Após vários anos da vigência da Lei Federal nº 13.465/2017, atual norma que trata sobre a regularização fundiária urbana no Brasil, ainda é comum se deparar com indagações acerca da (im)possibilidade de se fazer Reurb de um único lote.

Sabe-se que inexiste uma fórmula exata para se fazer Reurb no Brasil. Isso ocorre porque a irregularidade fundiária brasileira é bastante diversificada, apresentando características peculiares que prejudicariam a adoção de um modelo único de regularização para todas as localidades.

Considerando o objetivo de se regularizar as mais diversas informalidades existentes, é perceptível que a Lei da Reurb se volta para a legalização de núcleos urbanos informais. O artigo 11, I e II, da Lei 13465/17 os classifica como assentamentos constituídos por várias unidades imobiliárias irregulares, que possuem uso e características urbanas.

Essa legalização não se resume ao mero registro imobiliário, traduzido na titulação dos ocupantes. Em verdade, a Lei 13.465/17 veio corrigir, na medida do possível, todas as pendências jurídicas, ambientais, urbanísticas e sociais do núcleo, de modo a integrar a ocupação ao ordenamento territorial urbano (artigo 1º, caput, Decreto 9.310/2018).

Tendo em vista que boa parte das cidades brasileiras foram construídas freneticamente, sem um mínimo de planejamento ambiental, social ou urbanístico, tal determinação legal foi prudente, já que atrelou qualquer titulação à existência (ou compromisso de implantação) de requisitos mínimos capazes de garantir o direito social à moradia digna.

Para assegurar o cumprimento dessas melhorias, o Decreto Federal nº 9.310/18, norma regulamentadora da Lei nº 13.465/17, determinou a obrigatoriedade de elaboração do Projeto de Regularização Fundiária (PRF) para quase todas as Reurb’s. O PRF vem a ser um conjunto de trabalhos que visam apresentar as peculiaridades do núcleo e sugerir eventuais propostas de melhoramentos.

De acordo com o Decreto 9.310/18, o PRF deve conter, no mínimo, os seguintes itens:

levantamento topográfico georreferenciado;
planta do perímetro do núcleo;
estudo preliminar das desconformidades e das situações jurídica, urbanística e ambiental;
projeto urbanístico (artigo 31 do Decreto);
memorial descritivo, dentre outros.

Elaboração do PRF é obrigatória no processo

Considerando que a elaboração do PRF é uma etapa obrigatória no processo de Reurb, e que o projeto é constituído por uma série de requisitos mínimos, é seguro pensar na inviabilidade técnica de se fazer Reurb de um único lote dada à impossibilidade de se desenvolver alguns trabalhos técnicos previstos no PRF tendo como base apenas uma unidade imobiliária.

O projeto urbanístico previsto no artigo 31 do Decreto 9.310/18, por exemplo, deve obrigatoriamente apresentar as áreas ocupadas e regularizadas do núcleo, o seu sistema viário, as unidades imobiliárias existentes e projetadas, os logradouros e equipamentos urbanos eventualmente construídos, dentre outros. Portanto, para que seja possível exibir tais informações, é imprescindível que o objeto analisado seja um núcleo cujo perímetro abarque ao menos uma quadra, área considerada segura para a extração desses dados, conforme defendido por Cunha e Maia (2021).

Dispensas do PRF

É necessário destacar, no entanto, que o artigo 21, §2º do Decreto 9.310/18 excepcionou duas situações em que o PRF seria dispensado na Reurb: nos casos em que fosse utilizado o rito previsto no artigo 69 da Lei nº 13.465/2017 (inominado), e quando o núcleo urbano já estivesse regularizado e registrado, restando apenas a titulação dos ocupantes.

Na primeira exceção, a lei garantiu que as glebas sem registro, parceladas para fins urbanos anteriormente a 19 de dezembro de 1979, pudessem ter a sua situação jurídica regularizada mediante a apresentação de alguns documentos, sendo o PRF dispensado.

Apesar dessa isenção, nota-se, todavia, que a norma se preocupou em listar outros trabalhos técnicos que também são voltados para a regularização do núcleo, como a demonstração das subdivisões das quadras, lotes, áreas públicas, logradouros, espaços livres e outras áreas com destinação específica existentes na ocupação.

Logo, mesmo que a Reurb seguisse o rito inominado do artigo 69, onde se dispensa o projeto de regularização fundiária, ainda existiria empecilho técnico para a regularização de apenas uma unidade imobiliária, pois a natureza dos trabalhos exigidos no dispositivo também é voltada para a legalização do núcleo.

Quanto à segunda exceção, em que o núcleo já se encontra registrado mas resta pendente a titulação dos ocupantes, é imprescindível tecer alguns comentários iniciais.

O artigo 21 do Decreto 9.310/18 determina que a Reurb obedeça às seguintes fases:

requerimento dos legitimados;
processamento administrativo do requerimento;
elaboração do projeto de regularização fundiária;
saneamento do processo administrativo;
decisão da autoridade competente;
expedição da CRF pelo Município ou pelo Distrito Federal; e
registro da CRF e do projeto de regularização fundiária no cartório de imóveis competente.

Via de regra, toda regularização fundiária deve tramitar por essas sete fases. Contudo, como a Lei da Reurb possui notório espírito flexibilizador, que busca otimizar ao máximo os processos administrativos, é possível que se dispense algumas dessas etapas a depender do que será regularizado, a exemplo da exceção trazida pelo artigo 21, §2º, do Decreto 9.310/18 (dispensa do projeto de regularização fundiária).

Cunha (2022), considerando a mens legis e observando as peculiaridades existentes nos núcleos irregulares brasileiros, estabeleceu uma classificação de Reurb atrelada ao nível de irregularidade registral da localidade a ser legalizada.

A referida classificação visa nortear o processamento da Reurb com base nos graus de complexidade registral da área objeto de regularização, de modo que quanto mais atos registrais estiverem pendentes, maior é o grau de irregularidade do local e menor será a possibilidade de flexibilizar as fases listadas no artigo 21 do Decreto 9.310/18.

Classificação das Reurb’s

De acordo com a autora, a regularização fundiária urbana é classificada em quatro tipos, a saber: Reurb complexa; Reurb intermediária; Reurb titulatória; e Reurb excepcional (edificações).

A Reurb complexa se refere às ocupações realizadas sem quaisquer intervenções da serventia competente. São os casos em que a área a ser regularizada não possui matrícula matriz ou, se existir, sua qualificação é precária, o que compromete a delimitação do perímetro do núcleo. Nesses casos têm-se um alto grau de complexidade porque o registrador irá realizar muitos atos registrais, a exemplo da abertura da matrícula matriz para o núcleo, o registro do parcelamento do solo e das titulações devidas.

Na Reurb intermediária, por sua vez, existe matrícula matriz que abarca o núcleo, mas ou inexiste parcelamento do solo registrado ou ele é incompatível com a realidade. Nesses casos a matrícula matriz será aproveitada e o registrador deverá proceder tão somente com o registro das vias públicas, lotes e demais atos registrais pendentes.

Já as Reurb’s titulatória e excepcional (edificações) são consideradas as menos complexas pois, comparadas às duas primeiras, restam poucos atos registrais pendentes para a regularização da localidade.

Essas Reurb’s voltam-se para os casos em que existe uma matrícula matriz devidamente parcelada, com as medidas dos lotes correspondentes à realidade, mas cujos ocupantes não figuram como os titulares de direito real constantes na matrícula (titulatória), e/ou para as situações em que existe uma edificação que desrespeitou os parâmetros edilícios e urbanísticos locais (excepcional).

Dispensa de fases da Reurb

Preenchidos os requisitos legais para cada uma delas, é possível que nesses dois casos sejam dispensadas algumas fases da Reurb, como a confecção do PRF, pois o núcleo já foi objeto de análise registral, restando pendentes tão somente os atos de titulação e averbação das construções, por meio da criação de procedimentos específicos que visam flexibilizar os padrões urbanísticos e edilícios municipais.

E são para essas duas situações menos complexas que se defende a possibilidade de se fazer Reurb de apenas um lote, conforme será arguido a seguir.

O artigo 21, §2º, II, do Decreto 9.310/18 determina que o projeto de regularização fundiária seja dispensado quando o núcleo já estiver regularizado e registrado, restando pendente apenas a titulação dos seus ocupantes. Por analogia, também deve-se incluir nessa exceção os casos de Reurb excepcional, por se tratarem de situações em que o parcelamento do solo está igualmente regular (às vezes até mesmo a titulação está registrada), restando tão somente a regularização do prédio ilegal.

O fundamento dessa dispensa parte da seguinte premissa: se inexistem correções a serem feitas no núcleo, porquanto a ocupação se deu de forma regular, por que seria necessário fazer trabalhos técnicos na localidade, principal objetivo do PRF?

Como dito anteriormente, o PRF visa a demonstrar a realidade do núcleo, por meio de uma série de trabalhos técnicos obrigatórios que, por sua natureza, devem abranger a análise de vários imóveis para a coleta de informações de toda a ocupação, como os logradouros, espaços e serviços públicos existentes, questões ambientais a serem resolvidas, etc.

Havendo a dispensa dessa etapa, abre-se a possibilidade de a Reurb ter enfoque individual, visto que a natureza das demais fases, previstas no artigo 21 do Decreto 9.310/18, permite a tramitação da regularização de uma unidade imobiliária.

Norma impede regularização em alguns casos

Deste modo, é aceitável presumir que a norma não afasta a legalização de um único imóvel marginalizado nos casos de Reurb titulatória e/ou excepcional. E tanto é assim que em nenhum momento a Lei 13.465/17, ou o Decreto Federal nº 9.310/18, excluíram expressamente a Reurb de um lote.

Na realidade, a norma regulamentadora só não admite regularização para os seguintes casos: núcleos urbanos informais situados em áreas indispensáveis à segurança nacional ou de interesse da defesa, assim reconhecidas em ato do Presidente da República (artigo 3º, §8º); unidades imobiliárias com área superior à fração mínima de parcelamento prevista no artigo 8º da Lei 5.868/72 (artigo 3º, I e §13); núcleos situados em unidades de conservação que não se admite a regularização (artigo 3º, §5º); núcleos classificados na modalidade específica, situados a menos de quinze metros das margens de rios ou de qualquer curso d’água (artigo 4º, §7º); e núcleos situados em área de risco que não comporte eliminação, correção ou administração (artigo 36, §§4º e 6º).

Após todos esses comentários, conclui-se que a Reurb é, sim, voltada para núcleos, já que a Lei 13.465/17 busca integrar as ocupações à cidade, por meio do registro e titulação dos seus ocupantes, e do implemento de melhorias ambientais, urbanísticas e sociais necessárias.

No entanto, em situações específicas, em que o núcleo já se encontra regularizado e não restam quaisquer melhoramentos a serem feitos, é aceitável que a Reurb seja feita por lotes, com o objetivo de titular o ocupante e/ou legalizar eventuais prédios existentes.

Essa exceção parte do pressuposto de que é possível adequar o processamento da Reurb para casos individuais que estão em sintonia aos objetivos da norma, relacionados à garantia do devido acesso à cidade, e dos benefícios que ela oferece, a todos.

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Referências bibliográficas

BRASIL. Decreto Federal n. 9.310.18. Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2018/decreto-9310-15-marco-2018-786319-publicacaooriginal-155038-pe.html>. Acesso em: 06/03/2022.

BRASIL. Lei Federal n. 13.465.17. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13465.htm>. Acesso em: 06/03/2022.

CUNHA, M. F. F. Manual de Regularização Fundiária Urbana (REURB). São Paulo: Editora Jus Podivm, 2022. p. 57-59.

CUNHA, M. F. F.; MAIA, A. C. Treinamento REURB na Prática: Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais. 5ª ed. Belo Horizonte: 07 de abril de 2021.

Fonte: Conjur

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