O cenário no Rio Grande do Sul é desolador. São 417 municípios atingidos e cerca de 1,5 milhão de pessoas afetadas. Ainda não há dados definitivos sobre o número de empresas que perderam tudo ou quase tudo, mas já se fala em cerca de 50 mil empresas e 900 mil empregados afetados direta ou indiretamente pelas enchentes.

 

O Rio Grande do Sul é um estado de alta relevância na formação do PIB nacional (contribuindo com quase 7%), com cerca de 3 milhões de empregos formais e que conta com empresas muito expressivas nos setores metal-mecânico, calçados, alimentos, bebidas, etc. Só a indústria do tabaco gaúcha representa 68,5% da produção nacional. Há regiões de grande densidade industrial barbaramente atingidas pelas enchentes.

 

Não sabemos ainda de que forma essa calamidade impactará os contratos de trabalho dos empregados das empresas atingidas.

 

E diante do estado de calamidade pública, indaga-se: quais as medidas jurídicas aplicáveis?

 

Um dos instrumentos para enfrentamento da crise [1]  é a Lei nº 14.437/22, que, assim como os artigos 501 e 502 da CLT, sobre os quais trataremos mais adiante, é um dos nortes a serem buscados.

 

A lei em comento autoriza o Poder Executivo federal a dispor sobre a adoção, por empregados e empregadores, de medidas trabalhistas alternativas e sobre o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, com o escopo de auxiliar na preservação das empresas atingidas pelas enchentes e, por conseguinte, dos empregos.

 

São beneficiários dessa lei todos os trabalhadores formais afetados pelas enchentes, alcançando também os trabalhadores temporários, rurais e domésticos, no que couber.

 

A lei em questão tem trechos aplicáveis de imediato e outros que dependem de regulamentação por ato do Ministério do Trabalho e Emprego.

 

A regulamentação, ou parte dela, foi adotada pelo MTE nos dias 15/05/24 (portaria nº 729) e 27/05/24 (portaria nº 838).

 

A primeira citada (729) autoriza a suspensão do recolhimento do FGTS de abril a junho/24 para 46 municípios gaúchos.

 

A segunda (838) se propõe a dispor sobre as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas para enfrentamento do estado de calamidade pública.

 

Essa última reconhece de imediato que os eventos climáticos no Rio Grande do Sul representam hipótese de força maior.

 

E quais medidas a Portaria nº 838 autoriza?

 

Lamentavelmente, a portaria não atendeu às expectativas da comunidade jurídica, de parte das entidades sindicais e dos empresários gaúchos, uma vez que apenas autorizou a suspensão de algumas exigências administrativas em matéria de segurança e saúde no trabalho. [2]

 

Pior, a portaria não autorizou a utilização das medidas de preservação do emprego vigentes na pandemia e tampouco na Lei nº 14.437/22, como teletrabalho, antecipação de férias e feriados, banco de horas e diferimento dos recolhimentos do FGTS, tampouco da instituição do benefício emergencial de manutenção do emprego e da renda, que vigorou na pandemia. [3]

 

Há um entendimento de que a portaria não adentrou essas questões para estimular a negociação sindical nesse momento, o que é louvável, porque essa, de fato, é uma excelente solução para o enfrentamento da crise.

 

Porém, enquanto a negociação coletiva não acontece, reputamos que a portaria deveria ter sido mais ampla, pois todos estão aflitos por decidir quais medidas tomar, com um mínimo de segurança jurídica.

 

Até o momento em que escrevemos esse artigo, nenhuma outra Portaria do MTE havia sido publicada, abrangendo os mecanismos de preservação de emprego e a instituição do abono emergencial.

 

Contudo, atendendo aos clamores de expressiva parte da população gaúcha, o presidente da República assinou, em 07/06/2024, a MP nº 1.230, que prevê o pagamento de duas parcelas de salário mínimo aos trabalhadores formais de cidades atingidas pelas enchentes.

 

No que atenta à força maior, relevante registrar que não basta que a Portaria nº 838/2024 tenha assim declarado, uma vez que aquela não tem força cogente para pressupor esse estado em relação a todo e qualquer empregador.

 

Nesse diapasão, é importante que se analise o que é força maior, notadamente porque a mera caracterização desta condição não basta para que se reconheça que todas as empresas poderão se valer dessa excludente no RS.

 

O artigo 501, caput, da CLT, define a força maior como sendo “(…) todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador e para realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente”.

 

São elementos da força maior, assim:

 

  1. a) fato inevitável — isto é, aquele decorrente das forças da natureza, como no presente caso (enchentes);
  2. b) não ter concorrido para tal fato o empregador, direta ou indiretamente (ausência de dolo ou culpa).

 

O parágrafo 2º acrescenta mais um pressuposto importante: o evento deve afetar ou ser suscetível de afetar “substancialmente” a situação econômica e financeira da empresa.

 

Situação financeira inabalada

 

Chamamos a atenção aqui para uma questão relevante: não se exige na força maior de que trata o artigo 501 a extinção do estabelecimento — essa é a força maior do artigo 502.

 

Assim, em que pese a caracterização da força maior pela portaria do MTE, se ela não abalou a situação econômico-financeira da empresa, não pode por esta ser invocada.

 

Já o artigo 502 da CLT trata especificamente da força maior como motivo de rescisão do contrato de trabalho e estabelece, já no seu caput, um requisito essencial para viabilizar sua aplicação: a extinção da empresa ou do estabelecimento em que trabalhe o empregado.

 

Neste caso, caberá ao empregado, se estável, o direito à indenização nos termos dos artigos 477 e 478 da CLT, conforme artigo 501, I, da CLT. Aqui se está falando da estabilidade decenal, anterior ao FGTS, alcançando também os empregados detentores de garantia de emprego provisória, tais como o acidentado, gestante, etc.

 

Diferente, porém, é a situação do trabalhador detentor de estabilidade decorrente da Cipa, já que, nesse caso, com a extinção da empresa, a garantia de emprego perde até a razão de existir, porquanto atrelada à empresa.

 

O fechamento de apenas um setor da empresa, outrossim, não importa em força maior para os fins do artigo 502 da CLT, já que o trabalhador poderá ser realocado em outros setores.

 

Não tendo direito à estabilidade, faz jus o trabalhador, conforme artigo 502, II, da CLT, ao pagamento pela metade das parcelas rescisórias devidas.

 

Mas muita atenção: não poderão alegar força maior aquelas empresas que já estavam em situação financeira precária, atrasando salários, com dívidas bancárias vultosas, etc.

 

Da mesma forma, o encerramento das atividades da empresa, em razão da decretação da recuperação judicial ou falência, não pode ser considerado motivo justo ou de força maior para a rescisão contratual nos moldes do artigo 502 da CLT, pois o fechamento ou a quebra é um risco inerente à atividade comercial.

 

Isto posto, passamos à primeira pergunta que se faz no momento: uma determinada empresa teve seu estabelecimento totalmente inundado. Quais mecanismos de preservação do emprego podem ser utilizados imediatamente, sem necessidade de aguardar portaria do MTE ou negociação coletiva?

 

Em 1º lugar, se possível, dada a atividade da empresa, o teletrabalho (para todos os empregados, e inclusive para estagiários e aprendizes).

 

O acordo para instituição do teletrabalho deve ser feito através de acordo individual, enquanto não expedida a Portaria do MTE, uma vez que a CLT não dispensa essa formalidade. Entretanto, em se tratando de uma situação emergencial, pode ser formalizado por WhatsApp ou e-mail.

 

Também pode ser adotado de imediato o banco de horas — com base no artigo 59, §5º, da CLT, mediante acordo individual, que prevê a compensação de horas em, no máximo, seis meses.

 

Insta ressaltar que a suspensão da exigibilidade dos recolhimentos do FGTS de abril a junho/24, autorizada pela portaria MTE nº 729, de 15/05/24, se limitou a 46 municípios do RS. Os demais municípios, não contemplados pela portaria, só podem lançar mão da postergação se houver previsão em nova portaria.

 

Os outros mecanismos de proteção do emprego assentados na Lei nº 14.437/22, a saber, antecipação de férias individuais ou coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados e banco de horas com compensação em período superior a seis meses, não podem ser adotados de imediato pelas empresas, devendo ser objeto de negociação coletiva, se não sobrevier portaria assim prevendo.

 

Outra medida de preservação de emprego é o lay off ou suspensão do contrato de trabalho para participação do empregado em programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador e que encontra previsão no artigo 476-A da CLT, mediante previsão em norma coletiva.

 

Cite-se que algumas empresas do RS já formalizaram o lay off por meio de acordo coletivo de trabalho. [4]

 

Além dos instrumentos de proteção do emprego citados, outro bastante relevante é o que prevê a redução salarial, o qual, contudo, exige acordo ou convenção coletiva (inciso VI do artigo 7º da CRFB de 1988), sob pena de nulidade.

 

Contudo, essa deve ser a última alternativa a ser buscada quando se trata de preservar empregos, à vista da garantia prevista no artigo 611-A, §3º, da CLT, porque o empregador não tem como supor se vai poder manter o emprego no período de duração da redução do salário e durante a garantia de emprego referida.

 

E por falar em negociação coletiva, não temos dúvida de que essa é a melhor solução até que não seja expedida uma portaria mais abrangente pelo MTe.

 

Sindicatos imprescindíveis

A parceria sindical para a gestão da crise é absolutamente imprescindível, urgente e já está ocorrendo no RS [5], albergada que se está pelo Tema 1046 de repercussão geral do STF.

 

A negociação sindical pode apontar caminhos, inclusive, para questões instigantes que já estão chegando ao Judiciário Trabalhista, como é o caso dos “atestados de albergado”. Afinal, quais os efeitos jurídicos do atestado fornecido pela Defesa Civil aos cidadãos que saíram de suas casas e estão morando temporariamente em abrigos? E como fica a situação dos empregados que residem em bairros que inundaram, sem condições de chegar até a empresa, por falta de transporte público? Pode o empregado ser despedido por justa causa em razão das faltas?

 

Nesse caso, não se pode falar em abandono de emprego ou desídia, porque o empregado não está imbuído do animus abandonandi. Ele não está se ausentando do trabalho de forma intencional, senão porque está impedido de fazê-lo, por razões alheias à sua vontade, não podendo, pois, ser dispensado de forma motivada.

 

No que atenta aos efeitos do sobredito atestado, temos que a legislação trabalhista nada prevê acerca do abono de faltas em caso de calamidade pública.

 

Então, num primeiro momento, pensamos que nesse caso, as faltas são justificadas, mas não abonadas, isto é, o empregador não tem a obrigação de pagar salários.

 

Por isso, a urgência de que o governo federal regulamente a concessão do benefício emergencial.

 

Outra questão relevante: os atestados de ausência para as pessoas albergadas estão sendo fornecidos sem registro de prazo de validade. E qual é esse tempo? A lei nada fala. E, na prática, não há como saber quanto tempo o trabalhador precisará permanecer afastado, pois os cidadãos foram afetados de formas distintas pela enchente.

 

Alguns juristas têm falado em prazo máximo de 15 dias, usando, de forma analógica, a regra previdenciária que impõe que atestados médicos de até 15 dias sejam pagos pela empresa e, a partir daí, pelo INSS. Mas não estamos falando de afastamento por motivo de saúde, razão pela qual não se pode onerar nem a empresa, nem o INSS, com o custeio dos dias sem trabalho.

 

Por isso, mais uma vez repisamos que a solução imediata seria a previsão ministerial de pagamento do abono emergencial.

 

No que concerne ao Poder Judiciário, é certo que sua atuação será muito exigida.

 

Já começam a chegar pleitos de repactuação de acordos homologados judicialmente e de parcelamento de débitos (artigo 916 do CPC).

 

Outra questão que exigirá profunda reflexão diz respeito à aptidão para a prova documental. Como fica a situação daquelas empresas que perderam tudo, inclusive documentos? Como distinguir as empresas que perderam os documentos na enchente, daquelas que já não tinham documentos? Talvez uma saída seja analisar o comportamento pretérito dessa empresa em outros processos, se tinha documentos, os apresentava com a defesa, etc.

 

Por fim, uma questão que muito tem nos angustiado, notadamente após termos ouvido uma advertência bastante desesperançosa a respeito da possibilidade da ocorrência de um boom de falências frustradas por conta das enchentes, na brilhante exposição do desembargador Homero Batista, em evento promovido pela Escola Judicial do TRT-4. [6]

 

E aqui entramos num cenário sombrio e até distópico.

 

Como cediço, o instituto da falência frustrada, que voltou a integrar o ordenamento jurídico em 2020, introduzido que foi à Lei de Falências e recuperação judicial (nº 11.101/2005), por força da Lei nº 14.112/20, tem cabimento quando a soma das dívidas de uma empresa é muito maior que a soma de todos os seus ativos (artigo 114-A da referida lei).

 

Temos que estar atentos a essa possibilidade, uma vez que, se os juízes das Varas de Recuperação Judicial e Falências do Estado passarem a considerar que as empresas que perderam tudo com as enchentes estão habilitadas a requerer a falência frustrada, teremos uma onda de falências frustradas e, na esteira, diversas empresas desobrigadas de suas obrigações trabalhistas.

 

Talvez aqui nós tenhamos que nos valer do dever de cooperação ou de colaboração ínsito a todos os atores do processo, aqui incluídos os magistrados, previsto no artigo 6º do CPC, para que, juntos, juízes de direito e juízes do trabalho, pensem coletivamente em como preservar as empresas, de forma a possibilitar a continuidade do exercício de sua função social.

 

[1] Estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 36, de 07/05/2024 e pela Portaria nº 1.587, de 13/05/2024, do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional.

 

[2] “Art. 2º: Para enfrentamento dos efeitos econômicos decorrentes do estado de calamidade pública e para preservação do emprego e da renda, poderão ser adotadas pelos empregadores, as seguintes medidas:

 

Suspensão das seguintes exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho:

 

  1. a) da revisão da avaliação de riscos integrantes do Programa de Gerenciamento de Riscos – PGR, que tenha vencimento durante o estado de calamidade pública, por noventa dias, da data do encerramento do programa;
  2. b) da obrigatoriedade de realização dos exames médicos periódicos, clínicos e complementares, por noventa dias, exceto se o médico coordenador de programa de controle médico e saúde ocupacional – PCMSO considerar que a prorrogação representa risco para a saúde do empregado;
  3. c) da obrigatoriedade de realização do exame médico demissional caso o exame médico mais recente tenha sido realizado há menos de noventa dias;
  4. d) da elaboração do Relatório Analítico do PCMSO por noventa dias;
  5. e) da obrigatoriedade de realização de treinamentos periódicos dos atuais empregados, previstos em normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho, por noventa dias, podendo a parte teórica ser realizada imediatamente pela modalidade de ensino à distância; e
  6. f) da realização da eleição dos integrantes das comissões internas de prevenção de acidentes e assédio – CIPA, por noventa dias, sendo permitido que os mandatos dos atuais integrantes sejam prorrogados igualmente por noventa dias.”

 

[3] O “BEm” não se confunde, nem é incompatível com o “auxílio reconstrução”, de R$5.100,00, que o Governo Federal já pagou para mais de 45 mil famílias que tiveram a residência atingida por inundação ou deslizamento de terra no RS (MP nº 1.219, de 15/05/24).

 

[4] A Rede Rissul celebrou ACT com essa finalidade com o Sindicato dos empregados no Comércio de Canoas, um dos municípios mais atingidos pelas enchentes. Por meio desse ACT, ajustaram a suspensão do contrato de trabalho de 20/05 a 31/10/2024. Nesse caso, foi pactuado que o empregado receberá bolsa diretamente do empregador caso o Governo Federal frustre o pagamento da bolsa qualificação. O número de parcelas varia conforme a duração do curso e tem equivalência ao seguro desemprego. Também ficou ajustado que a empresa pagará a diferença entre a remuneração do empregado e a bolsa qualificação, em caráter indenizatório, ou seja, sem incidência de contribuição previdenciária. Além disso, ficou pactuada garantia de emprego pelo período de duração do programa de qualificação e por período idêntico após o retorno ao trabalho.

 

[5] Em Porto Alegre, o Sindilojas (Sindicato dos Lojistas de Porto Alegre) e o Sindec (Sindicato dos Empregados no Comércio de Porto Alegre) firmaram acordo coletivo que autoriza a adoção de duas medidas de preservação do emprego:  a redução salarial e a suspensão de contratos de trabalho, mediante o pagamento da bolsa-qualificação do governo federal.

 

Estabeleceram que as medidas poderão ser adotadas de forma setorial, departamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho.

 

No caso da redução do salário, as entidades estabeleceram regra com base no artigo 503 da CLT – aquele que a gente já referiu que está revogado, mas nada impede que seja adotado como parâmetro, em percentual de até 25%, com duração de no máximo 60 dias, respeitando-se o salário-mínimo nacional.

 

Quanto ao programa de qualificação, pactuaram que durante o período de reconhecimento do estado de calamidade pública, os empregadores poderão formalmente acordar a suspensão temporária do contrato de trabalho de seus empregados, com base no artigo 476-A da CLT, de forma setorial, departamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho por um período de 1 a 5 meses.

 

[6] “Medidas Trabalhistas de enfrentamento em tempo de calamidade pública”. Disponível no canal da Escola Judicial do TRT da 4ª Região no YouTube.

 

Fonte: Conjur

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