Ao longo de 2024, por meio de decisões judiciais e da elaboração de normativos, em especial referentes ao fomento da cooperação interinstitucional e ao destaque da implementação de medidas de integridade como ferramenta da atuação pública preventiva, desenharam-se importantes acontecimentos no âmbito do combate à corrupção no Brasil. Trazemos sinteticamente, então, alguns dos principais temas relevantes ao microssistema jurídico anticorrupção nesta retrospectiva.

Atuação do TCU na celebração de acordos de leniência

Primeiramente, em 21/2/2024, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou a Instrução Normativa TCU nº 94, que regulamentou sua atuação no âmbito de celebração de acordos de leniência, previstos na Lei Anticorrupção (LAC).

Com efeito, a Instrução delimitou a atuação do TCU com base nos princípios e objetivos do Acordo de Cooperação Técnica (ACT), celebrado em agosto de 2020 com a Controladoria-Geral da União (CGU), a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob a coordenação do Supremo Tribunal Federal [1].

Foram introduzidas regras procedimentais relacionadas, principalmente, ao seguinte: (1) recebimento e envio de informações à AGU/CGU para eventual atuação conjunta nos termos do ACT; (2) procedimento de apuração dos danos decorrentes de fatos revelados na negociação de acordos de leniência que estejam sujeitos à atuação do TCU; (3) parametrização de metodologia específica para apuração de eventual dano a ser endereçado em negociação da leniência; (4) manifestação do TCU acerca da suficiência dos valores negociados, face os critérios estabelecidos para quitação do dano; e (5) recebimento de informações e evidências para eventual responsabilização, por meio de tomada de contas ou fiscalização, de terceiros envolvidos nos atos lesivos narrados pela colaboradora, bem como à apuração de dano não abrangido no escopo de acordo já celebrado.

A instrução normativa, então, fixou regras com vistas a garantir maior eficiência à cooperação interinstitucional, prevista pelo ACT, no âmbito do combate à corrupção, mediante a delimitação da atuação do TCU em relação à celebração de acordos de leniência.

Apesar de o TCU não configurar órgão responsável pela celebração de acordos de leniência, sua participação nesta seara é de extrema importância e cumpre com a necessidade de consenso entre os órgãos signatários do ACT quanto à apuração e eventual quitação de danos decorrentes de fatos abarcados no acordo. Deste modo, a instrução caracterizou um avanço no âmbito de celebração de acordos de leniência, oferecendo maior segurança e previsibilidade jurídica [2].

ADPF 1.051: revisão de acordos de leniência celebrados previamente ao ACT

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1.051 (ADPF), apresentada ao STF em março de 2023, trata essencialmente da necessidade de revisão de determinados acordos de leniência, visto que celebrados, no âmbito da operação “lava jato”, em situação de anormalidade político-jurídico-institucional face à inexistência de regras de cooperação e colaboração interinstitucional entre os órgãos legitimados para apurar a responsabilidade empresarial e reparação de danos decorrentes de ilícitos praticados contra a administração pública.

Como já mencionado, as regras de cooperação interinstitucional foram estabelecidas somente em agosto de 2020, com a celebração do ACT. Portanto, a ADPF alcança os acordos de leniência firmados até essa data.

Nesse sentido, foi realizada audiência de conciliação em 26/2/2024, por meio da qual o ministro André Mendonça fixou o prazo inicial de 60 dias para que as partes, empresas colaboradoras e entes públicos, alcançassem consenso sobre os acordos [3], suspendendo a aplicabilidade de sanções ou retaliações em decorrência de mora no cumprimento das obrigações financeiras pactuadas.

Em 24/5/2024, realizou-se nova audiência de conciliação, por meio da qual o ministro André Mendonça esclareceu três principais pontos de discussão entre as partes: (1) consideração da capacidade de pagamento das empresas (ability to pay) segundo parâmetros já estabelecidos pela CGU/AGU; (2) possibilidade de pagamento dos débitos através da compensação de créditos derivados de prejuízo fiscal do IRPJ e de base de cálculo negativa da CSLL; e (3) necessidade de analisar os acordos firmados de modo a evitar a aplicação de multas em duplicidade (bis in idem).

Após diversas rodadas de negociação com as empresas colaboradoras, a CGU e a AGU enviaram ao STF proposta final de conciliação sobre a reestruturação dos acordos de leniência firmados com as empresas que se habilitaram no âmbito da ADPF [4].

A proposta, que ainda está sob análise e pendente de decisão do STF, contempla diversos aspectos, principalmente relacionados à dimensão financeira do acordo, entre eles, a multa aplicada, o indexador de atualização, o meio de pagamento, com a possibilidade de utilização de crédito derivado de prejuízo fiscal, e o cronograma de amortização. Espera-se que a homologação da renegociação saneadora, compassada com a capacidade de pagamento das empresas, contribua para que esses acordos possam ser definitivamente cumpridos.

A ADPF, e suas consequências, podem ser consideradas um marco na evolução e no amadurecimento do instituto do acordo de leniência no Brasil. Em sua concepção, o acordo de leniência foi pensado como forma de permitir às empresas virarem uma página complicadíssima e levar adiante sua existência. No entanto, o instituto acabou sendo, na prática, deturpado no âmbito da operação “lava jato”, contribuindo para um processo de deterioração da capacidade financeira das empresas. Assim, a iniciativa do STF em promover a renegociação consensual dos acordos, à luz dos princípios e diretrizes fixados no ACT, tem o condão de remediar determinadas distorções e injustiças, garantindo segurança jurídica para as empresas colaboradoras e instituições celebrantes.

‘Novo’ instrumento de solução consensual no âmbito da LAC

Outro importante marco ao sistema de combate à corrupção em 2024 foi a regulamentação da celebração de termo de compromisso no âmbito da CGU, por pessoa jurídica que admita sua responsabilidade pela prática de atos lesivos previstos na LAC.

Por meio da publicação da Portaria Normativa nº 155/24, em 29/8/2024, a CGU introduziu o instrumento de solução consensual denominado termo de compromisso, que surgiu em substituição ao procedimento de julgamento antecipado, anteriormente adotado pela CGU por meio da revogada Portaria Normativa CGU nº 19/22.

A partir da aplicação do procedimento de julgamento antecipado desde 2022, a CGU incorporou ao texto do novo normativo alterações e melhorias que percebeu durante os últimos dois anos. Em suma, ampliaram-se disposições referentes aos requisitos para celebração de termo de compromisso, seus efeitos, bem como ao requerimento a ser realizado pela pessoa jurídica investigada.

Os requisitos para celebração de termo de compromisso são semelhantes, em essência, àqueles já adotados no procedimento de julgamento antecipado, inclusive, muitos deles integralmente reproduzidos. No entanto, com vistas a aprimorar a aplicação do novo instrumento, práticas que já eram comumente adotadas pela CGU em sede de julgamento antecipado foram expressamente formalizadas na portaria.

Ainda, inovando, a CGU previu que poderá condicionar a celebração do termo de compromisso ao comprometimento da pessoa jurídica em adotar, aplicar ou aperfeiçoar seu programa de integridade, previsão esta que não era adotada no âmbito do julgamento antecipado.

Assim como previsto em julgamento antecipado, a celebração de termo de compromisso resulta na aplicação da sanção de multa prevista na LAC de forma isolada, sem que seja cumulada à sanção de publicação da decisão condenatória, podendo também serem atenuadas as sanções restritivas de licitar e contratar com o poder público.

O cálculo da multa segue os percentuais dispostos nos incisos do artigo 23 do Decreto nº 11.129/22 (regulamentador da LAC) e a concessão de atenuantes depende do momento do requerimento para celebração do termo de compromisso (i.e., anterior à instauração do PAR, até o prazo para a apresentação de defesa, até o prazo para apresentação de alegações finais e posterior ao prazo de alegações finais). Ou seja, quanto mais cedo for feita a proposta, considerando o momento processual de apuração do ilícito, maior será o percentual de atenuação da multa.

Por fim, à luz da previsão de colaboração interinstitucional, foi introduzida a atuação conjunta da AGU com a Secretaria de Integridade Privada da CGU (Sipri) para mapeamento de ações judiciais ou procedimentos prévios que versem sobre os mesmos fatos tratados no Termo. Em caso positivo, a celebração ocorrerá coordenadamente com a AGU, com vistas a solucionar a demanda e o ato negocial de forma conjunta.

Avaliação de programas de integridade no âmbito da Nova Lei de Licitações

Em 10/12/2024, foi publicado o Decreto nº 12.304/24 [5] que regulamenta a implementação e avaliação de programas de integridade em licitações e contratos públicos, no âmbito da aplicação da Lei nº 14.133/21 (Nova Lei de Licitações), especificamente nas hipóteses de (1) contratações de grande vulto, cujo valor estimado é superior a R$ 239 milhões [6], (2) desempate entre duas ou mais propostas, e (3) reabilitação de licitante ou contratado. A avaliação é restrita às empresas que contratem com a administração pública federal direta, autárquica e fundacional [7] e se enquadrem nas hipóteses supramencionadas.

Os critérios de avaliação de programa de integridade da LAC foram reproduzidos pelo decreto, apenas acrescidos ao texto os parâmetros de avaliação relacionados à proteção de direitos sociais (i.e., humanos e trabalhistas) e do meio ambiente pelo programa avaliado.

O controle será exercido incialmente pela CGU, por meio de atividades de natureza preventiva (i.e., orientação, supervisão e avaliação), e repressiva, em processos administrativos de responsabilização (PARs). Poderá a CGU, desde que resguardada a supervisão técnica, delegar a outros entes públicos a competência para avaliar programas de integridade e instaurar e julgar os respectivos PARs na seara de seus processos de licitação e contratações.

Merece aqui destaque a atividade repressiva da CGU, que ocorrerá mediante a instauração de PAR pela prática das infrações previstas no decreto (listadas em seu artigo 17), quando esgotados os recursos da atividade preventiva ou quando assim justificado face à gravidade da conduta. Ao final, poderão ser aplicadas sanções à empresa infratora, quais sejam, (1) advertência; (2) multa, de, no mínimo, 1% a, no máximo, 5% do valor da licitação ou do contrato; (3) impedimento de licitar e contratar; e/ou (4) declaração de inidoneidade.

Na hipótese de correspondência entre as disposições do decreto infringidas e os atos lesivos previstos pela LAC, poderão ser aplicadas, em adição às sanções do decreto, as sanções de multa e publicação extraordinária da decisão condenatória dispostas no artigo 6º da LAC.

Apontamos, apesar de evidente, que a previsão acima fere frontalmente o princípio constitucional do non bis in idem, na medida que autoriza – sem dúvidas quanto à interpretação do artigo 20, § 3º do Decreto [8] – a cumulatividade das sanções da LAC com aquelas previstas pelo novo decreto.

Ainda, a (indevida) previsão da cumulatividade de sanções por mesmo ato lesivo praticado não é unicamente lesiva em sua constituição, pois, em consequência, também gera insegurança quanto a possibilidade de cumulatividade das sanções pecuniárias previstas pela LAC e pelo artigo 156 da Nova Lei de Licitações, o que seria ainda mais gravoso.

Espera-se que, na normatização dos procedimentos para execução do decreto, a CGU esclareça a correta interpretação de suas disposições repressivas, afastando o risco do bis in idem decorrente de eventual e equivocada aplicação cumulativa das multas nele previstas com as do artigo 6º da LAC.

Conclusão

Analisados estes acontecimentos, verificamos em 2024 a crescente preocupação institucional do Estado em fortalecer, sistêmica e finalmente, a cooperação e colaboração entre os entes públicos e com os entes privados na seara negocial do combate à corrupção.

Por fim, observa-se também o fortalecimento institucional da CGU como órgão central de controle do Poder Executivo Federal com o recente lançamento, em 13/12/2024, do “Plano de Integridade e Combate à Corrupção 2025-2027”, estruturado em cinco eixos estratégicos.

O plano, elaborado de forma participativa, conta com 260 ações de caráter preventivo e repressivo que serão monitoradas semestralmente pela CGU quanto à sua execução.

[1] A aplicabilidade da Instrução é limitada às negociações instauradas após a celebração do ACT.

[2] A Instrução entrou em vigor em 22.02.24.

[3] Referido prazo foi posteriormente prorrogado em 26.04.24, 10.07.24 e 21.08.24.

[4] As empresas cujos acordos foram celebrados exclusivamente com a PGR/MPF, sem a participação da CGU/AGU, ainda estão em fase de negociação junto aos órgãos competentes e não fazem parte da referida proposta.

[5] O Decreto entrará em vigor em 60 dias após a sua publicação.

[6] Valor atualizado de acordo com o Decreto nº 11.871/23.

[7] O Decreto também se aplica às contratações realizadas por órgãos e entidades da Administração Pública Estadual, Distrital e Municipal com recursos oriundos de transferências voluntárias da União.

[8] Art. 20 § 3º: “Quando o descumprimento das obrigações previstas neste Decreto corresponderem a atos lesivos tipificados na Lei nº 12.846, […] poderão ser aplicadas também as sanções previstas no art. 6º da referida Lei, com observância do respectivo procedimento, nos termos do disposto no art. 159 da Lei nº 14.133 […]”.

Fonte: Conjur

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