao contrário, submetem-se à autonomia da vontade; bem por isso impor-se-ia, portanto, a necessidade de se obter a outorga conjugal precisamente para que se evitem as nefastas consequências de uma garantia danosa e irresponsável assumida pelo cônjuge avalista.

 

É preciso ainda considerar o disposto no artigo 31, do Anexo I, da Lei Uniforme de Genebra (LUG), promulgada por meio do Decreto 57.663/66, que se fez necessária precisamente em razão do grande e rápido crescimento e desenvolvimento do comércio internacional da época. O anexo I da LUG buscou padronizar as convenções e legislações em matéria de letras de câmbio e notas promissórias, dispondo seu artigo 31, previsto no Capítulo IV (“Do Aval”), que “o aval considera-se como resultante da simples assinatura do dador aposta na face anterior da letra” (ou seja, o anverso do título).

 

Verifica-se, portanto, que o aval é um ato incondicional e a eficácia desse ato não poderia ficar subordinada a um evento futuro e incerto como no caso da autorização conjugal, que dificultaria e certamente faria com que o título de crédito perdesse sua principal função que é a sua circulação.

 

Não à toa que por ocasião da 1ª Jornada de Direito Civil, promovida pelo CJF (Conselho da Justiça Federal), visando precisamente a constituição de propostas de alteração do Código Civil Brasileiro, foi aprovado o enunciado nº 132 com a proposta de supressão da expressão “ou aval” constante do inciso III, do artigo 1.647, do Código Civil, sob a seguinte justificativa: “Exigir anuência do cônjuge para a outorga de aval é afrontar a Lei Uniforme de Genebra e descaracterizar o instituto. Ademais, a celeridade indispensável para a circulação dos títulos de crédito é incompatível com essa exigência, pois não se pode esperar que, na celebração de um negócio corriqueiro, lastreado em cambial ou duplicata, seja necessário, para a obtenção de um aval, ir à busca do cônjuge e da certidão de seu casamento, determinadora do respectivo regime de bens”.

 

Esse entendimento ganhou força e passou a prevalecer no STJ, como se vê nos seguintes julgados: REsp 1.526.560-MG, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 16/5/2017; AgInt no REsp 1.473.462-MG, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 29/10/2018; e REsp 1.792.540-PB, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 4/8/2021 — dentre inúmeros outros que consideraram, ao que parece, com acerto, que o artigo 1.647, inciso III, do Código Civil, criou despiciendo requisito de validade para o aval não previsto na LUG, de modo que a exigência da outorga uxória não poderia, de forma irrestrita, ser estendida a todos os títulos de crédito, mas tão somente aos atípicos ou inominados, em razão dos riscos e desamparos próprios desses títulos.

 

Fonte: Conjur

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