Tribunais consideram abusivas cláusulas de fidelidade em planos de saúde empresariais, proibindo multas rescisórias e aviso prévio, conforme o CDC e decisões judiciais

 

Nos causa certa estranheza quando nos deparamos com cláusulas abusivas contidas em contratos empresariais, especialmente quando se referem a aplicação de multa rescisória “por descumprimento” de fidelidade.

 

Atualmente, muitas empresas investem em benefícios para melhorar a qualidade de vida de seus colaboradores, o que inclui a contratação de bons planos de saúde. Geralmente – repita-se, geralmente – tudo vai bem até que algum evento imprevisto ocorra. Seja por um descredenciamento de hospital da rede, que compromete a qualidade dos serviços, seja pelo aumento de custos devido à alta demanda, gerando a necessidade de reavaliar as condições contratuais. Independentemente do motivo, quando essas empresas precisam rescindir seus contratos, inicia-se a corrida pela cobrança e aplicação de multas rescisórias.

 

Como é sabido, aplica-se perfeitamente o Código de Defesa do Consumidor nos contratos de planos de saúde1, ainda que a relação contratual seja firmada entre duas empresas, isto é, entre pessoas jurídicas.

 

Isto acontece, porque a operadora do plano de saúde está na qualidade de fornecedora de serviço, conforme preceitua o art. 3º do CDC, e do outro lado, ainda que figurativamente, a empresa contratante é considerada a destinatária final deste serviço, conforme art. 2º do mesmo diploma2. Esse enquadramento também ocorrerá, por exemplo, quando empresas contratam planos de telefonia, internet e outros serviços para execução de suas atividades.

 

Com isso, espera-se que sejam observados os princípios e proteções das relações consumeristas quando versarmos sobre a abusividade da permanência mínima em um plano de saúde, popularmente conhecida como “cláusula de fidelidade” 3.

 

A abusividade desta cláusula recai justamente na violação do direito de escolha do consumidor – art. 6º II e IV do CDC – de buscar um plano ofertado no mercado mais vantajoso, uma vez que impedido pela multa penal exigida em contrato4.  Sem contar que, em grande parte dos casos, o percentual fixado para cobrança da multa quando o contrato é desfeito no “período de fidelidade” também é abusivo.

 

Por fim, a situação piora quando as operadoras dos planos de saúde, após o pedido de rescisão, tentam camuflar a cobrança de mais duas mensalidades, “exigindo” que as empresas consumidoras cumpram com um aviso prévio de 60 (sessenta dias), fundamentado no parágrafo único do artigo 17 da Resolução Normativa nº 195/2009 da ANS, vejamos:

 

Art. 17 […] Parágrafo único. Os contratos de planos privados de assistência à saúde coletivos por adesão ou empresarial somente poderão ser rescindidos imotivadamente após a vigência do período de doze meses e mediante prévia notificação da outra parte com antecedência mínima de sessenta dias”.

 

Contudo, este parágrafo único foi declarado nulo pela decisão proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0136265-83.2013.4.02.5101, ajuizada pela Autarquia de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado do Rio de Janeiro Procon/RJ contra a Agência Nacional de Saúde Suplementar ANS:

 

Trecho da decisão:

 

[…] o que se tem em mente é que a previsão contida no artigo 17, parágrafo único da RN/ANS nº 195/2009 se presta, tão somente, a atender a interesse das operadoras de Planos de Saúde, já que o consumidor individual ou a empresa instituidora, em geral, firmam o contrato de seguro de saúde sob a expectativa de que este venha a prevalecer por longos anos. A medida acaba por impor ao consumidor um dever de fidelidade irrestrita, restringindo, irregularmente, o direito de livre escolha, estatuído no CDC […]

 

Desde então, não se pode mais obrigar o cumprimento do aviso prévio ou até mesmo o pagamento de multa penal por rescisão antes do prazo de fidelidade. À vista disso, adotou-se a RN 455/2020, atual RN 557/2022 5.

 

Ademais, importante dizer que a decisão retro proferida nos autos na Ação Civil Pública, tem efeito para todos com execução em todo o território nacional, por força do disposto no artigo 103, I do CDC.

 

Nesta lógica, os Tribunais têm seguido este caminho, decidindo pela nulidade e abusividade das cláusulas contratuais que preveem prazo mínimo de fidelidade e aviso prévio:

 

(TJSP; Apelação Cível 1168029-84.2023.8.26.0100; Data do Julgamento: 26/08/2024);

 

(TJSP; Agravo de Instrumento 2262315-12.2024.8.26.0000; Data do Julgamento: 05/09/2024)

 

(TJSP; Apelação Cível 1172887-61.2023.8.26.0100; Data do Julgamento: 22/08/2024)

 

Portanto, é de considerar que, as obrigações inseridas nestas cláusulas abusivas (além de nulas), trazem em seu bojo certo desequilíbrio contratual, ferindo o princípio da boa-fé nas relações contratuais e dos direitos básicos da empresa na qualidade de consumidora, desrespeitando as disposições dos artigos 6, II e IV e 51, IV do CDC.

 

Com isso, espera-se que as empresas não sejam ludibriadas ou compelidas a arcar com despesas indevidas, justificadas por posicionamentos contrários das operadoras de planos de saúde.

 

Sugere-se que em eventual desinteresse na permanência no plano de saúde, a empresa solicite imediatamente a rescisão de seu contrato, preferencialmente por meio de carta de cancelamento, pagando apenas o período proporcional utilizado. Do contrário, em caso de recusa e/ou aplicação indevida de multa pelo “descumprimento de cláusula de fidelidade”, recomenda-se procurar o devido amparo judicial.

 

______

 

1 Súmula 469 do Superior Tribunal de Justiça: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano dessaúde

 

2 Lei 8078/90 – Código de Defesa do Consumidor

 

3 https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/beneficiario/nota-da-ans-sobre-cancelamento-e-rescisao-de-contratos

 

4 Trecho da tutela de urgência concedida no processo sob nº 1008600-58.2024.8.26.0161, que tramita na 4º Vara Cível do Foro e Comarca de Diadema – SP

 

5https://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=textoLei&format=raw&id=NDMyOQ==

 

Fonte: Migalhas

Deixe um comentário