Trata-se de uma análise sobre o paradoxo do somatório de alíquotas do IBS instituído pela EC 132/23 em relação aos prestadores de serviços, se comparados ao comerciante comum
No dia 20/12/23 foi promulgada a EC 132, mais conhecida como “Reforma Tributária”, que alterou consideravelmente o STN, principalmente no que tange à tributação do consumo no país.
Longe de se perquirir as razões ideológicas do constituinte derivado na elaboração da sobredita emenda, é inegável que essa visa – ou ao menos teve essa pretensão – unificar e simplificar a forma de arrecadação de tributos incidentes sobre o consumo, haja vista o cipoal de leis, portarias, regulamentos etc., que gravitam em torno do tema nos três níveis de governo e que dificulta a compreensão do sistema tributário brasileiro por parte dos contribuintes.
É de se festejar, portanto, o art. 1º, da EC 132/23, que, dentre outros, incluiu o §3º ao art. 145 da CRFB/1988, dispondo expressamente que o STN observará o princípio da simplicidade.
Basta imaginar um sistema jurídico brasileiro pré-reforma com pelo menos 27 leis (Estados e o DF) tratando do ICMS e outras 5.569 (municípios e o DF) tratando do ISSQN, cada qual com as suas particularidades, para se chegar à inevitável conclusão de que esse emaranhado de atos normativos, a maioria complexos e confusos, em nada contribuía para a justiça fiscal, aumentando o abismo entre ricos e pobres, pois, na prática, o indivíduo com maior poder aquisitivo sempre contribuiu menos para os cofres públicos, ao passo que os menos abastados praticamente sustentam o STN, invertendo-se a lógica da progressividade em matéria tributária.
Aliás, sobre a progressividade, é bom que se diga que quando um tributo chega ao ideal de arrecadar mais de quem tem mais para entregar, diz-se que ele é progressivo. Segundo Ricardo Alexandre e Tatiane Costa Arruda1, “A progressividade é uma técnica de tributação consistente na manipulação das alíquotas do tributo em função de alguma grandeza (normalmente, a base de cálculo), por meio da qual o legislador pode ajustar o valor da exação à realidade do sujeito passivo. Trata-se de técnica naturalmente aplicável aos impostos pessoais, mas de notável importância para os impostos reais, por fazê-los observar minimamente a capacidade contributiva do sujeito passivo.”
A contrário sensu, segundo os referidos autores, “(…) quando um tributo ou sistema tributário impõe às pessoas menos abastadas uma carga tributária proporcionalmente maior que a suportada por aqueles economicamente mais favorecidos, tal tributo ou sistema tributário é considerado regressivo.”
Foi por essa razão que a EC 132/23 deixou expresso que as alterações na legislação tributária buscarão atenuar efeitos regressivos2, o que, aliás, é outro ponto da reforma digno de aplausos.
Acontece que nem só de elogios vive a “Reforma Tributária”. Não. A comunidade jurídica está dividida, merecendo destaque a peculiar situação do somatório de alíquotas do novo regime do IBS e seus impactos sobre os comerciantes e prestadores de serviços, principalmente em relação a esses últimos, que, como se sabe, pertencem ao setor terciário da economia.
E, embora pareça desnecessário trazer dados quantitativos para comprovar a importância desse setor para a balança comercial do Brasil, porquanto isso é público e notório, seria justo, no mínimo, a exposição fria dos números a fim de demonstrar aos mais incrédulos o tamanho da importância econômica da prestação de serviços para o país. Em 2024, os setores de serviços e indústria empurraram o PIB brasileiro para cima, com altas de 3,7% e 3,3%, respectivamente, na comparação com 20233.
É claro que esse aumento refletiu diretamente na arrecadação de tributos, sobretudo em relação ao IPI, ICMS e ISSQN. Deixando de lado as nuances do IPI e focando um pouco mais no ICMS e principalmente no ISSQN, esse de competência dos municípios e do Distrito Federal, pode-se afirmar sem medo de errar que o setor de serviços poderá ser o mais impactado pela EC 132/23 no curto e médio prazo.
Porém, para que tenhamos condições de afirmar que a prestação de serviços sofrerá mais os efeitos da “Reforma Tributária” que os comerciantes em geral, é preciso que tracemos o ponto comum que os une. Isso porque, o ICMS, assim como o ISSQN, não mais existirão, possuindo, inclusive, prazos definidos na EC 132/23 para a extinção total de ambos, que por sua vez serão substituídos pelo IVA/DUAL brasileiro.
De forma breve, já que não é o escopo deste artigo, o nosso IVA/DUAL, diversamente do que ocorre no restante do mundo que dele se vale, ao invés de um único imposto sobre o valor agregado, de competência Federal, com arrecadação partilhada com todos os entes federados, o constituinte derivado optou por uma cisão do IVA em dois tributos: a CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços, de competência Federal, e o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, submetido a uma inédita competência compartilhada entre os Estados, municípios e Distrito Federal4.
Mas, como dito, em que pese a extinção total do ICMS e do ISSQN, essa se dará de forma gradativa, até porque tais impostos sempre foram de enorme relevância arrecadatória para os cofres estaduais e municipais, não sendo crível nem tampouco razoável que Estados, DF e municípios fossem surpreendidos com uma interrupção abrupta, sob pena de queda de arrecadação sem precedentes, o que culminaria na ausência ou diminuição de políticas públicas sensíveis à população por falta de recursos financeiros.
De toda forma, não haverá saída, pois ao final do exercício de 2032, os mencionados impostos serão realmente extintos, sendo substituídos pelo IBS, nos termos dos arts. 128 e 129, do ADCT. Confira-se:
“Art. 128. De 2029 a 2032, as alíquotas dos impostos previstos nos arts. 155, II, e 156, III, da Constituição Federal, serão fixadas nas seguintes proporções das alíquotas fixadas nas respectivas legislações: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
I – 9/10 (nove décimos), em 2029; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
II – 8/10 (oito décimos), em 2030; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
III – 7/10 (sete décimos), em 2031; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
IV – 6/10 (seis décimos), em 2032. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
§ 1º Os benefícios ou os incentivos fiscais ou financeiros relativos aos impostos previstos nos arts. 155, II, e 156, III, da Constituição Federal não alcançados pelo disposto no caput deste artigo serão reduzidos na mesma proporção. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
§ 2º Os benefícios e incentivos fiscais ou financeiros referidos no art. 3º da Lei Complementar nº 160, de 7 de agosto de 2017, serão reduzidos na forma deste artigo, não se aplicando a redução prevista no § 2º-A do art. 3º da referida Lei Complementar. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
§ 3º Ficam mantidos em sua integralidade, até 31 de dezembro de 2032, os percentuais utilizados para calcular os benefícios ou incentivos fiscais ou financeiros já reduzidos por força da redução das alíquotas, em decorrência do disposto no caput. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
Art. 129. Ficam extintos, a partir de 2033, os impostos previstos nos arts. 155, II, e 156, III, da Constituição Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023” (g.n)
Assim, a partir de 2033, o IBS será o imposto que regerá totalmente as relações jurídico-tributárias envolvendo comerciantes e prestadores de serviços, antes à cargo do ICMS e do ISSQN. Nos termos do art. 156-A, § 1º, IV, da CRFB/1988, o IBS terá legislação única e uniforme em todo o território nacional, ressalvada a possibilidade de cada ente federativo fixar sua alíquota própria por lei específica (inciso VII). Em não sendo fixada, caberá ao Senado Federal, por meio de resolução, o estabelecimento da alíquota referência (inciso XII).
Para se chegar a alíquota total do IBS, deve-se somar as alíquotas cobradas pelo Estado e pelo município destinatário da operação, tal como determinado pelo inciso VII do mencionado dispositivo constitucional.
Comecemos agora a compreender o paradoxo objeto do presente estudo. Atualmente, o ISSQN tem alíquota mínima no percentual de 2%, sendo nula a lei ou o ato do município ou do Distrito Federal que não respeite as disposições relativas a ela, de acordo com o que prescreve o art. 8º, §2º, da LC Federal 116/03.
A esmagadora maioria dos municípios, que já não mais podiam fixar as alíquotas do ISSQN aquém do mínimo, seja por força do que fora decidido na ADPF 190, seja pelo disposto na LC Federal 157/16, se viram obrigados a respeitar o piso de 2%, o que ocasionou o desinvestimento econômico em seus territórios.
Lembre-se que a instalação de um prestador de serviço num determinado território, longe dos grandes centros urbanos aonde o consumo é maior, só se justifica pela redução da alíquota do ISSQN. Isso, inclusive, impulsionou o país nas últimas décadas para uma verdadeira guerra fiscal, razão pela qual a Suprema Corte e o legislador infraconstitucional foram chamados a intervir, e de fato o fizeram com muita sabedoria.
Com o novo regime estabelecido pela “Reforma Tributária”, que, como dito, se vale da soma das alíquotas do Estado e do município destinatário da operação, os resquícios de alguma guerra fiscal ainda existente no âmbito do ISSQN não mais subsiste, pois a sistemática da apuração da alíquota total do IBS não permite o uso do imposto como moeda de troca para incentivos a algum setor da economia, exceto naquilo que a CF/88 expressamente ressalvou.
Mas, perceba: se com o mínimo de 2%, os municípios de pequeno e médio porte já experimentaram um verdadeiro “êxodo” empresarial de seus territórios, o que não dizer a elevação da carga tributária pelo regime do somatório de alíquotas do IBS.
Vamos a um exemplo prático: imaginemos que, sob a égide do atual regime (LC Federal 116/03), um determinado prestador de serviço qualquer, ou seja, fora das exceções previstas em lei, estabelecido no município alfa, esteja submetido à alíquota mínima (2%). Aquele, então, presta um serviço no valor de R$1.000,00 e se vê obrigado ao recolhimento do ISSQN no importe de R$20,00.
Nesta mesma situação, porém sob o escudo do novo regime de tributação instaurado pela EC 132/23, o IBS se valerá da soma das alíquotas cobradas pelo Estado e pelo município destinatário da operação, fazendo com que o prestador de serviço, em qualquer cenário, pague muito mais do que 2%, pois dificilmente os Estados e o DF abrirão mão de uma alíquota menor que a média cobrada no país a título de ICMS.
A alíquota do ICMS no Brasil, imposto de competência estadual e do DF, varia entre 17% e 22%. No nosso exemplo hipotético, se considerarmos que o município alfa se encontra situado no território do Estado Beta, e que esse possua uma alíquota de ICMS de 17%, o contribuinte, segundo a nova sistemática do art. 156-A, § 1º, VII, da CRFB/1988, estará sujeito a uma alíquota total de IBS de 19% (17% + 2%).
É dizer, o prestador de serviço, que sob o antigo regime pagaria R$20,00 de ISSQN, passará a pagar R$190,00 de IBS, ou seja, 9,5 vezes mais, o que evidencia, ao menos em tese, o impacto negativo do regime do somatório de alíquotas do IBS em relação a essa específica atividade econômica se comparado ao comerciante comum contribuinte do ICMS.
Ora, se um comerciante comum neste mesmo Estado Beta estiver submetido à alíquota de 17% de ICMS numa operação de circulação de mercadoria, ele recolherá aos cofres estaduais a quantia de R$170,00 (R$1.000,00 x 17%), ao passo que sob o novo regime do IBS recolherá os mesmos R$190,00 daquele prestador de serviço, escancarando em último grau a disparidade da “Reforma Tributária” no particular, bem como a violação ao postulado da capacidade contributiva, corolário da isonomia.
Não há dúvidas que sobre esse exclusivo enfoque, o comerciante submetido ao ICMS sofrerá de forma menos traumática os impactos do somatório de alíquotas do IBS do que o prestador de serviço, pois como visto acima as alíquotas do ICMS no Brasil já são elevadas (mínimo de 17%), enquanto aquelas do ISSQN, por receio de perda de investimento econômico, são fixadas pelos municípios, em regra, no patamar mínimo de 2%.
Por outro lado, os contribuintes do ICMS também poderiam, de forma absolutamente legítima, defender a tese de que, em verdade, a EC 132/23 estaria apenas corrigindo um erro histórico, pois o prestador de serviço, que no mais das vezes não possui um alto custo operacional para o desenvolvimento de suas atividades, sejam elas formais ou informais, maximizam seus lucros em detrimento do baixo valor da alíquota do ISSQN, enquanto o comerciante, além de ter uma elevada despesa para iniciar e manter o seu negócio hígido, ainda sofre com o alto valor das alíquotas do ICMS, o que acaba por reduzir seu lucro líquido.
O pior é que esse paradoxo estabelecido pela reforma tributária parece não ter sido equacionado pela LC 214/25, que instituiu o IBS, o CBS, o IS – Imposto Seletivo, dentre outras questões, não tendo o governo e o parlamento Federal encontrado um meio termo para a celeuma envolvendo o somatório de alíquotas do IBS, o que acaba por vulnerar princípios caros do Direito Tributário, em especial a isonomia, a capacidade contributiva e a progressividade, retrocedendo a “reforma tributária” no ponto.
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1 Reforma Tributária: A Nova Tributação do Consumo no Brasil / Ricardo Alexandre e Tatiane Cota Arruda – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024, Pág. 34.
2 Art. 145. (…)
§ 4º As alterações na legislação tributária buscarão atenuar efeitos regressivos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)
3https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-03/economia-brasileira-cresce-34-em-2024-maior-alta-desde-2021 – Pesquisado em 08/04/2025
4 Ob.Cit. Pág. 17
Fonte: Migalhas
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