Na Era da Informação, as pessoas têm acesso a uma infinidade de dados disponíveis na Internet, os quais estão dispersos na rede mundial de computadores, dificultando o acesso, a localização e a análise sistematizada dos mesmos.

 

No mundo corporativo, as pessoas jurídicas geram uma infinidade de dados que são processados, armazenados em servidores, podendo ser consultados pelos sócios, empregados e colaboradores. Porém, esses dados “brutos” pouco revelam sobre o negócio, tendências de consumo, perfil de clientes, aderência do mercado a produtos e a serviços, a não ser que sejam tratados1.

 

Os dados, portanto, ganham valor estratégico e negocial quando são tratados, quando se transformam em informação, o que se dá a partir da avaliação, da análise, inclusive estatística, da sistematização e da parametrização dos dados.

 

Os players do setor da tecnologia, cientes dessa dificuldade inerente à nova Era e dessa oportunidade mercadológica na exploração comercial desses dados, colocaram-se em franca concorrência no mercado tecnológico, porque o desenvolvimento de um software consiste na sistematização de instruções em sequência e na definição de dados, sendo este o ato de programar, etapa essencial da criação de um software.2

 

Os agentes do setor da tecnologia iniciaram uma corrida em direção ao desenvolvimento de sistemas de BI3, APPS4, IA’s5 e plataformas de streaming, entre outras soluções tecnológicas que têm os dados por insumo, seja como conteúdo, seja como direcionamento de navegação e do consumo do usuário, seja como estrutura informacional da concepção da ferramenta.

 

Diante de tal cenário, é correto afirmar que muitas das soluções tecnológicas na atualidade surgem e são concebidas a partir da organização, da parametrização e da análise estatística, sistematizada e contextualizada desses dados, revelando que eles possuem valor econômico.

 

A valorização e a exploração econômica de um bem, material ou imaterial, gera interesse por parte da Ciência Jurídica, e o Direito tende a discipliná-lo e a tutelá-lo juridicamente, seja para acomodar os interesses envolvidos e sanear os conflitos, seja para garantir maior segurança e previsibilidade jurídicas aos negócios empresariais.

 

Assim se deu na época do surgimento do software como bem explorado economicamente de modo independente do hardware, ou seja, da máquina que o processava.   O Direito se posicionou e reconheceu que o software deveria ser entendido como uma obra autoral, equiparando-o à obra literária6.

 

O mercado do software ganhou em complexidade, surgindo ao longo do tempo diversos tipos, como já tive a oportunidade de detalhar em artigo publicado na Revista Científica Virtual da Escola Superior de Advocacia de São Paulo/SP, Edição 35 de 20207.  Para o presente artigo, vale destacar entre esses tipos, os aplicativos8, os APPS9, os videogames, entre outros, de modo que qualquer que seja o tipo de programa de computador, deve ser ele tratado, reconhecido e disciplinado como obra autoral.

 

Não são apenas os softwares protegidos por Direito de Autor; o banco de dados também é reconhecido pela lei como obra autoral.10 Desse modo, os dados reunidos e organizados a partir de uma determinada lógica ou critério, passam a integrar um banco de dados.

 

Tanto o banco de dados, como os programas de computador, sendo obras autorais, garantem ao desenvolvedor o direito de propriedade e, com ele o direito de uso, de exploração, de adaptação, de modificação, entre outros direitos previstos na lei.

 

Os dados, a partir da perspectiva do banco de dados, deixam de ser apenas um insumo, para ser parte integrante de uma obra autoral, explorável economicamente, independentemente de um sistema de computador ou de outra criação intelectual. Os dados, assim considerados, ganham relevância e uma tutela diversa daquela consignada na Lei Geral de Proteção de Dados.

 

Individualmente considerados, os dados continuarão a pertencer a seus titulares, sujeitos à Lei Geral de Proteção de Dados.  Porém, os dados organizados e parametrizados poderão compor um banco de dados, passível de ser detido como propriedade autoral por uma outra pessoa, geralmente uma pessoa jurídica – o controlador, por exemplo11 -, e por ela explorado comercialmente.   Evidente que dessa relação poderão surgir conflitos entre os titulares dos dados e o proprietário do banco de dados.

 

Outro fato da atualidade no tocante à indústria do software repousa no interesse dos empresários em perseguir uma proteção autônoma aos seus elementos (internos e externos).  Sob essa perspectiva, revela-se importante conhecê-los, a fim de perquirir qual proteção legal é possível12. Listo-os a seguir:

 

  • MICROCÓDIGOS – sequências de instruções internas acessíveis por microprocessador;
  • PROGRAMA-OBJETO – consiste no registro ou na transcrição do código binário em fita, disco, disquete, placa de memória do programa-fonte;
  • LINGUAGEM DE PROGRAMAÇÃO – conjunto de regras gramaticais e de símbolos.  Envolve as regras da linguagem que traduzem o código binário;
  • PASTA DE ESPECIFICAÇÕES E INFORMAÇÕES – dados e informações pesquisadas, desenvolvidas e utilizadas para a programação, para a idealização do programa;
  • ORGANOGRAMAS, AS ANÁLISES ORGÂNICAS E FUNCIONAIS – projetos ou roteiros, incluindo “projetos funcionais” que são resultados de cálculos científicos e organogramas, que podem consistir em uma compilação de dados com análise orgânica;
  • ALGORITMOS E REGRAS – regras gerais e princípios matemáticos a partir dos quais se desenvolvem os programas e sistemas de criptografias;
  • ESTRUTURA E ARQUITETURA DOS PROGRAMAS – entenda-se, aqui, o encadeamento ou a organização dos subprogramas;
  • PROGRAMA-FONTE – lista de instruções que compõe o programa;
  • FUNCIONALIDADES, ASPECTO TELEVISUAL, INTERFACE DO USUÁRIO E CLONES DE PROGRAMAS – são desenhos ou modelos, expressão televisual, ícones, interface do usuário menus e comandos para interação do usuário com o sistema;
  • DOCUMENTOS E MANUAIS DO USUÁRIO – textos explicativos de funcionamento do programa para leitura pelo usuário, utilizados para auxiliar a compreensão e o correto uso;
  • BASE DE DADOS – conjunto de dados organizados consistente em arquivos eletrônicos de dados e de informações determinados e organizados para serem usados juntamente e pelo programa.

 

A base de dados – ou banco de dados – é reconhecidamente um elemento do software, o qual é protegido de forma autônoma pelo Direito de Autor, como acima indicado.  Ou seja, além de o software, em si e em sua integralidade, ser uma obra autoral, o banco de dados que o integrar poderá ser protegido individualmente como obra autoral autônoma.

 

Essa reflexão é importante porque, a depender de como o software é concebido e desenvolvido, pode se reservar e garantir a propriedade do banco de dados a uma pessoa (idealizador), e o programa de computador à outra (desenvolvedor), por exemplo.

 

Sarah A. Hinchliffe reconhece que o banco de dados pode ser envolvido na operação de um APP13, e, assim sendo, os direitos relativos a esse banco de dados devem ser observados e respeitados.

 

Nesse diapasão se o banco de dados for prévio ao APP ou outro tipo de software, o desenvolvedor deverá obter autorização prévia do titular do banco de dados para uso no desenvolvimento (licença prévia para uso do banco de dados). Porém, segundo a teoria do fair use14, se forem utilizados apenas poucos elementos, ou se o uso for necessário para garantir a integração das tecnologias, então o licenciamento poderá ser dispensado.

 

Também é possível que um banco de dados público informe um APP, que poderá ser reconhecido como obra autoral e, consequentemente, como propriedade privada de um agente econômico em particular15.

 

Por fim, outro elemento que merece reflexão é a pasta de informações.

 

Os programas de computador, na atualidade, deixaram de ser horizontais (gerais que atendem a várias profissões, a vários setores da economia) para serem verticais (com aplicações específicas e próprias de um determinado setor), fato que inverte o valor da pasta de informações, que reúne dados e informações próprias daquele que encomenda o desenvolvimento de um software, justamente para que atenda às suas necessidades específicas.  O desenvolvedor não detém, via de regra, conhecimento prévio desses dados e informações que pertencem ao encomendante, e não são de domínio público.

 

Dito isso, a software house deverá obter autorização para usar economicamente a pasta das especificações e das informações no desenvolvimento de aplicativos e sistemas de computador que quiser comercializar por conta própria, cuja propriedade, via de regra, reclama para si, não obstante serem do encomendante os dados e as informações utilizadas na concepção do programa.  Em contrapartida, é possível ao encomendante reclamar para si a titularidade do programa, justamente porque o elemento central e chave é a pasta de informações, de titularidade do encomendante, informações essas relevantes ao negócio.

 

Também é possível que a pasta de informações seja protegida pelo dever de confidencialidade, a ser estabelecido contratualmente, e, ainda, pelo Direito Concorrencial, se o uso sem autorização do seu titular configurar ato de concorrência desleal16.

 

As reflexões apostas resumidamente neste artigo apenas revelam que a Economia 4.0 está alicerçada nos dados e no uso que deles se faz, de modo que eles ganham cada vez mais relevância para o mundo dos negócios e, consequentemente, para o Direito, merecendo mais estudos a partir dos diversos interesses que em torno deles gravitam, das variadas aplicações econômicas e das implicações jurídicas que os envolvem.

 

__________

 

1 A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) define tratamento de dados como:

 

Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:

 

(…)

 

X – tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração;

 

2 GOMES, Orlando. A Proteção dos Programas de Computador. 1-16. GOMES, Orlando et al. A proteção Jurídica do “Software”. Rio de Janeiro: ed. Forense, 1985. p. 2 e 4

 

3 Sistemas de computador que realizam a análise dos dados direcionada para a estratégia do negócio, gerando uma inteligência negocial.

 

4 Sistemas computacionais desenvolvidos para serem usados em dispositivos eletrônicos móveis, como smartphones e tablets.

 

5 Inteligência Artificial.

 

6 Lei 9.609/1998 (Lei dos Programas de Computador)

 

Art. 2º O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei.

 

7 DOMINGUES, Alessandra de Azevedo Domingues. O Mercado dos APPS e as Possíveis Proteções Legais. Revista Científica Virtual da Escola Superior de Advocacia OAB/SP, Direito, Inovação e Tecnologia Desafios da Economia 4.0, DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (coord.), n. 35, verão de 2020, p.10-32. disponível em: Revista Científica da Escola Superior de Advocacia: Direito, Inovação e Tecnologia – Ed. 35 by ESA OAB SP – Issuu.

 

8 Aplicativos são programas de computador operados pelo usuário; resolvem um problema determinado, sendo específicos quando tratam de uma necessidade do usuário, ou padrão quando concebidos para tratar a necessidade de uma categoria de usuários.

 

9 APPS são programas destinados aos equipamentos móveis, como tablets e smartphones, que funcionam da mesma maneira como um navegador da web por meio de comunicação via Internet. Tradução livre do trecho: “are software programs that run on devices including mobile, tablets and smartphones , and work in the same manner as a web browser by communication over the internet. (…)” in HINCHLIFFE, Sarah A. So, You’ve Created an App? disponível aqui, acesso em 09 de abril de 2016, p. 2.

 

10 A Lei de Direitos Autorais elenca, no artigo 7º., diversas criações do homem como obras autorais, entre as quais estão os programas de computador e o banco de dados (ou base de dados), conforme abaixo:

 

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:

 

XII – os programas de computador;

 

XIII – as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.

 

11 LGPD – Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:

 

VI – controlador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais;

 

12 Vide BERTRAND, André. A Proteção Jurídica dos Programas de Computador: notas de SOUZA, Marco Antonio Costa, ROCHA, Manuel Lopes. tradução DRESCH, Vanise Pereira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, WACHOWICZ, Marcos. Propriedade Intelectual do Software & Revolução da Tecnologia da Informação. 1. ed. 3a. tir.  Curitiba: Juruá, 2006 e LOBO, Carlos Augusto da Silveira. A Proteção Jurídica dos Programas de Computador. 95-113. in GOMES, Orlando et al. A proteção Jurídica do “Software”. Rio de Janeiro: ed. Forense, 1985.

 

13 HINCHLIFFE, Sarah A. So, You’ve Created an App? disponível aqui, acesso em 09 de abril de 2016, p.2.

 

14 O Fair Use é instituto constante da lei de Copyright americana, que representa uma relativização da propriedade do autor, em benefício do acesso ao conhecimento, através do qual, portanto, se busca conciliar os interesses privados e o público comum e coletivo.

 

Para aplicar o Fair Use há que se levar em consideração os seguintes fatores:

 

ü  O propósito e o caráter do uso, em especial sem natureza comercial e para fins educativos não lucrativos.

 

ü  A natureza da obra (ficção ou não ficção, inédita ou publicada).

 

ü  A quantidade e a substancialidade da porção usada em relação ao conjunto da obra (no Brasil entendimento Judiciário é que trecho seria até 10%, internacionalmente entendimento é que seria de até 25%) – quem usa está ajudando a divulgar a obra original (uso social).

 

ü  O efeito do uso sobre o mercado potencial da obra protegida ou sobre o seu valor.

 

A lei brasileira não agasalhou explicitamente essa figura, mas há entendimento na doutrina de que haveria a previsão do fair use no artigo 46 que reza:

 

Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:

 

II – a reprodução, em um só exemplar de PEQUENOS TRECHOS, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;

 

VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de PEQUENOS TRECHOS de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

 

Sobre o critério “pequenos trechos”, leia-se as seguintes ponderações:

 

“(…) A questão é saber o que se entende por ‘pequeno trecho’, uma vez que a lei não traz essa explicação, cabendo interpretá-la com base no bom senso. Obviamente, a reprodução de cinquenta por cento de uma obra não caracterizaria um ‘pequeno trecho’. Apesar de a quantificação não ser a melhor forma de interpretar a extensão desse conceito, (…)

 

Dessa forma, é importante saber o tamanho da obra reproduzida para que se possa verificar se a reprodução pode ou não ser caracterizada como ‘pequeno trecho’, de forma a ser utilizada sem necessidade de autorização. (…)” CARBONI, Guilherme. Fonte Conjur, acessado em 25.05.2016.

 

“Normalmente, entende-se por ‘pequeno trecho’ a reprodução de uma parte da obra que não prejudique a sua exploração normal, isto é, que as pessoas não deixem de comprar o original da obra por se darem por satisfeitas com a reprodução do pequeno trecho. Portanto, não se trata de uma questão meramente quantitativa da reprodução. Para conferir maior segurança jurídica, normalmente se deve levar em conta o tamanho da obra como um todo para verificar se a extensão da reprodução.” Disponível aqui,  acessado em 25.05.2016.

 

15 vide LEE, Melissa, ALMIRALL, Esteve Ewareham, JONATHAN. Open Data & Civic Apps: 1st Generation Failures – 2nd Generation Improvements, disponível aqui, acesso em 15 de abril de 2016.

 

16 Segundo o artigo 195 da Lei da Propriedade Industrial (lei 9.279/96), comete crime de concorrência desleal quem:

 

(…)

 

XI – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato;

 

XII – divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a que se refere o inciso anterior, obtidos por meios ilícitos ou a que teve acesso mediante fraude; (…) (grifei)

 

Fonte: Migalhas

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