A relação entre humanos e animais de estimação evoluiu, com “pets” agora vistos como membros da família. O Brasil, com a terceira maior população pet do mundo, tem leis de proteção e crescente preocupação das empresas com a reputação. O direito animal avançou com a Declaração da UNESCO, a CF/88 e a lei dos crimes ambientais/98

 

Nas últimas décadas, a relação entre o ser humano e os animais de estimação passou por transformações significativas. Antigamente vistos como guardiões de imóveis ou caçadores de pragas, os animais de estimação passaram a ser tratados como membros da família. O estreitamento do vínculo entre “pets” e seus tutores é reflexo de mudanças culturais e sociais, como o reconhecimento de que o convívio com animais de estimação traz benefícios emocionais e psicológicos, bem como de que os “pets” são dotados de sentimentos.

 

O Brasil tem a terceira maior população pet do mundo (mais de 160 milhões de animais de estimação no país)1 e a crescente humanização dos animais de estimação tem influenciado políticas públicas de proteção e cuidado animal, como a proibição de anúncio de venda e compra de animais nos grupos de redes sociais e a edição de leis municipais proibindo a soltura de fogos de artifício que produzam ruídos.

 

No aspecto comercial, é inegável a atual preocupação das empresas de não terem seus nomes vinculados a casos de maus tratos aos animais já que quando isso ocorre, há uma grande comoção pública para que haja a devida penalização, além da inegável perda reputacional.

 

Ao longo dos anos, houve uma grande evolução do direito animal, destacando-se a Declaração Universal dos Direitos dos Animais da UNESCO, de 1978; o decreto 24.645/34, que elenca extensivo rol do que se considera maus-tratos; a CF/88, que dispõe no art. 225, §1º, inciso VII, como incumbência do Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas na forma de lei as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica, que provoquem a extinção de espécie ou submetam os animais à crueldade. Também em 1998 foi promulgada a lei Federal 9.605, lei dos crimes ambientais, que prevê sanções penais e administrativas contra as violações ao meio ambiente.

 

Entretanto, a legislação em vigor ainda classifica os animais como “bens móveis semoventes” (art. 82 do Código Civil). Assim, de acordo com o Código Civil, os pets podem ser vendidos, doados e emprestados como se fossem qualquer outra coisa. O animal de estimação não possui direito próprio, suas garantias estão vinculadas aos direitos de seus donos, cujas discussões estão mais próximas de institutos como a posse e a propriedade.

 

Contudo, como mencionado, este enquadramento jurídico já não se harmoniza com a sociedade atual, que identifica os animais, especialmente, os domésticos, como seres dignos de afeto.

 

Esta relação de afetividade entre os humanos e os animais de estimação ficou evidenciada nas enchentes do Rio Grande do Sul, em que várias pessoas se recusaram a serem resgatadas sem seus animais de estimação, havendo uma significativa mobilização para que estes também fossem salvos pelas autoridades e mantidos em abrigos.

 

Nota-se que cada vez mais aqueles que tem animais de estimação se intitulam “pais de pet”. Esses “filhos”, por vezes, são motivos de disputa quando o relacionamento acaba, e o ex-casal decide recorrer ao Poder Judiciário que, sem legislação para se amparar, acaba aplicando, por analogia, o Direito de Família e seus institutos de guarda, visitação e alimentos para as questões relacionadas aos animais de estimação.

 

O fato é que, elaborado há mais de 20 anos, o Código Civil não mais reflete à sociedade atual sob vários aspectos e por isso fora criada uma comissão de juristas para elaboração de anteprojeto de Lei para revisão e atualização da lei 10.406/02, chamado de “anteprojeto de Reforma ao Código Civil”, ou, como amplamente noticiado, “Novo Código Civil”.

 

Em maio deste ano, a comissão de juristas, coordenada pelo ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, apresentou ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o anteprojeto do novo Código Civil, que, dentre outras inovações, propõe uma alteração no tratamento jurídico conferido aos animais, visando refletir essa nova e inevitável configuração social.

 

O que muda de fato?

 

De início, o anteprojeto faz menção à família multiespécie, que é aquela formada pelo núcleo familiar humano em convivência compartilhada com seus animais de estimação, ao dispor que “a afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa.” (art. 19).

 

Também fora acrescentada a seção VI no capítulo I do livro II, que trata sobre os bens considerados em si mesmos. Propõe-se a criação do art. 91-A, para tratar especificamente sobre os animais, dispondo expressamente que esses são seres vivos “sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial.” Isto é, sendo os animais seres capazes de ter sensações e emoções, devem ter proteção jurídica própria, que será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais (§1º, art. 91-A).

 

O anteprojeto dispõe também que até que sobrevenha esta lei especial, serão aplicáveis, subsidiariamente, as disposições relativas aos bens, mas desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade (§2º, art. 91-A).

 

A principal inovação trazida pelo anteprojeto refere-se à possibilidade de compartilhamento de guarda, visitas e despesas de manutenção dos animais de estimação entre os ex-cônjuges, prevista expressamente no dispositivo destinado aos deveres do casamento e união estável (art. 1.566, §3º).

 

A diferença consiste no fato de que, em relação aos filhos, os ex-cônjuges e exconviventes possuem a obrigação de assumir os deveres de cuidado, sustento e educação dos filhos, dividindo os deveres familiares de forma compartilhada (art. 1.566, IV). Porém, quanto aos seus animais de estimação, eles possuem o direito de compartilhar a companhia e arcar com as despesas destinadas à manutenção dos animais de estimação, enquanto a eles pertencentes.

 

Neste sentido, o anteprojeto põe fim ao dilema que o Poder Judiciário vem enfrentando há anos: agora, não mais será preciso aplicar de forma analógica as disposições do direito de família aos conflitos envolvendo os animais de estimação dos ex-cônjuges ou ex-conviventes, uma vez que o instituto da guarda e regime de convivência aos “pets” já estará legalizado expressamente pelo Código Civil, preenchendo a lacuna anteriormente existente.

 

Porém, em que pese o anteprojeto represente um avanço quanto ao tratamento dado aos animais de estimação, ainda há lacunas a serem preenchidas, já que não está especificado a quais despesas destinadas à manutenção dos “pets”, o dispositivo legal supracitado se refere.

 

O ex-cônjuge/convivente que permanecer mais tempo com o animal de estimação poderia exigir uma pensão alimentícia do outro? Ou cada um que arcará com as despesas do animal enquanto ele estiver consigo? Se mantido o texto do anteprojeto, caberá ao Poder Judiciário decidir sobre essa questão.

 

Por fim, o primeiro texto do anteprojeto previa que a relação afetiva entre humanos e animais conferia legitimidade ao humano para a tutela correspondente ao direito do animal de estimação, possibilitando que animais fossem indenizados por violências e maus-tratos, a fim de reparar danos sofridos. A criação desse dispositivo fundamentouse no “caso Spike e Rambo”. Trata-se da primeira decisão que reconheceu os animais como sujeitos de direito no país.

 

Há pouco mais de 3 anos, os cães Spike e Rambo foram deixados sozinhos por 29 dias em um imóvel e, alguns vizinhos, preocupados com a situação, chamaram a ONG Sou Amigo e a Polícia Militar para resgatá-los e levá-los a uma clínica veterinária, na qual fora constatado que os cachorros apresentavam lesões e feridas decorrentes do abandono.

 

Diante disso, a ONG ingressou no Poder Judiciário em nome dos cachorros, solicitando que estes fossem reconhecidos como parte autora do processo. Requereram, também, o ressarcimento dos valores gastos, além da condenação dos réus ao pagamento de indenização por danos morais e uma pensão mensal aos animais até que eles passassem para a guarda definitiva da organização, o que foi deferido pelo TJ/PR em 2021, cuja decisão se tornou um precedente para futuras ações que argumentem em prol de animais como autores das ações e sujeitos de direito.

 

Porém, o artigo que conferiria a possibilidade de que os animais fossem indenizados por violências e maus-tratos, a fim de reparar danos sofridos, foi suprimido do Relatório Final do anteprojeto de Reforma.

 

Destarte, ainda há muito a ser feito no âmbito do direito animal. Porém, embora ainda não reflita todas as demandas que a sociedade necessita no tocante à proteção dos animais, as propostas trazidas pelo anteprojeto de Reforma ao Código Civil representam um grande avanço, reconhecendo a nova configuração social das famílias multiespécies.

 

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1 Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet). Informações gerais do setor. Abinpet. Disponível em: https://abinpet.org.br/informacoes-gerais-do-setor/. Acesso em: 01 jul. 2024.

 

Fonte: Migalhas

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