O acesso à informação é um direito fundamental do cidadão, consagrado na Constituição de 1988. No Brasil, porém, esse direito se vê comprometido pela linguagem muitas vezes complexa e inacessível utilizada na redação legislativa. Leis, decretos e outras normas jurídicas, muitas vezes elaboradas em jargões técnicos, dificultam a compreensão por parte da população, criando barreiras à participação social e à efetividade do Estado democrático de Direito.
Nesse contexto, a simplificação da linguagem no Legislativo brasileiro surge como um desafio urgente e necessário, visando tornar as leis mais claras, concisas e compreensíveis para o cidadão comum, permitindo que ele acompanhe o processo legislativo, exerça seus direitos e cobre dos seus representantes o cumprimento das leis.
Boas práticas
Como alento, dentro da esfera pública, é notável o avanço do Executivo com bem-vindos exemplos de como uma redação mais breve e acessível pode tornar o diálogo entre o cidadão e o Estado mais alcançável
O Portal Brasil oferece conteúdos em linguagem simples e acessível, com informações sobre serviços públicos, direitos do cidadão e legislação. O portal conta com recursos como glossários, FAQs e vídeos explicativos, facilitando a busca e compreensão das informações.
Já a Lei nº 14.129/2017 estabelece diretrizes para a comunicação pública clara, concisa e acessível dentro do contexto do Governo Digital. Aplicável a todos os órgãos e entidades da administração pública federal, ela tem como princípio basilar o uso da linguagem simples e direta em seus documentos, portais eletrônicos e serviços de atendimento ao cidadão, como forma de se aumentar a eficiência pública.
Por sua vez, a Lei nº 13.926/2019, conhecida como Lei da Simplificação da Linguagem, estabelece diretrizes para a comunicação pública clara, concisa e acessível. A lei aplica-se a todos os órgãos e entidades da administração pública federal, obrigando-os a utilizar linguagem simples e direta em seus documentos, portais eletrônicos e serviços de atendimento ao cidadão.
O Laboratório do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos LA-BORA! gov, criado em 2019 por servidoras públicas, é um que visa impulsionar a inovação e aprimorar a experiência dos servidores. Por meio de um ambiente colaborativo e experimental, o laboratório empodera os servidores como cocriadores de soluções, promovendo o bem-estar, o engajamento e a produtividade no serviço público, tudo isso com foco na geração de valor público e na melhor experiência para o cidadão.
Exemplos internacionais
Ainda dentro das boas práticas trazidas sobre simplificação da linguagem quando da elaboração legislativa, algumas inspirações internacionais se destacam pela robustez e impacto. Diversos países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) já implementaram iniciativas exitosas de simplificação da linguagem jurídica. No Canadá, por exemplo, o Canada.ca Content Style Guide, constantemente atualizado, estabelece princípios e diretrizes para a redação de leis em linguagem acessível, incluindo a utilização de vocabulário simples, frases curtas e estrutura lógica clara.
A Nova Zelândia, por sua vez, possui o Plain Language Act de 2023, que também busca tornar as leis mais compreensíveis, utilizando linguagem cotidiana e evitando termos técnicos desnecessários, alcançando também a pessoa do agente público, além do conteúdo por si só.
Para sair um pouco da tradição anglófona e francófona, já expoentes consolidados no movimento de plain language, e apresentar uma contribuição mais próxima da realidade brasileira em termos linguísticos, Portugal, com o Decreto-Lei n° 135/1999 estabelece medidas para a simplificação da linguagem administrativa, incluindo a utilização de linguagem clara, concisa e direta, a organização lógica dos textos e a eliminação de jargões técnicos, além do Decreto-Lei 97/2019 que aplicou os mesmos princípios dentro dos tribunais portugueses, favorecendo uma comunicação, em todos os seus atos, mais acessível às partes envolvidas.
Possíveis repercussões
O que percebemos com essas práticas são benefícios mensuráveis e replicáveis no contexto brasileiro da simplificação, considerando as devidas adaptações necessárias à realidade do país. Dentre estes benefícios, podemos citar:
- Maior acesso à informação: os cidadãos teriam mais facilidade para compreender as leis, seus direitos e deveres, o que lhes permitiria participar mais ativamente da vida pública e cobrar dos seus representantes o cumprimento das leis.
- Maior transparência: a linguagem clara e acessível tornaria o processo legislativo mais transparente, permitindo que a população acompanhe as discussões e decisões dos parlamentares de forma mais dialógica e equilibrada.
- Maior efetividade das leis: normas mais compreensíveis teriam maior chance de serem cumpridas, uma vez que os atores da sociedade brasileira teriam mais clareza e segurança os sobre seus direitos e deveres.
- Redução de litígios: a linguagem clara e precisa nas leis poderia reduzir o ativismo judicial, considerando o potencial para diminuição de dúvidas sobre a interpretação normativa.
- Melhoria da imagem e aumento da confiança institucional: a simplificação da linguagem contribuiria para melhorar a imagem do Poder Legislativo junto à população, tornando-o mais próximo e acessível aos cidadãos, que ainda têm como referência máxima de governabilidade o Executivo.
Dentre os percursos a serem trilhados dentro do Brasil, ainda assim é importante ressaltar que a liberdade de expressão, atributo inerente à linguagem e à aplicação prática da lei, encontra-se em momento de ascensão, como trazido pelo Global Expression Report de 2024. Vindo de um contexto de liberdade mais restrita para aberto, o Brasil, junto com Fiji, Níger, Sri Lanka e Tailândia, evoluíram no quesito, o que afirma a importância, dentre vários aspectos considerados, do papel da legislação em um cenário mundial agravado por fake news e desinformação [1].
Obstáculos
Todavia, ainda que os benefícios da simplificação da linguagem repercutam em contextos de maior acessibilidade informativa, e cada vez mais tenhamos sólidos movimentos em prol dessa maior transparência, notadamente no Executivo e no Judiciário, existem alguns desafios a serem superados quanto à simplificação por parte do Legislativo
O primeiro deles, é a resistência à mudança, pois a cultura jurídico-política tradicional é marcada pelo uso de linguagem complexa, cerimonial. Essa forma de comunicação emula a arquitetura parlamentar do plenário com os parlamentares posicionados de frente à Mesa, o que ressalta a sua supremacia. O projeto Parliament já documentou os modelos de plenário no mundo e as consequências sobre a forma da política via interação entre os parlamentares.
Outro obstáculo é a falta de expertise: muitos profissionais do direito não possuem o conhecimento e as habilidades necessárias para redigir textos em linguagem clara e acessível. Essa constatação, evidencia a necessidade de treinamento e o investimento na formação de profissionais especializados em elaboração legislativa clara e simples que considere o contexto de aplicação da lei. A atualização da padronização de normas ( manuais de redação) exige o estabelecimento de normas e diretrizes para a redação de leis em linguagem clara e acessível, com o fim de garantir a uniformidade e a qualidade dos textos.
A outra ação é no sentido de modificar os currículos das Faculdades de Direito com a inclusão de disciplinas sobre elaboração legislativa que considerem o seu aspecto informacional, comunicacional nos diversos cenários existentes na Federação brasileira.
Urgente e necessário
A simplificação da linguagem no Poder Legislativo brasileiro, ainda que tenhamos o marco da Lei Complementar 95/1998, apresenta-se como um desafio urgente e necessário para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e participativa. Inspirando-se nas experiências de sucesso de outros países e superando, de forma colaborativa os obstáculos existentes, o Brasil pode dar um passo importante para tornar as leis mais acessíveis à população, fortalecendo o Estado Democrático de Direito. Uma política de boa legislação, um verdadeiro “Pro leg”, “Quali Leg”, asseguraria uma posição mais permanente para o Brasil, no reconhecimento tanto nacional quanto internacionalmente, no cenário de legislações, transparentes, acessíveis e inteligíveis.
E é claro, fortaleceria o espaço republicano, representado pelos Legislativos de toda a federação brasileira.
Fonte: Conjur
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