O impacto da reforma tributária no Brasil sobre contratos públicos, destacando projetos de lei que buscam garantir o reequilíbrio econômico-financeiro durante a transição tributária
O Congresso Nacional aprovou, no final de 2023, a emenda constitucional 132/23, que estabeleceu as bases da reforma tributária no Brasil. O objetivo dessa reforma é objetivo de simplificar o sistema tributário nacional e dar voz ao cumprimento dos princípios constitucionais da tributação, unificando cinco tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) em uma cobrança única, dividida em dois níveis federativos: o IVA – Imposto sobre Valor Agregado, formado pela CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços, de competência da união, e o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, cujo lançamento competirá concorrentemente a Estados, DF e municípios. Além disso, prevê-se a criação do IS – Imposto Seletivo, de finalidade extrafiscal, incidente sobre os bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Foram longos anos de discussão no parlamento, com o Poder Executivo e a sociedade civil, que culminaram, enfim, na aprovação do texto-base da EC 132/23, trazendo importantes alterações na CF/88.
Nesse sentido, deu-se início, no Congresso, a discussões acerca da regulamentação da reforma tributária. Foram apresentados, até então, treze projetos de lei que pretendem normatizar os mais diversos elementos incluídos na Constituição pela EC 132/23 e que demandam disposições infraconstitucionais para seu melhor funcionamento e eficácia.
Tratando especificamente do tema deste artigo, sobre o impacto da reforma sobre os contratos públicos, dois projetos de lei são relevantes: (i) o PLP 68/24, que se propõe a instituir o IBS, o CBS e o IS, e (ii) o PLP 33/24, que define instrumentos de ajustes nos contratos administrativos firmados antes da entrada em vigor da lei instituidora do IBS e do CBS.
Em primeiro lugar, o PLP 68/24 reserva um capítulo dedicado ao reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos de longo prazo. Os arts. 362 a 366 do projeto discorrem, entre outros, sobre os elementos de determinação da carga tributária efetivamente suportada pela contratada para fins de reequilíbrio, considerando a possibilidade de repasse a terceiros do encargo financeiro dos tributos, assim como os efeitos da não cumulatividade nas aquisições e custos incorridos pela contratada.
Além disso, os mecanismos para a recomposição da equação financeira são igualmente previstos, sendo eles: a revisão dos valores pactuados; compensações financeiras e ajustes tarifários, inclusive a título de aporte de recursos ou contraprestação pecuniária; renegociação de prazos e condições de entrega ou prestação de serviços; elevação ou redução de valores devidos à Administração Pública, inclusive direitos de outorga; e transferência, a uma das partes, de custos ou encargos originalmente atribuídos à outra, a depender da maior ou menor onerosidade que poderá recair a cada uma das partes contratantes.
Entretanto, a redação do art. 362, §2º, vai no sentido de permitir a revisão de contratos que, inclusive, já possuam previsão dos impactos tributários supervenientes na matriz de risco. Isso porque, as consequências incalculáveis da reforma tributária, que não podem ser matematicamente previstas durante a transição, impõem que seja revisitada a alocação inicial dos riscos, cuja onerosidade decorrente poderá recair, em casos concretos, tanto à Administração quanto à empresa contratada, o que, por enquanto, não há como afirmar.
Em segundo lugar, o PLP 33/24 se aprofunda ainda mais na questão relativa à dinâmica dos contratos públicos e estipula ferramentas de recomposição econômico-financeira de contratos administrativos firmados antes da vigência da lei complementar que instituirá tais tributos. Seu objetivo é neutralizar eventuais externalidades negativas que possa vir da incidência dos novos tributos sobre contratos de longo prazo envolvendo infraestrutura e as diversas modalidades de concessões de serviço público.
A redação do projeto de lei 33/24 leva a crer que o legislador tem se preocupado com a crucial celeridade, por parte da administração, no atendimento dos pleitos de reequilíbrio durante o período de transição do regime tributário. Para tanto, se aprovado o Projeto, será dever de ofício da administração instaurar o procedimento de reequilíbrio, caso não tenham sido instaurados até 30 de junho de 2026.
Após esta data, o PLP determina que seja dada tramitação prioritária aos procedimentos administrativos relacionados a reequilíbrio do contrato. Além disso, o §7º do art. 2º define métodos de “reequilíbrio cautelar”, de caráter antecipatório, caso o Poder Público não tenha recomposto a equação financeira até o prazo estipulado (31 de dezembro de 2026).
As medidas previstas são, dentre outras, elevação das obrigações assumidas pela Administração Pública e pagamento direto de valores ao contratado a título de indenizações, ressarcimentos ou similares.
Além disso, a depender da natureza do contrato, o projeto pretende estabelecer mecanismos cujo contratado poderá dispor a seu critério para mitigar os efeitos do desequilíbrio, em caso de não conclusão do procedimento administrativo no prazo previsto ou de não implementação do reequilíbrio cautelar. Alguns deles estão previstos nos §§ 9º e 10 do mesmo art. 2º, e são: (1) acréscimo de valores às contraprestações devidas pelo Poder Público; (2) implementação de descontos sobre outorgas vencidas ou vincendas; e (3) acréscimo do valor da diferença entre as alíquotas atuais e as alíquotas dos novos tributos nos anos subsequentes.
Outro ponto importante é que o PLP 33/2024 pretende afastar a incidência de IBS e CBS sobre as receitas de construção, recuperação, reforma, ampliação ou melhoramento da infraestrutura, ou decorrentes de quaisquer direitos de natureza regulatória, cuja contrapartida seja ativo intangível representativo de direito de exploração, assim como sobre as receitas decorrentes da venda de bens do ativo não circulante, classificado como investimento, imobilizado ou intangível.
Essas medidas são importantes para não ocasionar eventual onerosidade excessiva do setor de infraestrutura, que depende do efetivo recebimento de contraprestação justa do serviço, além de buscar evitar a perda de arrecadação dos entes federativos, que precisam manter as obras e os serviços públicos em andamento, de modo que a alteração do sistema tributário não reflita uma desvantagem a nenhuma das partes contratantes.
Vê-se que não há dúvidas quanto à existência do direito material das contratadas em obter o reequilíbrio da equação inicial, principalmente considerando que a própria Teoria da Imprevisão, em seu molde clássico, aloca o risco tributário ao encargo da Administração Pública, na esfera do chamado “fato do príncipe” (aliás, expressamente previsto no caput do art. 2º do PLP 33/24). Mesmo assim, faz-se necessária a elaboração de critérios procedimentais apropriados que auxiliem as contratadas a buscar o reequilíbrio com transparência e celeridade, concretizando a norma do art. 37, XXI, da CF/88.
Por fim, outra questão que surge é acerca do período de transição, tendo em vista a implementação da Reforma e sua regulamentação. Nesse sentido, para além da previsão de aumento gradual das tarifas de acordo com as novas alíquotas até 2030, o art. 3º prevê a possibilidade de que as tarifas praticadas em contratos públicos de longo prazo possam ser revisadas e implementadas pelas próprias concessionárias, devendo ser formalmente comunicada ao órgão responsável pela fiscalização. Além disso, o art. 6º permite a compensação dos créditos de PIS e Cofins a que as contratadas façam jus até o final do prazo legal, isto é, 31 de dezembro de 2026.
A partir deste panorama geral da Reforma Tributária e dos projetos de lei complementar que pretendem regulamentar a EC 132/23, ao que importa ao setor de infraestrutura e contratos públicos, é que se espera a tutela do direito ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, garantindo-se a manutenção e continuidade das obras e serviços públicos, sem que o particular contratado seja onerado indevida e injustamente.
É certo que tal reforma, de magnitude nunca antes vista no direito tributário brasileiro e com claros reflexos no direito administrativo, provocará alterações profundas em diversos setores da economia e da sociedade, dentre os quais o mercado de infraestrutura e de contratos públicos, razão pela qual estima-se a possibilidade de um número considerável de pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro que serão apresentados, cabendo à Administração Pública, aos órgãos de controle e ao Poder Judiciário a serenidade e imparcialidade para enfrentar cada caso e manter, de um lado, a efetiva prestação do serviço público, e, de outro, a justa remuneração do capital, nos termos inicialmente acordados e constitucionalmente garantidos.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário