A crescente valorização da autonomia da vontade nas esferas da vida e da morte tem impulsionado relevantes transformações jurídicas, sobretudo diante do envelhecimento populacional, do avanço das tecnologias biomédicas e da complexificação das escolhas sobre o fim da vida. Nesse cenário, emerge o “testamento vital”, também conhecido como diretiva antecipada de vontade, como instrumento por meio do qual uma pessoa pode dispor, enquanto lúcida e capaz, sobre os cuidados e tratamentos que deseja — ou não deseja — receber no estágio terminal de uma enfermidade, caso se encontre, no futuro, impossibilitada de expressar sua vontade.

Embora seu campo de incidência seja nitidamente delimitado ao plano existencial e à autonomia do paciente diante da morte, o testamento vital suscita reflexões que extrapolam os contornos do biodireito e da bioética clínica. A partir da perspectiva do direito das sucessões, surge o questionamento: existiria alguma interface possível entre o testamento vital e o planejamento sucessório? Poderia a autonomia privada encontrar, nesse instrumento, alguma forma de se manifestar também no domínio patrimonial pós-morte?

Testamento vital x tradicional

Inicialmente, cumpre distinguir o testamento vital do testamento tradicional, que é, conforme lição de Maria Berenice Dias, o “instrumento pelo qual alguém dispõe, para depois de sua morte, de seus bens ou de direitos e impõe encargos” [1]. O testamento vital, por sua vez, é ato jurídico unilateral, personalíssimo e gratuito, com eficácia intervivos, que não possui natureza patrimonial, mas sim existencial. Tem por objeto disposições sobre tratamentos de saúde, cuidados paliativos e recusa terapêutica, e sua validade independe de homologação judicial.

Ocorre que, na prática, o planejamento do fim da vida não se limita a aspectos médicos. A morte, além de fenômeno biológico, é também evento jurídico com relevantes repercussões patrimoniais. Nesse ponto, autores como Carlos Eduardo Pianovski Ruiz sustentam que o planejamento sucessório deve ser compreendido de forma ampla, englobando não apenas a partilha de bens, mas também a organização do legado existencial do indivíduo [2]. Daí decorre uma possível intersecção com as diretivas antecipadas: o testamento vital pode atuar como instrumento complementar ao planejamento sucessório, especialmente quando traduz valores, crenças e desejos que, embora não patrimoniais em sentido estrito, impactam direta ou indiretamente a forma como a sucessão será compreendida e conduzida.

Exemplificativamente, uma pessoa pode, em testamento vital, indicar a preferência por permanecer em domicílio no fim da vida, recusando internação hospitalar. Tal escolha pode demandar adaptações residenciais ou mobilização de recursos familiares, cuja previsão orçamentária pode constar de documentos patrimoniais, como um testamento ordinário, uma doação ou mesmo a constituição de um fundo ou trust. Nesse contexto, a articulação entre diretivas existenciais e atos de disposição patrimonial pode revelar-se instrumento de racionalidade e coerência no planejamento da morte e da sucessão.

Além disso, o testamento vital pode prevenir conflitos familiares que repercutam na esfera sucessória. A experiência clínica demonstra que decisões sobre a continuidade ou não de tratamentos médicos em situações críticas frequentemente geram dissensos entre familiares. Quando o paciente expressa previamente sua vontade, essa expressão tende a ser respeitada — e, inclusive, serve de parâmetro interpretativo para aferir a validade de disposições testamentárias, doações ou outras manifestações de vontade que guardem relação com o momento da terminalidade. Como ensina Paulo Lôbo, “a autonomia privada deve ser considerada não apenas como liberdade de dispor, mas como liberdade de viver e morrer com dignidade” [3].

Conteúdo patrimonial não pode fazer parte do testamento vital

Por outro lado, não se pode ignorar os riscos de confusão conceitual entre testamento vital e testamento ordinário. Embora compartilhem a ideia de manifestação unilateral de vontade e de projeção temporal, são institutos distintos, com finalidades, requisitos formais e efeitos jurídicos diversos. A tentativa de conferir ao testamento vital conteúdo patrimonial, por exemplo, pode comprometer sua validade e gerar litígios desnecessários. Como adverte Judith Martins-Costa, “a autonomia privada, para ser efetiva, requer clareza conceitual e técnica normativa apurada; do contrário, corre o risco de frustrar os próprios fins que se propõe tutelar” [4].

Portanto, embora não se confundam, testamento vital e planejamento sucessório podem dialogar de forma construtiva e coerente, desde que respeitados os limites e a natureza de cada instituto. A interface possível entre ambos não reside na fusão de suas estruturas, mas na articulação de suas finalidades: assegurar ao indivíduo o direito de conduzir, com autonomia e dignidade, tanto o seu processo de morrer quanto os desdobramentos jurídicos de sua morte.

Essa reflexão demanda, inclusive, revisitação da dogmática sucessória tradicional. O direito das sucessões, historicamente voltado à proteção da família e da herança, precisa reconhecer a centralidade da pessoa e da sua biografia na distribuição dos bens post mortem. A sucessão não deve ser apenas um evento técnico de transmissão patrimonial, mas também uma expressão de vontades, identidades e valores. A abertura a instrumentos existenciais, como o testamento vital, pode contribuir para uma sucessão mais humanizada, legítima e aderente à vontade real do de cujus.

Em conclusão, embora testamento vital e planejamento sucessório não se confundam, há entre eles uma interface possível e promissora, fundada na valorização da autonomia privada e na articulação entre as dimensões existencial e patrimonial do sujeito. Trata-se de uma perspectiva que requer prudência técnica, mas que pode enriquecer o direito das sucessões com novos contornos éticos, jurídicos e sociais, em consonância com os desafios de uma sociedade plural e em envelhecimento.

Referências
[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Sucessões. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[2] PIANOVSKI RUIZ, Carlos Eduardo. Direito das Sucessões: fundamentos existenciais e patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2020.

[3] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

[4] MARTINS-COSTA, Judith. A autonomia privada no Direito Civil contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

Fonte: Conjur

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