No mercado financeiro, há um número crescente de investidores/aplicadores pessoas físicas. Existem hoje mais de 5 milhões de pessoas físicas investindo na bolsa de valores. Em 2018 apenas 700.000 pessoas físicas investiam na bolsa de valores. Em busca de maiores ganhos esses investidores apostam em um mercado de renda variável, onde não é garantido o capital investido e muito menos as rendas subjetivamente esperadas por ele. Este mercado envolve diversos instrumentos financeiros complexos, como derivativos, opções, swaps, onde o risco de perdas está sempre presente; ao contrário do mercado conservador de renda fixa, onde, embora os ganhos esperados sejam menores; tanto capital como a remuneração são assegurados; e contam também, diferentemente do mercado de renda variável de produtos financeiros complexos, com a cobertura do fundo garantidor de natureza privada para cada indivíduo e instituição financeira até R$250.000,00 em caso de eventual liquidação da instituição financeira.
Assim, o investidor pode contratar produtos financeiros complexos, entendidos como aqueles em que há alto risco de perdas, sem garantia de qualquer rendimento ou retorno do capital aplicado, que associam sua performance, em um único instrumento contratual, a dois ou mais ativos de natureza financeira. Considerados estes riscos, a lei portuguesa chega inclusive a obrigar que tais produtos sejam identificados expressamente junto aos investidores como produtos financeiros complexos.1
Como se tratam de produtos financeiros complexos emerge naturalmente o problema de como informar adequadamente este investidor, independentemente de ser o mesmo qualificado ou não como consumidor para que possa tomar uma decisão esclarecida quanto a contratá-los ou não. O importante, nessa seara, é a informação quanto aos riscos de perda financeira inerentes a produtos dessa natureza, pois como a doutrina tenho defendido defendido exaustivamente, o que é tutelado nesses casos é a liberdade de escolha.2 Dai que para o exercício dessa liberdade a informação adequada, inclusive, na forma de recomendações e advertências passa a ser fundamental.
A questão que se coloca aqui é saber se existe para esses investidores pessoas físicas que ‘consomem’ esses produtos financeiros complexos a proteção do CDC e responsabilidade civil das instituições financeiras ante a perdas econômicas nesses investimentos.
A jurisprudência do STJ tem caminhado na direção de não socorrer esse investidor no caso de perdas de produtos financeiros complexos, sustentando que ‘no caso de aplicação em fundo de investimentos de alto risco, por investidores qualificados, experientes em aplicações financeiras, não há que se reconhecer direito a serem imunes a rendimentos significativamente menores em período de perdas gerais no setor, à invocação do dever de informar . sob a alegação de contradição entre os prospectos (…) e os regulamentos do fundo de investimentos’.3 Em outro julgado, o STJ entendeu que “o consumidor buscou aplicar recursos em fundo agressivo, objetivando ganhos muito maiores do que os de investimentos conservadores, sendo razoável entender-se que conhecia plenamente os altos riscos envolvidos em tais negócios especulativos, mormente quando se sabe que o perfil médio do consumidor brasileiro é o de aplicação em caderneta de poupança, de menor rentabilidade e maior segurança”.4
Suitability e direito à informação dos investidores. Não obstante, esses investidores não merecerem a tutela do CDC, o mercado financeiro, sobretudo, a partir da crise econômica mundial de 2008 tem evoluído em direção a maior disponibilidade de informações em prol da proteção dos interesses dos investidores. Essa evolução tem como marca a busca constante por maior transparência nas operações entre as instituições financeiras, corretoras de valores mobiliários e os investidores em geral, independente das suas qualificações, diferenciando-os do investidor qualificado e profissional.
Atualmente a CVM, através da instrução normativa 30/21, é clara ao determinar uma avaliação pormenorizada do perfil do cliente, inclusive, se este “dispõe de conhecimento necessário para compreender os riscos da operação”. Tais determinações, se violadas, podem resultar claramente na responsabilização civil do agente/corretora em caso de perdas financeiras ocasionadas ao cliente em face da desídia no cumprimento do dever de transparência. Nessas situações de descumprimento do dever de transparência, a própria Bolsa de Valores tem “condenado” esses agentes que acabam por induzir em erro os investidores, que tomam decisões equivocadas, tendo como consequência graves perdas. Foi o que ocorreu no julgamento de uma representação em face de um banco e de uma DTVM – Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários que, não obstante tenham informado, que o investidor poderia sair do investimento a qualquer tempo, enquanto no instrumento de subscrição, esse resgaste a qualquer tempo era vedado; o que importou em graves perdas financeiras para os investidores.5
A instrução normativa 30/21 da CVM veda expressamente que seja recomendado qualquer produto financeiro ao cliente que seja inadequado ao seu perfil. Neste sentido passa a ser fundamental que o perfil de investidor, que também é chamado pelas instituições financeiras de Suitability, seja identificado a partir de um questionário, que capta informações sobre grau de tolerância ao risco do cliente. Neste sentido, são 3 os perfis de investidor:
Conservador, aquele que não quer correr risco de perder o dinheiro aplicado, prefere menor rentabilidade a ganhos maiores;
Moderado, não abre mão da segurança; aplica maior parte dos seus recursos em aplicações de baixo risco; e coloca uma pequena parte em investimentos de risco em busca de maior rentabilidade;
Agressivo, está sempre em busca de maior rentabilidade, por isso aceita correr maiores riscos.
O art. 2º da resolução CVM 30/21 determina claramente que as Instituições financeiras devem se abster de recomendar investimentos em desacordo com o perfil do cliente.6 O art. 3º da mesma resolução impõe expressamente que os agentes do mercado mobiliário verifiquem:
O produto, serviço ou operação é adequado aos objetivos de investimento do cliente;
A situação financeira do cliente é compatível com o produto, serviço ou operação;
O cliente possui conhecimento necessário para compreender os riscos relacionados ao produto, serviço ou operação.7
Existe, nos termos desta instrução normativa, não apenas um dever simples de informação, mas um dever de aconselhamento8 ao cliente com emissão de um juízo de valor, no sentido de protegê-lo contra assumir riscos totalmente em desacordo com o seu perfil. Verificada uma perda do cliente com um produto financeiro complexo, a primeira questão que deverá ser observada é se o investimento oferecido ao cliente está em sintonia com o seu perfil, com o questionário que e próprio respondeu. Se se trata de um cliente de perfil conservador e suas perdas ocorreram em um produto de grandes riscos, fica evidente o descumprimento das regras de suitability e a instituição financeira pode sim ser responsabilizada a recompor as perdas.
A questão do perfil do cliente torna-se fundamental para os chamados investidores do varejo, nos termos da instrução normativa 30 da CVM; já que para os investidores qualificados (aqueles com investimentos acima de R$1 milhão) e profissional (com investimentos acima de R$10 milhões) as instituições financeiras são dispensadas de colher o perfil dos mesmos ante a presunção que tem são experientes e tem informações suficientes dos riscos das operações.
Com relação aos investidores qualificado pessoa física ou jurídica, no próprio texto das minutas contratuais, que tem por objeto produtos financeiros complexos, já é deixado claro cláusulas que atestam que “o cliente é experiente e tem pleno conhecimento do risco da operação”; ou que, “tem conhecimento do grau alto de complexidade da operação contratada”; ou ainda “que está familiarizada com as operações que são objeto deste contrato e possuem conhecimento amplo e específico sobre as regras vigentes no mercado.”
A própria Anbima reconhece essa maior assimetria de informações e, portanto, vulnerabilidade, em relação ao investidor de varejo e recomenda maior cautela dos agentes financeiros na operação com os mesmos: “é notável que o grau de assimetria informacional incorrido pelos participantes de mercado não é uniforme. Por exemplo, investidores institucionais, que operam regularmente nos mercados e cuja capacidade técnica é avaliada por autoridades de regulação e supervisão, tem, via de regra, maior capacidade de avaliar eventuais assimetrias e conflitos de interesses que investidores individuais de varejo.” 9
Na perspectiva dos tribunais, pode-se dizer, a partir dos próprios julgados do STJ, tem se feito uma separação entre investidores do varejo, e investidores qualificados e profissionais. Quando se trata destes últimos, tem-se entendido que “são experientes em aplicações”; ou que é “razoável entender se conhece plenamente os altos riscos envolvidos nos negócios especulativos.”
Os casos de perdas que podem envolver a aplicação do CDC e responsabilização civil das instituições financeiras estão mais relacionados ao investidor de varejo. Neste particular, o STJ tem levado muito em consideração o cumprimento do dever de informação da instituição financeira: “A gestão fraudulenta e a omissão do dever de informação por parte da recorrente, considerando como fator determinante para a causação do prejuízo o descumprimento do dever da correta informação na hipótese em exame, ultrapassa a razoabilidade prevista no art. 14, §1º, inciso II, do CDC, a justificar a excludente do nexo de causalidade, ainda que se trate de aplicação de risco.” 10
Em outro caso, o STJ responsabilizou civilmente a instituição financeira a indenizar todos as perdas sofridas pelo consumidor, que, confiando no banco, com o qual mantinha longa relação, aplicou recursos em fundo de renda variável, ao invés de renda fixa, conforme seu perfil conservador sugeria: “A manutenção da relação bancária entre a data da aplicação e a manifestação da insurgência do correntista não supre seu déficit informacional sobre os riscos da operação financeira realizada a sua revelia. Ainda que indignado com a utilização indevida do seu patrimônio, o consumidor (mal informado) poderia confiar, durante anos, na expertise dos prepostos responsáveis pela administração de seus recursos, crendo que, assim como ocorria com o CDB, não teria nada a perder ou, até mesmo, que só teria a ganhar. A aparente resignação do correntista com o investimento financeiro realizado a sua revelia não pode, assim, ser interpretada como ciência em relação aos riscos da operação. Tal informação ostenta relevância fundamental, cuja incumbência cabia ao banco, que, no caso concreto, não demonstrou ter agido com a devida.” 11
Quanto a gestão dos recursos do investidor por parte das instituições financeiras, o entendimento jurisprudencial aponta no sentido que a obrigação do gestor é de meio e não de resultado. Entretanto, em caso de manifesta e comprovada má gestão dos recursos do investidor, por parte da instituição financeira, esta pode ser obrigada a indenizar as perdas experimentadas por aquele: “O administrador de fundo de investimento não se compromete a entregar ao investidor uma rentabilidade contratada, mas de apenas de empregar os melhores esforços – portanto, uma obrigação de meio – no sentido de obter os melhores ganhos possíveis frente a outras possibilidades de investimento existentes no mercado. No entanto, o STJ afirma que a má-gestão, consubstanciada pelas arriscadas e temerárias operações com o capital do investidor, ou a existência de fraudes torna o administrador responsável por eventuais prejuízos.” 12
Já em relação13-14 assim o são exatamente por aplicarem maiores somas no mercado; e, sobretudo, por deterem mais conhecimento para avaliarem por si próprios os riscos envolvidos. Mesmo assim não basta ser investidor de varejo para se qualificar como consumidor; se ele investe abaixo de R$1 milhão, mas o faz com habitualidade ele “perde” a condição de “consumidor” exatamente por buscar de forma continua lucros nessas operações, motivo pelo qual presume que ele conheça razoavelmente os riscos de perdas envolvidos nessas operações. Diferente é o investidor de varejo eventual, não habitual; que não tem o costume de realizar esses investimentos e o faz muito raramente. Neste caso, poderá ser qualificado perfeitamente como o consumidor destinatário final do art. 2º do CDC, exatamente por conta da falta da habitualidade na busca desses ganhos financeiros. Neste caso, esse investidor eventual é consumidor e deve merecer, portanto, maior atenção tanto do gerente do banco quanto das corretor de valores mobiliários, sobretudo, no tocante ao direito à informação, nos termos do art. 6º, III, do CDC que determina deixá-lo bem informado em linguagem clara e adequada sobre os riscos envolvidos na operação.
Conclusão: A partir da crise econômica de 2008 e posteriores regulamentações da CVM, sobretudo, a consolidada através da instrução normativa 30/21, pode-se dizer que as instituições financeiras devem agir sempre com máxima cautela em relação aos investidores do varejo, ainda na hipótese que estes possam não ser qualificados como consumidores, nos termos do art. 2º da lei 8078/90. A regra de ouro da suitability vem exatamente nesta direção, determinando-se não só um maior grau de transparência e informações nas operações envolvendo o investidor do varejo, como também com um dever claro de aconselhamento a não contratar operações que estejam em desacordo com o perfil do investidor. Ao aceitar a contratação de produtos financeiros complexos, sem se atentar para o perfil desse investidor, a instituição financeira pode sim responder por todas as perdas financeiras do cliente. Entretanto, se o investidor pessoa física opera com valores acima de R$1 milhão, poderá ser tratado como investidor qualificado ou profissional, onde se presume o seu conhecimento e experiência para contratar produtos financeiros complexos, isentando-se, nestes casos, a instituição financeira de responsabilização por perdas em face da natureza das operações, que são sempre de alto risco.
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1 Portugal, Decreto-Lei 211/A/2008 de 3 de novembro, 1 – Os instrumentos financeiros que, embora assumindo a forma jurídica de um instrumento financeiro já existente, têm características que não são directamente identificáveis com as desse instrumento, em virtude de terem associados outros instrumentos de cuja evolução depende, total ou parcialmente, a sua rendibilidade, têm que ser identificados na informação prestada aos aforradores e investidores e nas mensagens publicitárias como produtos financeiros complexos
2 KHOURI, Paulo R. R A. O Direito do Consumidor na Sociedade da Informação, Almedina, Coimbra, 2022, p. 132.
3 STJ, REsp 1.214.318/RJ, rel. min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 12/6/2012, DJe de 18/9/2012.
4 REsp 799.241/RJ , relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 14/8/2012, DJe de 26/2/2013.
5 “os cotistas teriam sido induzidos a acreditar que seria possível o resgate das cotas dos fundos [mas] a informação sobre a impossibilidade de resgate teria sido devidamente introduzida no instrumento de subscrição de cotas assinado por eles. Sobre esse ponto, o boletim de subscrição de fato vedava o resgate de cotas, mas é incontroverso nos autos e admitido pela própria defesa dos [controladores da DTVM e do Banco], o uso da palavra “resgate” em seu sentido comum no processo de distribuição das cotas, tendo como objetivo informar aos potenciais subscritores a possibilidade de “sair do investimento” por meio do mecanismo de liquidez oferecido. Este procedimento, de induzir o investidor a acreditar que teria garantido o direito de saída de um investimento em um fundo fechado a qualquer momento, é justamente o que configura o ardil utilizado pelos acusados para induzir o investidor ao erro e não o fato das cotas terem sido ou não resgatadas” CVM, Processo Administrativo Sancionador n. RJ 2014/12081, voto do Relator em 18.06.2019.
6 Art. 2º As pessoas habilitadas a atuar como integrantes do sistema de distribuição e os consultores de valores mobiliários não podem recomendar produtos, realizar operações ou prestar serviços sem que verifiquem sua adequação ao perfil do cliente.
7 Artigo 3º. Resolução CVM 30/2021
8 Neste sentido, KHOURI, Paulo R. R A. O Direito do Consumidor na Sociedade da Informação, Almedina, Coimbra, 2022, p. 124
9 Disponível aqui.
10 STJ, AgRg no Ag n. 1.140.811/RJ, rel. min. Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 23/2/2016, DJe de 26/2/2016.
11 STJ, REsp n. 1.326.592/GO, rel. min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por maioria, julgado em 7/5/2019, DJe de 6/8/2019.
12 REsp n. 1.724.722/RJ
13 São os agentes autônomos de investimentos, administradores de carteira, analistas e consultores de valores imobiliários, aprovados e certificados pela CVM.
14 Bancos, corretoras, seguradora, Fundos de pensão, Fundos patrimoniais, Fundos de Investimentos, de acordo com a classificação da CVM, são investidores institucionais/ profissionais.
Fonte: Migalhas
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