A sociedade digital contemporânea evoluiu do simples online para o denominado “onlife”, no qual experiências reais e virtuais se relacionam, modificando profundamente a forma como interagimos e vivemos. Tal transformação impõe desafios ao Direito, exigindo uma percepção aguçada e o desenvolvimento de regulamentações específicas para acompanhar os avanços tecnológicos1.

Nesse cenário, os neurodireitos têm ganhado destaque, sendo objeto de debates e regulamentações em diversas partes do mundo. Um exemplo notável ocorreu com a Constituição do Chile2, que foi emendada para proteger a integridade e a segurança psíquica diante do avanço das neurotecnologias.

De maneira semelhante, a Espanha deu um importante passo com a Carta de Direitos Digitais, aprovada em julho de 2021. No item XXVI do Capítulo 53, a norma aborda os direitos digitais no uso de neurotecnologias, determinando que as condições, limites e garantias para a implementação e utilização dessas tecnologias sejam regulamentados por lei, com observância de finalidades específicas.

Nos Estados Unidos, o Estado do Colorado4 aprovou uma legislação pioneira ao incluir os dados neurais entre os direitos de privacidade. A lei ampliou a definição de dados sensíveis na legislação estadual sobre privacidade pessoal, abrangendo informações relacionadas à atividade cerebral e derivadas do sistema nervoso, em resposta ao crescente interesse das empresas de tecnologia nesse campo.

No Brasil, o debate sobre os neurodireitos está em ascensão, especialmente com a Proposta de Emenda à Constituição n. 29, de 2023, que visa inserir o inciso LXXX ao artigo 5º da Constituição Federal, conferindo aos neurodireitos o status de direito fundamental5.

Destaca-se, nesse contexto, a iniciativa acadêmica do Professor Eduardo Tomasevicius Filho, que, no primeiro semestre de 2024, ofereceu a disciplina “Direito Civil na Recepção Dogmática dos Neurodireitos” no programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). O curso proporcionou uma pesquisa coletiva e colaborativa, analisando os neurodireitos sob a ótica da legislação e da doutrina, promovendo uma reflexão aprofundada sobre o tema.

O futuro dos neurodireitos tende a ser um campo de crescente relevância e complexidade, a depender do desenvolvimento das tecnologias, das técnicas empregadas e das informações neurais extraídas. Nesse cenário, analisar os dados neurais e a possível existência de uma nova categoria de bens, denominada bens neurais, revela-se essencial.

Em relação aos dados pessoais, o art. 5º, inciso I, da Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18) os define como informações relacionadas a uma pessoa natural identificada ou identificável. Em consonância com essa definição, Antonia Espíndola Longoni Klee e Guilherme Magalhães Martins6 afirmam que dados pessoais são informações que permitem identificar o indivíduo a quem dizem respeito.

Com o avanço das tecnologias, surge a necessidade de analisar a coleta de dados íntimos e mentais, que podem ser utilizados para as mais diversas finalidades, desde a melhoria da qualidade de vida até o induzimento a comportamentos específicos.

Partindo da premissa da Lei Geral de Proteção de Dados e do anteprojeto do Novo Código Civil, que propõe inserir o inciso VIII ao artigo 2º, considera-se a possibilidade de inclusão dos dados neurais como uma categoria normativa, inicialmente vinculada aos direitos da personalidade.

Os dados neurais podem ser obtidos por meio de diversas técnicas e dispositivos, como eletroencefalogramas (EEG), ressonância magnética funcional, interfaces cérebro-computador (BCI), entre outros. Essas informações incluem: atividades elétricas em diferentes regiões do cérebro, imagens cerebrais detalhadas, padrões de ativação neuronal que podem estar associados a pensamentos, emoções, movimentos ou outros processos mentais e fisiológicos, e até mesmo dados de interação entre diferentes regiões do cérebro.

Esses dados, portanto, referem-se às informações íntimas e mentais coletadas sobre a atividade e os processos do sistema nervoso, especialmente do cérebro, relacionadas a uma pessoa natural identificada ou identificável.

Contudo, com o avanço das tecnologias, certas informações cerebrais podem eventualmente adquirir conteúdo econômico, classificando-se como bens neurais. Embora relacionados aos dados neurais, os bens neurais diferem por possuírem um caráter patrimonial/econômico associado. Assim, enquanto os dados neurais envolvem informações íntimas e mentais sobre a atividade e os processos do sistema nervoso, os bens neurais possuem as mesmas características, acrescidas de um conteúdo patrimonial.

Pode-se concluir, assim, que os dados neurais são uma categoria na qual os bens neurais são uma espécie qualificada pelo conteúdo patrimonial/econômico. Todo bem neural é um dado neural, mas nem todo dado neural será um bem neural. A diferença fundamental entre eles é a presença do elemento patrimonial.

Como exemplo de dados neurais, podem ser citadas informações sobre doenças neurológicas e suas consequências, bem como aspectos físicos relacionados à pessoa da qual esses dados são extraídos. Tais informações configuram-se como meros dados, uma vez que, em um primeiro momento, não apresentam um interesse patrimonial propriamente dito.

Com o desenvolvimento acelerado das neurotecnologias, é possível que, ao longo dos anos, algumas informações extraídas de dados neurais passem a adquirir um caráter patrimonial. Considere, por exemplo, a possibilidade de que, por meio da leitura de dados cerebrais, seja possível identificar como o cérebro de uma pessoa reagiu a uma doença psíquica e alcançou a cura com o uso de um medicamento específico. Essa informação teria um grande valor econômico, pois inúmeras pessoas que enfrentam a mesma condição quanto indústrias farmacêuticas interessadas no desenvolvimento de novos tratamentos poderiam desejá-la.

A importância da distinção entre dados neurais e bens neurais é de fundamental importância, pois envolve a aplicação de regimes jurídicos distintos. Dados neurais, por não possuírem caráter patrimonial, estão sujeitos à sistemática dos direitos da personalidade, protegendo aspectos essenciais da dignidade e da identidade humana e podendo ser defendidos por aqueles legitimados em lei. Em contrapartida, bens neurais, por possuírem caráter patrimonial, estariam submetidos ao regime jurídico da propriedade, sendo inclusive passíveis de transmissão por herança.

Em relação à herança, merece destaque a abordagem adotada pela Espanha na Carta de Direitos Digitais, aprovada em julho de 20217. No item VII do Capítulo 1, que trata dos direitos de liberdade, incluindo o direito à herança digital, a Carta estabelece que cabe ao legislador definir quais bens e direitos de natureza patrimonial são transmissíveis por herança e quais estão vinculados aos direitos da personalidade, podendo ser objeto de defesa, preservação e memória. Essa medida pode servir como referência para outros países e legislações, possibilitando, futuramente, uma distinção legal entre dados neurais e bens neurais e maior segurança jurídica quanto ao tema.

Portanto, o avanço legislativo diante dos desafios impostos pelas neurotecnologias e pela integração dos bens neurais ao patrimônio digital é indispensável. A categorização dos dados neurais como bens neurais, quando possuírem conteúdo patrimonial/econômico, representa um passo crucial para assegurar segurança jurídica e proteção adequada desses ativos no ordenamento jurídico. Essa evolução é fundamental para promover um futuro mais seguro e equilibrado no campo dos direitos digitais e dos neurodireitos.

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1 FLORIDI, Luciano. The Onlife Manifesto: Being Human in a Hyperconnected Era. Oxford: Springer, 2015. Disponível em: . Acesso em: 02/06/2024.

2 CHILE. Biblioteca del Congreso Nacional de Chile (2021). Decreto 100 fija el texto refundido, coordinado y sistematizado de la Constitución Política de la República de Chile. Disponível em: . Acesso em: 20/05/2024.

3 1. Las condiciones, límites y garantías de implantación y empleo en las personas de las neurotecnologías podrán ser reguladas por la ley con la finalidad de:

a) Garantizar el control de cada persona sobre su propia identidad.

b) Garantizar la autodeterminación individual, soberanía y libertad en la toma de decisiones.

c) Asegurar la confidencialidad y seguridad de los datos obtenidos o relativos a sus processos cerebrales y el pleno dominio y disposición sobre los mismos.

d) Regular el uso de interfaces persona-máquina susceptibles de afectar a la integridad física o psíquica.

e) Asegurar que las decisiones y procesos basados en neurotecnologías no sean condicionadas por el suministro de datos, programas o informaciones incompletos, no deseados, desconocidos o sesgados.

2. Para garantizar la dignidad de la persona, la igualdad y la no discriminación, y de acuerdo en su caso con los tratados y convenios internacionales, la ley podrá regular aquellos supuestos y condiciones de empleo de las neurotecnologías que, más allá de su aplicación terapéutica, pretendan el aumento cognitivo o la estimulación o potenciación de las capacidades de las personas.

4 THE NEW YORK TIMES. Your brain waves are up for sale. A new law wants to chande that. Disponível em: . Acesso em 05/06/2024.

5 BRASIL. Senada Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 29, de 2023. Disponível em: . Acesso em 05/06/2024.

6 KLEE, Antonia Espíndola Longoni; MARTINS, Guilherme Magalhães. A privacidade, a proteção dos dados e dos registros pessoais e a Liberdade de expressão: algumas reflexões sobre o Marco Civil da Internet no Brasil (Lei nº 12.965/2014). In: Direito & Internet III – Tomo I: Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (coords.). São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 325.

7 ESPANHA. Carta Derechos Digitales. Disponível em: Acesso em: 04/06/2024.

Fonte: Migalhas

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