Poder Judiciário barra leilões extrajudiciais de bens objeto de alienação fiduciária, uma vez demonstrado risco de alienação por preço vil
Um dos principais avanços decorrentes do Código de Processo Civil de 2015, foi a clareza do tratamento dado ao preço vil, expressamente estabelecido como inferior a 50% do valor de avaliação do bem objeto de alienação, seja particular ou judicial, nos termos do parágrafo único do artigo 891:
“Art. 891. Não será aceito lance que ofereça preço vil.
Parágrafo único. Considera-se vil o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz e constante do edital, e, não tendo sido fixado preço mínimo, considera-se vil o preço inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação.”
Antes da reforma, o Código de Processo Civil de 1973 já vedava a alienação de bens por preço vil, ao mencionar, no artigo 692 que “Não será aceito lance que, em segunda praça ou leilão, ofereça preço vil”. Contudo, referida legislação, deixava de especificar qual seria o percentual mínimo de venda de um bem, em segundo leilão, para que não se configurasse preço vil. Por isso, durante anos, a jurisprudência foi se consolidando no sentido de fixar como vil preço de venda em leilões inferiores a 60 ou 50% do valor de avaliação do bem.
Apesar da clareza do quanto previsto no parágrafo único do artigo 891, na prática, existem situações em que credores, especialmente instituições financeiras, levam bens a leilão, sem que haja uma avaliação prévia e, com isso, há grandes chances do bem ser leiloado por valores MUITO inferiores a 50% do preço de mercado, o que, claramente, configura preço vil.
Essas hipóteses acontecem especialmente em casos de leilões extrajudiciais, realizados após a consolidação da propriedade fiduciária de bens imóveis, nos termos do parágrafo 7º do artigo 26 da lei 9.514/971, que trata do Sistema de Financiamento Imobiliário.
Referida Lei apenas prevê, no artigo 27, §§ 1º e 2º2, que, uma vez consolidada a propriedade fiduciária, o credor fiduciário realizará, no prazo de 30 (trinta) dias, leilão para alienação do bem, sendo que, em primeiro leilão, o valor de alienação deverá ser equivalente a, pelo menos, o “valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI e do parágrafo único do art. 24 desta Lei”.
Caso a venda não seja efetivada pelo denominado “valor do imóvel”, ocorrerá o segundo leilão, ocasião em que “será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais”.
Observa-se, contudo, que o inciso VI do artigo 24 da referida lei3, usado como base para fixação do preço de venda em primeiro leilão, prevê que o contrato representativo da dívida deverá conter o valor do imóvel para efeitos de venda em leilão público, bem como os critérios para revisão desse valor, ao passo que o revogado parágrafo único do artigo 24 (substituído pelo parágrafo 1º)4 prevê que caso o valor convencionado pelas partes em contrato, nos termos do inciso VI, seja inferior ao valor utilizado pelo cartório para cálculo do imposto de transmissão inter vivos, este último deverá ser considerado como valor mínimo para efeitos de venda em primeiro leilão.
Não há dúvidas quanto às graves consequências que tais dispositivos podem trazer aos devedores fiduciantes, pois a Lei nº 9.514/97 acabou trazendo uma situação absurda em que é possível que um imóvel seja alienado, em primeiro leilão, por APENAS seu valor venal, caso o contrato não traga valor superior de avaliação e, em segundo leilão, por valor equivalente apenas à dívida existente frente ao credor fiduciário.
Como se sabe, o imposto de transmissão inter vivos, ou ITBI, que é pago pelo credor para fins de consolidação da propriedade fiduciária, é calculado pelos cartórios competentes com base no valor venal do bem, que é estabelecido pelo Poder Público e, na maioria dos casos, permanece por décadas desatualizado, não representando, nem de longe, o valor real do bem imóvel.
Além disso, em vários casos, a dívida objeto do contrato, que é utilizada como parâmetro para fixação do preço em segundo leilão, nos termos do parágrafo 2º do artigo 27 da lei 9.514/97, é muito inferior ao preço do bem.
Então, conclui-se que, com lastro na lei 9.514/97, os credores fiduciários acabam parecendo “livres” para promoverem alienações em leilões extrajudiciais, sem se preocuparem em levar os bens à venda pelo valor que realmente valem, em primeiro leilão, e, por consequência, acabam deixando aberta a possibilidade de que bens sejam alienados por preço vil, já que muito inferiores ao valor de mercado.
Nesse sentido, vários devedores fiduciantes precisam se socorrer do Poder Judiciário para barrarem leilões extrajudiciais que são iniciados por credores fiduciários, que fixam como preço inicial de venda valores, totalmente desatualizados, mencionados no contrato, sem que tenha sido, de fato, realizada uma avaliação do bem ou, o que é pior, em diversos casos o valor inicial de venda é apenas o valor venal do bem, que foi utilizado pelo credor para fins de cálculo para pagamento do ITBI, quando da consolidação da propriedade fiduciária.
Felizmente, o Poder Judiciário tem atuado para barrar situações como essas, em que, com base na lei 9.514/97 e com base no decreto-lei 70/66, que trata das Cédulas Hipotecárias e que também não traz qualquer exigência de avaliação judicial prévia para leilão de imóveis5, credores levam bens imóveis à leilão sem se preocuparem em fixar valor justo para fins de alienação e, com isso, acabam possibilitando a ocorrência de arrematações de bens por preço vil.
Nesse sentido, é indispensável que o devedor procure um advogado especializado para buscar uma tutela judicial para suspensão desses leilões, evitando-se a concretização da venda e consolidação do prejuízo.
Destaca-se, nesse sentido, entendimento do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que, há alguns anos, com lastro em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, deixa claro que o fato de o decreto-lei 70/66, assim como a lei 9.514/97, não preverem a obrigatoriedade de prévia avaliação do bem, de forma alguma pode levar à conclusão de que os credores podem alienar os bens objeto de garantia fiduciária a qualquer preço, cabendo à parte interessada demonstrar a ocorrência de preço vil.
“SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. AÇÃO ORDINÁRIA. INADIMPLEMENTO DOS MUTUÁRIOS. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. (.) ARREMATAÇÃO A PREÇO VIL: IMPOSSIBILIDADE. (.) (.) Esta Corte, amparada em precedente do Colendo Superior Tribunal de Justiça, possui orientação no sentido de que o Decreto-Lei nº 70/66 não traz qualquer previsão quanto à necessidade de que o leilão de imóvel seja precedido de avaliação prévia. Pela desnecessidade de realização de avaliação prévia do imóvel, contudo, não se chega à conclusão da possibilidade de alienação do bem a qualquer preço, cabendo à parte interessada demonstrar a ocorrência de preço vil. O Colendo Superior Tribunal de Justiça firmou orientação no sentido de que caracteriza preço vil a arrematação de imóvel por valor inferior a 50% de sua avaliação. Avaliado o bem, por oficial de justiça, em R$ 300.000,00, caracteriza a arrematação a preço vil de imóvel pelo valor de R$ 48.846,00, sendo o reconhecimento de sua nulidade medida que se impõe. Sentença mantida. (.)” (TRF 1° Região, AC 0002570-45.2010.4.01.3200/AM, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAM MEGUERIAN, SEXTA TURMA, e-DJF1 p.1252 de 24/09/2015)
Com lastro em precedentes como o acima mencionado, há diversas decisões de primeira instância e de tribunais que, por meio de tutelas provisórias de urgência, determinam a suspensão de leilões extrajudiciais, uma vez que a parte devedora demonstra haver indícios de leilão por preço vil.
Podemos destacar dois casos de relevância que, uma vez demonstrado o risco de alienação por preço vil, foi determinada a suspensão do leilão. Em uma dessas demandas distribuída sob o nº 5010335-08.2019.8.13.0707, em trâmite perante a 2ª Vara Cível de Varginha, nota-se que o imóvel seria leiloado inicialmente por até R$ R$3.453,934,30, ao passo que apresentava valor de mercado no importe de R$10.551.882,90. Este feito inclusive já foi sentenciado, com confirmação da decisão liminar.
Também pode-se destacar a Tutela Cautelar Antecedente nº 5008413-32.2023.8.13.0693, em trâmite perante a 2ª Vara Cível da Comarca de Três Corações, em que verifica-se que o bem poderia ser leiloado por R$ 702.000,00, sendo que a sua avaliação é superior a R$ 5.000.000,00, ou seja, o bem poderia ser arrematado em segundo leilão por apenas 13% de seu valor de mercado.
Observa-se, nos casos acima, que a alienação poderia ter ocorrido por valores que representam muito menos do que 50% do valor do bem, configurando claro preço vil, o que justifica a intervenção do Poder Judiciário para evitar-se o enriquecimento ilícito e a onerosidade excessiva ao devedor.
Em tais situações, o Judiciário geralmente determina a realização de avaliação judicial do bem para que, somente então, esse possa ser levado à leilão pelo credor fiduciário, considerando seu real valor de mercado.
Conclui-se, portanto, que a regra da vedação ao preço vil, prevista pelo Código de Processo Civil, deve ser aplicada a qualquer caso de alienação, ainda que se trate de alienação extrajudicial decorrente de consolidação de propriedade fiduciária, pois permitir que um bem seja alienado a preço vil implica em desvirtuamento de todo o sistema jurídico, bem como em prejuízo excessivo à parte devedora e em enriquecimento ilícito da parte arrematante.
Além disso, percebe-se que tanto a lei 9.514/97, quanto o decreto-lei 70/66, são legislações omissas no que tange à caracterização de preço vil, de forma que as normas do Código de Processo Civil, por ser a “lei geral” e que não se incompatibiliza com as disposições das referidas legislações específicas, deve ser utilizada pelo Poder Judiciário e pela parte prejudicada como fundamento para que se evitem a realização de leilões de bens por preço vil.
Fonte: Migalhas
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