O Conselho Nacional de Justiça editou regramento que altera diversas questões relacionadas ao registro de pessoas naturais, dentre as quais a possibilidade de reconhecimento extrajudicial das filiações socioafetivas e registro dos filhos havidos por métodos de reprodução assistida. Trata-se do Provimento 63 do CNJ, de novembro de 2017, mais um exemplo do movimento de extrajudicialização do Direito Privado. Além da redução do número de demandas judiciais relativas ao registro civil, as permissões trazidas pelo provimento são dignas de favorecer um enorme contingente de pessoas em todo o território nacional, muitas das quais restavam sem formalização adequada da sua filiação em face dos óbices que até então se apresentavam. As medidas implementadas visam facilitar o acesso a um direito que deve ser assegurado a todos: o registro do estado de filiação.
 
O Direito de Família brasileiro admite uma série de vínculos como suficientes para o estabelecimento da filiação. Elos biológicos, afetivos, presuntivos, registrais, adotivos ou decorrentes de reprodução assistida perfilam lado a lado no nosso sistema jurídico, todos passíveis de consagrar uma relação de parentesco[1]. Há mais de três décadas é admitida no Direito brasileiro a denominada “paternidade socioafetiva”, relação precursora do reconhecimento dos vínculos socioafetivos na filiação.
 
Sinteticamente, é possível afirmar que a paternidade socioafetiva é a relação entre pai e filho que se constrói pela afetividade, cuidado e atenção ao longo da convivência familiar (comportamento social típico, convivência familiar duradoura e relação de afetividade familiar[2]). Esse vínculo socioafetivo deve estar demonstrado na realidade fática por tempo suficiente para permitir a consagração dessas relações, ou seja, o seu registro é sempre a posteriori, após já restar devidamente configurado no mundo dos fatos. Atualmente, tais critérios se estendem também para as denominadas “maternidades socioafetivas”[3].
 
Até pouco tempo, o reconhecimento e registro de uma relação filial socioafetiva somente poderia se dar por intervenção do Poder Judiciário. Assim, os interessados em ver registrada uma filiação socioafetiva (ainda que consensual) necessariamente deveriam ingressar com uma ação judicial[4]. No dia 14 de novembro de 2017, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento 63 para regular em todo território nacional o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva, entre outras deliberações. Esse provimento estabelece novos modelos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, dispõe sobre o reconhecimento voluntário e averbação da paternidade e maternidade sociafetiva e, ainda, regula o registro de nascimento dos filhos havidos por reprodução assistida.
 
A partir dessa normativa, que atinge todos os cartórios do país, os vínculos consensuais socioafetivos de filiação passam a poder ser registrados voluntária e diretamente nas serventias de registro civil de pessoas, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, o que é uma alteração significativa[5]. O escopo de uniformização dos procedimentos e de uma maior facilitação do registro dos vínculos socioafetivos é evidente, portanto, essa é a perspectiva pela qual devem ser interpretadas as suas deliberações.
 
Para que seja possível o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva, o provimento traz alguns requisitos específicos: que o requerente seja maior de 18 anos (independente do estado civil); não seja ascendente ou irmão do pretenso filho; a diferença de idade entre o requerente e o filho tem que ser igual ou maior que 16 anos; o pedido pode ser realizado em localidade diversa de onde foi lavrada a certidão de nascimento; deve haver consentimento expresso e pessoal da mãe e do pai; se o filho for maior de 12 anos, é necessário o seu consentimento; exige-se a coleta pessoal das assinaturas; e, ainda, faz-se necessária uma declaração das partes de desconhecimento de discussão judicial sobre a referida filiação.
 
Caso algum dos requisitos não possa ser atendido, o registro não poderá ocorrer pela via extrajudicial, devendo as partes ingressar no Poder Judiciário para pleitear o reconhecimento.
Em casos de dúvida, suspeita ou inconsistência, o registrador deve fundamentar a recusa e enviar o pedido para o juiz competente, o que permite evitar fraudes e burlas. Além disso, o reconhecimento voluntário será irrevogável, somente podendo ser desconstituído judicialmente e desde que tenha havido vício de vontade, fraude ou simulação. Cabe esclarecer que não poderá ser realizado o reconhecimento voluntário em cartório caso os requerentes tenham em andamento processos judiciais de reconhecimento de paternidade ou de procedimento de adoção. Nessas hipóteses, qualquer reconhecimento deverá ser remetido para as vias jurisdicionais.
 
Outro aspecto tratado foi o registro de filhos havidos por técnicas de reprodução assistida[6], o que até então apresentava grandes obstáculos. Muitos casais que tinham filhos por tais métodos encontravam dificuldades no respectivo registro em nome de ambos (na maioria das vezes, precisavam recorrer ao Poder Judiciário para ver concretizado esse registro). Quanto a eles, o Provimento 63 passa a suprir uma lacuna da lei: os filhos decorrentes de técnicas de reprodução assistida podem ser registrados independentemente de prévia autorização judicial, ou seja, os pais podem obter a certidão de nascimento diretamente no cartório de registro civil, o que também é um grande avanço. Essa facilitação era necessária e confere maior dignidade para essas situações jurídicas.
 
Nessas hipóteses, caso os pais sejam casados ou convivam em união estável, poderá somente um deles comparecer para realizar o ato. Em relação aos filhos de casais homoafetivos que se utilizaram da reprodução assistida, a novidade está na certidão de nascimento, que fará constar os nomes dos ascendentes sem referência à distinção quanto à ascendência paterna ou materna. Essa regra também contribui para que os filhos reconhecidos de casais homoafetivos não sofram discriminações.
 
Para a realização do registro nos casos de nascimento por reprodução assistida, será necessário apresentar: declaração de nascido vivo (DNV); declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários; certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal.
Nas situações de filhos que nasceram por essas técnicas, resta expresso que o conhecimento da ascendência biológica não resulta no vínculo de parentesco entre o doador ou a doadora e o filho gerado, o que também se mostra adequado e diferencia essas categorias.
 
Quanto à multiparentalidade[7], situação na qual há uma pluralidade de pais ou mães de forma concomitante, o provimento também inova. Com ele, passa a ser possível o registro multiparental diretamente na serventia extrajudicial, sem necessidade de se recorrer à via jurisdicional, desde que um dos vínculos seja socioafetivo e se atendam outros requisitos. O artigo 14 do provimento dispõe que “o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo filiação no assento de nascimento”. Essa regra determina que o reconhecimento seja sempre unilateral, o que significa que cada requerimento somente poderá cuidar ou do lado paterno ou do lado materno (nunca de ambos)[8].
 
Fica evidente pelo teor do seu artigo 14, corroborado pelos “considerandos” iniciais do regramento, a possibilidade jurídica da multiparentalidade. Assim, é inequívoco que esse dispositivo torna possível o reconhecimento extrajudicial de relações multiparentais. E nem poderia ser diferente, visto que em 2016 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade jurídica da multiparentalidade, a partir da tese aprovada na Repercussão Geral 622: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”[9]. Essa deliberação do STF tem efeito vinculante e abrangência nacional.
 
Conclusão
A unificação e a facilitação promovidas pelas novas regras demonstram uma sensibilidade para a atual realidade social e uma tentativa de “desjudicializar” muitas dessas situações. Obviamente que a segurança jurídica e as demais guaridas do nosso sistema sempre deverão ser observadas. Resta claro que as medidas instituídas buscam facilitar o reconhecimento da filiação, de modo a concretizar os princípios do melhor interesse da criança e da igualdade entre os filhos, sendo assim, dotadas de inegável constitucionalidade. No atual quadro civil-constitucional há um inquestionável direito fundamental à filiação, o que também subsidia a sustentação das inovações ora implementadas.
 
Relevante anotar que o risco de eventual tentativa de fraude não pode ser óbice para o reconhecimento do direito de milhares de pessoas. Deve-se buscar um rigor para evitar desvios sem que isso implique negar acesso ao direito de ver a filiação reconhecida para considerável parcela da população. Essa deve ser a busca do momento atual.
 
Com o Provimento 63 do CNJ, as relações socioafetivas chegam até aos balcões das serventias extrajudiciais, o que significa um estágio significativo da sua trajetória, que já tem uma história de mais de três décadas no Brasil. Foram proferidas importantes manifestações favoráveis ao referido provimento, emitidas por duas das maiores instituições que militam com esses temas: o IBDFam[10] e a Arpen[11]. O apoio dessas respeitáveis entidades é prova viva do acerto das medidas. Os novos procedimentos já estão sendo implementados em diversas serventias do país, de forma exitosa, o que demonstra o acerto das medidas.
 
O Provimento 63 consagra um grande avanço no sentido da facilitação do registro da filiação, passo relevante que merece aplausos e do qual não se pode retroceder.
 
[1] FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade: Relação Biológica e Afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
[2] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2018. v. 5. p. 228.
[3] DIAS, Maria Berenice. Filhos do afeto: questões jurídicas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 135.
[4] Entretanto, a partir de 2013 essa situação começou a mudar, pois alguns estados brasileiros passaram a permitir o reconhecimento da filiação socioafetiva de forma extrajudicial, diretamente nos cartórios de registro de pessoas naturais. Contudo, cada estado regulamentou o procedimento com as suas particularidades. O primeiro estado a admitir o registro extrajudicial da paternidade socioafetiva foi Pernambuco, por deliberação da Corregedoria do Tribunal de Justiça local, a qual regulamentou administrativamente a possibilidade de registro direto dos filhos socioafetivos, sem a necessidade de prévia ação judicial, através do Provimento 9 de 2013. Em seguida outros estados, tais como Maranhão, Ceará, Amazonas, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Sergipe, também acompanharam essa linha.
[5] Desde que preenchidos alguns requisitos, descritos na nova regra.
[6] Reprodução assistida é um conjunto de técnicas que tem como principal objetivo tentar viabilizar a gestação sem relações sexuais, sendo que a fecundação pode ocorrer dentro ou fora do corpo da mulher, dependendo da técnica adotada.
[7] Para aprofundamento no tema: CALDERÓN, Ricardo. Princípio da Afetividade no Direito de Família. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
[8] O artigo 14 do Provimento 63, em relação à expressão “unilateral”, gerou diversas discussões na doutrina, assim, em 18 de julho, o então corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, se manifestou sobre o sentido do dispositivo. Nesse esclarecimento, afirma que é possível o reconhecimento extrajudicial de vínculos socioafetivos apenas unilateralmente, ou seja, ou do lado paterno ou do lado materno. Uma vez realizado um reconhecimento extrajudicial de um ascendente, não se poderá reconhecer ao mesmo outro ascendente (neste caso, o segundo pretendente a ascendente socioafetivo, se houver, deverá recorrer à via judicial). Essa medida visa evitar a tentativa de regularizações de “adoções à brasileira”. Assim, a multiparentalidade segue sendo permitida, desde que se restrinja sempre a apenas um lado (ou paterno, ou materno). Caso se pretenda o reconhecimento de uma multiparentalidade bilateral, o pleito deverá ser postulado perante o Poder Judiciário.
[9] Para aprofundamento no tema: TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Direito de Família. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. v. 5.
[10] IBDFam. Manifestação pela manutenção do Provimento 63/2017 enviada ao Ministro João Otávio de Noronha, Corregedor do Conselho Nacional de Justiça, de 28 de abril de 2018. Disponível em: . Acesso em: 14/5/2018.
[11] ARPEN BRASIL. Nota de esclarecimento acerca do provimento CNJ nº 63/2017, de 06 de dezembro de 2017. Disponível em: . Acesso em: 1º/3/2018.